Ou: o totalitarismo que não ousa dizer seu nome.
Conversando por esses dias com um desses conhecidos liberais, daqueles que babam na gravata, me surpreendi mais uma vez com a crença do estúpido de que o liberalismo é uma ideologia superior, revelada por Deus, ou o ápice da aventura humana sobre a terra — quase que uma via de virtude e ascetismo, espalhando só bondade pelas três dimensões do cosmos.
O engraçado é que o sujeito dizia isso para diferenciar seu posicionamento do autoritarismo, do qual a demência de Jair Bozó se tornou um dos principais símbolos no Brasil hodierno.
A qualidade maravilhosa do liberalismo estaria na sua tolerância a ideias contrárias — muito diferente daqueles coletivismos infames que pregam revolução.
Fiquei imaginando que liberalismo é esse que não chegou ao poder por revolução!
É como se os liberais não tivessem impulsionado guerras civis na Inglaterra, ou não tivessem guilhotinado milhares em França. É como se genocídios como o de Vendéia não tivessem existido.
Escutando a pregação delirante do estrupício, fiquei com a impressão de que Napoleão nunca marchou pela Europa. Que a guerra de secessão era fantasia, ou que os indígenas não tivessem sido massacrados pelos santos liberais ianques.
Como os liberais são bons!
Todos os livros, fontes, documentos e pesquisas históricas mentem ao ensinarem sobre o sangue jorrado nas revoluções europeias de 1822, 1830 e 1848. É como se o liberalismo não tivesse nada a ver com a consolidação da ordem capitalista, com a institucionalização da sociedade individualista!
A magnificência dos países liberais se abateu sobre suas próprias populações, submetendo-as a uma ordem burguesa em que greves eram proibidas, em que o populacho era expropriado de seus meios de subsistência, mas “livres”, podendo se vender como putas no novo “mercado de trabalho”.
Como os liberais são santos!
Quer evidência maior do que a expansão da Europa liberal pelo globo, feita por meio de metralhadoras, política das canhoneiras e até tráfico internacional de drogas?
O imperialismo bondoso dos liberais dividiu o planeta entre meia dúzia de potências que brigavam para ver quem é que governava o maior número possível de “selvagens” , a saber, aqueles povos que não haviam ainda sentido o gostinho das maravilhas do progresso liberal!
A sociedade liberal mais exemplar que já existiu, os Estados Unidos da América, é uma demonstração cabal da pureza moral de todos os liberais. Tá certo que ela praticou eugenia; que ela, até hoje, se nega a fornecer um sistema público de saúde para seus próprios cidadãos; que ela é permeada por um racismo endêmico em relação a qualquer outro estilo de vida; e que ela é neurótica, consumista, hedonista.
Mas quem pode contestar a benevolência de um país que tem milhares de bases militares ao redor do mundo, que sequestra cidadãos de outros países, cujo “Ato Patriota” pode dar sumiço a qualquer estadunidense, deixando-o sem acesso a familiares e qualquer tipo de advogado? A liberdade, na boca dos liberais, é uma realidade absolutamente grandiosa, divina, fenomenal!
O liberalismo é tão lindo, tão maravilhoso, que foi justamente nas sociedades liberais que foram criados os movimentos identitários pós-modernos, que levaram o individualismo ao seu último estágio, o de fragmentação do próprio Indivíduo em uma miríade de desejos e compulsões, cada um deles exigindo o reconhecimento de sua legitimidade pelo poder do Estado — que é o símbolo da Razão Iluminista em sua perpétua engenharia social sobre os povos que governa a ferro e fogo.
Nos países liberais não existe repressão nenhuma. Basta olhar como os Coletes Amarelos são tratados na França, e como a União Europeia está disposta a ouvir a voz das ruas.
Mas o energúmeno liberal pensa que nada tem a ver com isso. No fundo, apesar de toda a história, apesar até do que prega, o liberalismo não pode ser outra coisa senão divino, casto, uma luz no meio das trevas. Quem diz que não, merece ser tratado como os EUA tratam os recalcitrantes, com um Big Stick repleto de moralidade.
Como o liberalismo é bom, afinal de contas!
Ele é bem sucedido onde comunismo e fascismo fracassaram. Mas nunca houve maior realização totalitária no mundo do que o liberalismo triunfante.
E é por isso que todo espírito verdadeiramente totalitário não poder ser nada mais hoje em dia senão ferrenhamente liberal.
A diferença de qualquer liberal pro Jair Bozó é que o “capitão” é burro, tosco, e se move como um elefante. Ele não discursa em francês no Parlamento da França. Ele não tem a bela e polida retórica de Fernando Henrique Cardoso. Não desperta emoções como Obama, que provou que “tudo é possível” na América, inclusive ser amado por boçais enquanto praticava genocídios na Líbia, ajudava a expansão do Estado Islâmico no Oriente Médio e derrubava governos na América Latina.
O liberalismo é tão bom que até um preto em uma sociedade com um legado escravista, como os EUA, pode ser totalitário e genocida — caso se torne liberal!
Não é lindo?
Aqui no Brasil, o meu conhecido liberal jura de pé juntos que Vargas era liberal também. É possível amar Vargas mesmo odiando o florianismo, achando o castilhismo coisa do capeta, e o Estado Novo um regime facínora! É um erro pensar que a República oligárquica que deu ao país o nome de Estados Unidos do Brasil era liberal. Getúlio, que era filo-fascista, se torna símbolo do próprio liberalismo.
Porque, claro, tudo que é bom que já existiu na face da terra só pode mesmo ser liberal. Fora do liberalismo, nada mais existe. Se existe, tem de ser exterminado: não há totalitarismo maior do que o totalitarismo liberal.
Por isso ele derrotou o comunismo e o fascismo, porque seu potencial genocida e sua sede de poder absoluto era muito maior. Sua ânsia por ir às ultimas consequências, ainda àquelas que impliquem na desumanização completa, não respeita qualquer limite.
Todo liberal é um Jair Bozó que pensa que toca piano. A única diferença real de Bozó pra Paulo Guedes, é que o primeiro tem coragem de admitir que não entende nem quer entender de economia — e que seu propósito mesmo é só proteger o lucro de alguns.
A única diferença pra Rodrigo Maia, é que ele não finge que gosta das ideias de Brizola. A única diferença de Bozó pros petistas, é que ele não precisa fingir que é “de esquerda”, ou seja, anti-sistema.
Jair Bozó é a única consequência possível do liberalismo. Assim como Fernando Henrique, Lula, Dilma, Collor, Castelo Branco, Lacerda, Dutra, e a República Velha inteira.
Não importa se governando com o Congresso aberto ou fechado. O liberalismo nunca foi democrata e nunca aceitou nenhum democracia que não pudesse controlar.
Democracia? Só a liberal!
Não há totalitarismo maior do que o liberal. Como explicou um Bispo católico-romano (com aprovação expressa do Vaticano): O liberalismo é um pecado maior do que o homicídio.
“Como é bom”, diz meu conhecido liberal com a gravata toda babada.