Bacurau (2019): a Tradição de um Povo é sua arma de guerra

Fundamentalmente, Bacurau (2019) não é um filme que possa se conformar aos parâmetros narrativos dos cânones políticos-ideológicos das esquerdas convencionais. Indo mais além: nem a cosmovisão marxista ortodoxa cabe – ou poderia caber – nas métricas fornecidas por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; e aqui pouco importa se os realizadores tenham consciência disso. Fato é que, para todos os fins, Bacurau é uma obra nacional-revolucionária (ou “nacional-bolchevique”). Uma película que, esteticamente, se situa ao lado da filmografia de Glauber Rocha como representante de uma arte que lê e decifra corretamente, na medida do possível, a alma brasileira, o espírito nacional, servindo-se desta decodificação para construir uma história onde o Povo – enquanto Narod – é motor da própria história.

Não há protagonistas em Bacurau que não a Comunidade Orgânica e Organizada (conforme a definição de Perón) em sua dimensão de enraizamento mais profunda: uma comunidade que enterra e cultua seus mortos e que, acima de tudo, conhece suas raízes e mantém viva suas tradições e identidade – que, como o filme mostrará, é dura como pedra, isto é, como as paredes de pedra do Museu de Bacurau.

O Museu é outro personagem do longa. Um personagem sempre referenciado, verbal ou não verbalmente. Um personagem que aparece nos contornos de uma câmera que vai sempre passeando e mostrando as nuances do território – nos dizendo com isso que a comunidade é um todo complexo, embebido de pequenos aspectos constitutivos. Um personagem, enfim, misterioso: os realizadores só nos contarão o que há dentro do Museu no conflito derradeiro da trama. E então descobrimos que Bacurau é Cangaço. Que Bacurau é Culto aos Antepassados. Que Bacurau é Catolicismo Popular (imerso em certo ocaso, é verdade, mas ainda presente). Que Bacurau é xamânico-ameríndio. Que Bacurau é potência e violência salvífica e que carrega em suas paredes o sangue jorrado de seus adversários. E é neste enquadramento que o filme define sua mensagem: é do Museu, isto é, da Psique (popular) Coletiva que o povo de Bacurau extrairá os instrumentos para a batalha contra o Invasor – propositalmente estrangeiro.

Em suas entrelinhas, Bacurau carrega o peso de um povo oprimido, mas vivo – e que vive anos luz das parafernálias hodiernas. Carrega também uma reflexão que só poderíamos denominar soreliana: a única via de libertação – a película nos mostrará – é a violência popular levada até as últimas consequências em sua acepção mítica, como nos ensinará o sindicalista-revolucionário francês, Georges Sorel, em suas Réflexions sur la Violence. E por qual motivo “mítica”? Ora, “o mito move o homem na história”, lucidamente nos dirá Mariatégui. E qual mito? O mito fundador do Povo, catalisador de seu destino histórico partilhado; seu fator de unificação orgânica. E é justamente essa violência mítica que, em Bacurau, permitirá a mobilização total, a marcha uníssona e a articulação das energias locais contra o Invasor externo e contra os vermes travestidos de compatriotas – cujo ultimato popular lançará, sem dó ou piedade, no terreno árido e sem vida da Caatinga (para ser devorado pela Onça ou picado pela Cobra).

Não há espaço para qualquer discurso ocidentalizante numa obra que referencia (e reverencia) as cabeças cortadas de Lampião. Todo moralismo democrático-liberal é escarrado e manchado pelas marcas da guerra de classes que se trava no interior de Bacurau – sem armas, sem vida, Bacurau nos fará ver; e se o povo segue desarmado, em contraparte, seus inimigos seguem armados. Toda miséria espiritual pós-moderna e pós-liberal é logo exorcizada pela atmosfera profundamente tradicionalista que ali reina: no fim das contas, todos estão sob a proteção mística da Grande Mãe Ancestral.

Uma ode à violência popular. Um chamamento à resistência autêntica. Uma glorificação das raízes históricas do Povo. Bacurau é, sem sombra dúvida, uma obra de arte nacional-bolchevique brasileira.

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Nova Resistência
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