A dissolução iminente da União Europeia

É evidente que entramos numa fase de dissolução da União Europeia. Sua estrutura esclerosada traz consigo uma oportunidade de reconquista integral de independência para todos os envolvidos. Além disso, e acima de tudo, é também um desafio que pode facilmente transformar-se num grande drama. Os Estados Unidos vivem um colapso interno, o que significa que, em breve, a Europa não mais terá um patrão; seus membros terão de adotar posicionamentos em relação a seus vizinhos e a si mesmos para que os resultados não sejam catastróficos.

Por Thierry Meyssan

No fim da Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill visionou um sistema que garantia que a Europa ocidental e seu destino não viriam a cair nas mãos da União Soviética. A ideia era a criação de um mercado comum europeu com os países fragmentados que curvaram-se ao Plano Marshall. Os Estados Unidos e o Reino Unido marchavam lado a lado. Em alguns anos, ambos prepararam os alicerces do mundo que hoje conhecemos; a OTAN, uma aliança militar por eles chefiada e cuja organização civil de seus respectivos membros serviria como base para o que tornar-se-ia a União Europeia. É claro que os membros de uma das instituições supracitadas não necessariamente faziam ou fazem parte de ambas, mas o fato é que, baseadas em Bruxelas, tratam-se de dois lados da mesma moeda. O serviço conjunto das duas estruturas é discretamente baseado em Luxemburgo.

Todos os documentos da União são traduzidos para todas as respectivas línguas de seus países-membros, além do inglês, apesar desta não ser mais a língua oficial de nenhum dos ditos membros. Isso se dá não porque os britânicos já foram parte do bloco, mas porque a UE é subordinada à OTAN, como consta no artigo 42/7 do Tratado de Lisboa (que forçosamente substituira a proposta de uma Constituição Europeia, rejeitada pelos cidadãos).

Após a tensão entre Washington e Londres em função da crise de Suez, os britânicos, que perdiam aos poucos o seu império, decidiram juntar-se ao que não era ainda chamado de União Europeia. Se Harold Macmillan falhara em 1958, Edward Heath excedera em 1973. Porém, com a mudança nas relações de forças, o Reino Unido decidiu deixar a União Europeia no fim de 2020 em favor da antiga “Britânia global.”

A Alemanha, ocupada pelos quatro vencedores da Segunda Guerra até 1990, por exemplo, sempre foi e permanece sendo satisfeita com a ideia de não mais ser uma potência militar. Até hoje, seu serviço secreto, reorganizado pelos EUA e pelos antigos funcionários nazistas remanescentes, ainda são exclusivamente dedicados à atividade intranacional. O Pentágono, por sua vez, possui várias bases militares pujantes em território alemão, amparadas na ficção legal da extraterritorialidade.

A França, por outro lado, sonha com sua independência militar. Foi em função disso que Charles de Gaulle, líder das Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra Mundial, tirou o país do comando integrado da OTAN em 1966. Nicolas Sarkozy, entretanto, tendo sido criado na adolescência pelo filho do estadunidense que deu origem à Operação Gladio da OTAN, reintegrou o país ao comando em 2009. Portanto, atualmente, as operações externas do exército francês são, na prática e por excelência, comandadas por oficiais estadunidenses.

Por anos, Alemanha e França lideraram a criação da União Europeia propriamente dita; François Miterrand e Helmut Kohl projetaram a guinada do bloco de um mero mercado comum a um estado supranacional—ainda vassalo dos EUA—que teria a capacidade de fazer frente a URSS e à China. Tal estrutura, à qual os EUA exigiu que os países-membros do antigo Pacto de Varsóvia se integrassem na mesma medida em que o fizessem à OTAN, tornou-se uma burocracia colossal. Apesar das aparências, o Conselho Europeu não trata-se de um “super-governo”, mas de uma mera câmara formal de registros das decisões da OTAN. Essas decisões são traçadas pela Aliança Atlântica—dominada pelos EUA e pelo Reino Unido—e simplesmente repassadas à Comissão Europeia, de onde são enviadas ao Parlamento até serem, finalmente, ratificadas pelo Conselho.

É importante compreender que a vocação da OTAN é a de interferir em tudo; da composição do chocolate (alimento incluso na ração dos soldados) à construção de pontes (devem ser aptas ao uso por veículos blindados), do fornecimento de vacinas anti-COVID (o bem-estar dos civis depende do bem-estar dos militares) ao monitoramento de transferências bancárias (do ‘inimigo’).

Os exércitos britânico e francês eram os únicos com algum ‘peso’ na UE, unindo-se em 2010 com os Tratados de Lancaster House. Quando ocorreu o Brexit, no entanto, o exército francês viu-se novamente sozinho, como ficou evidente com o encerramento do contrato franco-australiano para submarinos em favor de Londres. A única opção remanescente à França era uma aproximação com o exército italiano, cujo tamanho correspondia à metade do seu próprio, o que se deu em 2021 com o Tratado do Quirinal. Sua concretização foi facilitada pela afinidade ideológica entre Emmanuel Macron (ex-Rothschild) e Mario Draghi (ex-Goldman Sachs), tal como pela similaridade entre as ações de combate ao COVID desempenhadas por seus governos. Diga-se de passagem que são notáveis os implausíveis jargões politicamente corretos empregados na escrita do documento, completamente distantes da tradição latina.

