Cinema, tradição e educação popular em Cabiria, de Giovanni Pastroni

Filmado no ano de 1914, Cabiria (título original: Cabiria: visione storica Del terzo secolo AC) é um dos primeiros épicos mudos da história do cinema e tem fundamental importância na solidificação da Itália no universo cinematográfico, representando a época de ouro do cinema italiano.

Dirigido por Giovanni Pastrone, que também criou boa parte do roteiro, e com legendas ou, mais precisamente, “interlúdios líricos”, de Gabirelle D’Annunzio, narra o sequestro de uma jovem nobre romana por piratas fenícios durante a segunda guerra púnica, e posteriormente seu resgate por Fulvio Axila, um espião que vai até Catargo com essa missão, junto com seu escravo, um gigante chamado Maciste.

O filme é um marco na história do cinema italiano por conta de seu bem sucedido retrato da exuberância dos tempos do império, elemento que era, talvez, o mais importante em uma Itália que havia acabado de sair vitoriosa do conflito na Líbia e conservava com muito sucesso seu amor pela antiguidade.

Um gigantesco esplendor, com um elenco de cinco mil atores, e sequências impressionantes com animais reais, foi uma película revolucionária para a época por conta de sua ambição e atenção aos detalhes históricos, chegando, por exemplo, a recriar com perfeição a travessia de Aníbal pelos Alpes com precisamente duzentos elefantes.

Os filmes do mercado americano eram, em sua maioria, de curta metragem, enquanto “Cabiria” já contava com mais de duas horas de duração, coisa extraordinária para a época. É uma película, portanto, que marca um momento em que a indústria italiana começa a produzir uma série de épicos extravagantes sobre seu passado glorioso. A queda de Troia (1911), The last days of Pompeii (1935), Nero (1922) e Quo Vadis (1912) são alguns exemplos da fertilidade criativa dessa fase, da qual Cabiria foi indiscutivelmente o mais inovador de todos.

O sacrifício a Moloque é uma das cenas mais ambiciosas do filme, que conta com uma gigantesca estátua oca do deus amonita no meio de um galpão rodeado por uma espécie de arquibancada. Uma assustadora cabeça de boi, fincada em um corpo humano, tem uma abertura na barriga por onde uma criança viva é arremessada para consumir-se no fogo. A estátua encontra-se imponente no centro do grande salão e é objeto de atenção de uma plateia febril, histericamente ansiosa pelo espetáculo. Cabiria, a menina romana, é uma das escolhidas para ser sacrificada na frente de todos, mas felizmente consegue ser salva por Fulvio e seu fiel escravo em uma eletrizante cena de luta, algo de que os filmes da época infelizmente careciam.

A influência de Cabiria, um filme relativamente desconhecido, é ainda muito grande até mesmo nas produções mais comerciais e badaladas de nossa época. A cena da derrota da frota romana em Siracusa, outro momento visualmente espetacular do filme, foi certamente uma referência para os produtores da pretensiosa Game of Thrones, uma produção americana que em nada chega perto da impressionante precisão histórica de Cabiria, com suas legendas poéticas cuidadosamente lapidadas por um dos maiores estilistas literários da época, Gabrielle D’Annunzio, tampouco de sua consistência de conteúdo, que não precisa de mortes inesperadas e nem de outros sensacionalismos baratos para não deixar seu roteiro morrer. Mas está de fato lá, a batalha em Blackwater (“Águas negras”), no nono episódio da segunda temporada, é bastante semelhante em seu escopo à cena da derrota dos romanos em Siracusa, quando Arquimedes, grande cientista da antiguidade, cansado da guerra e excitado por um forte sentimento querença, inventa um aparelho que canaliza a luz do sol através de uma lente grossa, fazendo com que as velas dos navios rapidamente peguem fogo. Não é possível que o espectador médio, acostumado com essas produções comerciais, quando confrontado com essa imagem, não lembre das labaredas esverdeadas que consumiram o episódio do dramalhão medieval de George Martin.

Ver e rever o filme é sentir saudade de uma época em que o respeito ao passado, o amor pela antiguidade e a veneração das tradições – mesmo que tão distantes e aparentemente indefensáveis – é inquestionavelmente o centro de um cinema concentrado na precisão histórica, na educação popular sobre sua própria história, e na invariável qualidade literária de seus diálogos, coisa que hoje não existe mais, pelo menos nos circuitos mais comerciais. Os filmes autorais, que ainda conservam esse traço de sensibilidade, infelizmente não estão disponíveis para o povo, sendo realmente muito difícil que um trabalhador comum consiga assisti-los, não só pela aparente complexidade dessas obras, mas, antes de tudo, porque não há um projeto nacional de desenvolvimento para o cinema popular e gratuito, como sonhou um de nossos grandes diretores, Glauber Rocha, ficando esses filmes restritos a quem consegue encontrá-los nas profundezas da internet, em sua maioria jovens de classe média com livre acesso à internet, ou especialistas e amantes em geral.

A televisão seria a maior aliada nesse projeto nacional e popular absolutamente necessário, mas como ela é majoritariamente dominada por uma mídia globalista que não tem nenhum interesse na formação de uma elite cultural no seio das massas, os canais abertos propositalmente despejam imundícies em cima de imundícies no colo de seus espectadores, que inebriados pelo consumo fácil e com seus intelectos esgotados pelo excesso de trabalho, muitas vezes não fazem nem ideia de que filmes assim existem. Um dos grandes crimes lesa-pátria do qual nossos infelizes governantes não podem jamais deixar de assumir a culpa.

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Mateus Pereira

Formado em letras, é membro da NR-DF e da Dissidência Política do DF.

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2 comentários

  1. Mateus, parabéns pela iniciativa do post. Entretanto, devo adicionar que Cabiria é conhecido por seu caráter nacionalista. Não quero renegar a obra, longe disso, mas sua utilização para a mobilização das massas foi notável no momento de seu lançamento, tal qual Birth of a nation. Seu texto parece ressaltar um refinamento vazio, centrado em conceitos como “respeito ao passado”, enquanto o parágrafo final tenta tecer uma discurso da sociedade de massa e da cultura atual, depois de ter chamado o proto-fascista Gabriele d’Annunzio de “maior estilista literário” da época. Não que o nacionalismo o impeça de ser bom escritor, longe disto, mas são coisas que precisam ser postas em cheque se você quiser oferecer um amplo panorama da obra.

    Resumindo, o texto parece sofrer de uma bipolaridade que merece ser repensada de maneira crítica, ou abandonar a crítica em favor de um refinamento humanizador vazio.

    Continue escrevendo,

    Um abraço.

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