Acontece que, simultaneamente, a chanceler alemã Angela Merkel passa o bastão para Olaf Scholz, seu sucessor. Ele não tem nenhum interesse em questões militares ou nos défices orçamentários de França e Itália. O acordo de coalizão do seu governo alinha a política externa alemã à dos anglo-saxões (EUA e Reino Unido) em todos os aspectos possíveis.

O governo Merkel lutou contra o antissemitismo, mas Scholz vai mais além, comprometendo-se a apoiar “toda e qualquer iniciativa que promova a vida judia e sua diversidade”. Não é mais uma questão de proteção a uma minoria, mas de “promoção”.

Quanto a Israel, estado criado pelos EUA e pelo Reino Unido dentro duma lógica imperial, o novo acordo também afirma que a “segurança de Israel é um interesse nacional” da Alemanha, e promete retaliar quaisquer “tentativas antissemitas de condenação de Israel, inclusive nas Nações Unidas”. Ele declarou que a Alemanha continuaria apoiando a ‘solução de dois estados’ no tocante ao conflito entre israelenses e palestinos (opondo-se ao princípio one man, one vote), além de incentivar a ‘normalização’ das relações entre Israel e os países árabes. Assim, o governo Scholz enterra a orientação tradicional do SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha), cujo Ministro das Relações Exteriores de 2013 a 2018, Sigmar Gabriel, descreveu o regime israelense como um de apartheid.

Olaf Scholz é um advogado preocupado em fazer a indústria de seu país funcionar com base na conciliação entre trabalhadores e empregadores, nunca tendo sido significativamente ativo no que diz respeito às questões internacionais. Ele apontou a advogada Annalena Baerbock, do Grüne (Partido Verde) como Ministra das Relações Exteriores; não só uma proponente da energia de baixo carbono, como também uma agente de influência na OTAN. Ela é uma forte apoiadora do ingresso da Ucrânia na OTAN e na UE, opõe-se à Rússia e, por consequência, ao Nord Stream 2 (gasoduto que liga o país à Europa ocidental), encorajando antes o projeto que permitiria a importação de gás estadunidense através da construção de transportadores de gás natural liquefeito—apesar dos custos exorbitantes de tal empreitada. Finalmente, chama a China de “rival sistêmico” e demonstra apoio aos separatismos taiwanês, tibetano e uigur.

É previsível que as políticas de Berlim e Paris separem-se aos poucos, até que o conflito perene entre ambas, causador de três guerras de 1870 a 1945, venha novamente à superfície. Ao contrário do que é pensado publicamente, como mencionei acima, a União Europeia não foi criada para garantir a paz na Europa ocidental, mas para estabilizar as populações do campo anglo-saxão durante a Guerra Fria. O conflito franco-alemão nunca teve sua resolução. A UE, longe de ter feito paz, simplesmente ‘varreu o problema para debaixo do tapete.’ Durante a Guerra Civil Iugoslava, os dois países viveram um duro embate militar, uma vez que a Alemanha apoiava a Croácia e a França apoiava a Sérvia. Berlim e Paris entendiam-se dentro dos confins fronteiriços da UE, estando, porém, em guerra fora de suas fronteiras. Sabe-se que ocorreram mortes dos dois lados.

As políticas externas que funcionam são aquelas que refletem a identidade de sua respectiva nação. Hoje, o Reino Unido e a Alemanha seguem em frente, orgulhosos de quem são. A França, contudo, passa por uma crise de identidade. Emmanuel Macron disse, no início do seu mandato, que “não existe cultura francesa”. Seu tom mudou desde então, por pressão do seu povo; apenas o tom, não o pensamento. A França tem meios, mas não sabe mais quem é; ela entretém a ilusão de uma UE independente, que faça frente aos EUA, sendo que os outros 26 membros nada querem com isso. A Alemanha, entretanto, também erra ao refugiar-se debaixo do guarda-chuva nuclear estadunidense, pois trata-se de um grande poder em princípio de clara decadência.

É evidente que entramos numa fase de dissolução da União Europeia. Sua estrutura esclerosada traz consigo uma oportunidade de reconquista integral de independência para todos os envolvidos. Além disso, e acima de tudo, é também um desafio que pode facilmente transformar-se num grande drama. Os Estados Unidos vivem um colapso interno, o que significa que, em breve, a Europa não mais terá um patrão; seus membros terão de adotar posicionamentos em relação a seus vizinhos e a si mesmos. É de extrema urgência que comecemos a entendermo-nos não só como parceiros comerciais, mas como parceiros em geral. Falhar nisso inevitavelmente levará à catástrofe—à guerra total.

Todos já perceberam que os membros da União Europeia—exceto os britânicos, que já deixaram-na—gozam de elementos culturais em comum. Tais elementos também são presentes na Rússia, mais próxima geograficamente da UE do que o Reino Unido. É agora possível reconstruir a Europa como uma rede de estados independentes, desprovida de uma burocracia centralizada, abrindo-a àqueles que foram artificialmente isolados pelos anglo-saxões a fim de garantir sua dominação continental ao longo da Guerra Fria. Era isso que afirmava Charles de Gaulle ao opor-se a Churchill e dizer que queria uma “Europa de Brest a Vladivostok.”

Fonte: Oriental Review

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Thierry Meyssan

Intelectual francês, presidente e fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace, é autor de diversos artigos e obras sobre política externa, geopolítica e temas correlatos.

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