Poucas pessoas podem ter adentrado uma catedral sem refletir sobre seu duplo aspecto – como uma obra de arte e como um espaço de adoração. Minha própria lembrança de uma pequena e belíssima igreja em Bruges é inseparável daquela de uma mulher que entrou com sua cesta de compras, ergueu seu filho a um genuflexório, rezou por um tempo e partiu. Uma catedral medieval, igualmente, pode exercer seu efeito simplesmente como uma criação artística, mas foi construída para o exercício de diversas funções sociais e religiosas. Além desses usos, era um símbolo de majestade eclesiástica e do orgulho comunal de uma sociedade feudal e burguesa. Seus vitrais carregavam uma mensagem religiosa àqueles que não podiam ler – suas esculturas e entalhamentos celebravam os poderosos ou imortalizavam as curiosas fantasias do escultor.
Muito da música que ouvimos em concertos e transmissões, de igual forma, servia originariamente a fins práticos: as Cantatas de Bach no serviço luterano, os Divertimenti de Mozart no entretenimento social. As pinturas que vemos em nossas galerias de arte formavam, outrora, parte do mobiliário natural de igrejas e palácios, realçando a importância e apelo emocional da adoração religiosa, assim como o esplendor de um modo de vida. Estando assim tão integradas à sociedade, são expressões de sua “mente”, tanto quanto o são os sistemas filosóficos e científicos, ou as ações e movimentos que produzem os eventos históricos.
Os críticos de arte são cuidadosos em distinguir entre o efeito estético de uma obra de arte e sua origem ou propósito social. Especulações acerca da relação da pintura rupestre com a vida de seus criadores são uma questão separada da apreciação das pinturas em si. É assim em qualquer grau em retrospecto – talvez não tenha sido para o próprio artista Neolítico.
Nas fases primeiras da civilização, a arte se encontrava intimamente ligada à magia, à religião e ao ritual – a música, a poesia e a vida eram inseparáveis na narração de conquistas heroicas em forma épica, ou da expressão da emoção pessoal na canção popular. É somente quando obras sobreviventes e registros escritos perpetuam as criações do passado que uma noção de “arte” emerge como algo passível de admiração em sua forma autônoma, separada de sua função social. A mente criativa não fica contente com a repetição. As constantes renovações na música durante os longos séculos da vida monástica medieval demonstram como o estímulo da criação artística esteve ali agindo – embora o propósito religioso se mantivesse inalterado. Uma transformação estável foi empreendida pelo toque da mente artística nos materiais da música em si.
A percepção de princípios artísticos se mostra ainda mais aguda quando as atitudes sociais e mentais estão mudando. Os arquitetos italianos da Renascença estavam profundamente conscientes de questões estilísticas quando se voltaram à sua herança Clássica em busca de orientação e inspiração. Ao absorver seus detalhes multiformes, admirar sua autoconfiança em termos de gosto e método e sentir o poder mobilizador de sua beleza, eles reforçavam sua concepção da arte como um mundo de experiência com suas próprias leis e visões imaginativas. Tal entusiasmo, compartilhado por escultores, pintores e poetas, encorajava a visão “profissional” da arte e, mais do que isso, a noção de que o gênio criativo pode transcender a mente geral de uma era, embora atendendo às suas necessidades e dependendo de seu patrocínio. Por uns três ou quatro séculos, durante os quais as criações de beleza foram valorizadas por sua contribuição para o prestígio, os interesses de artista e patrão coincidiram. A transição para modos de vida industriais e democráticos perturbou esse equilíbrio. A arte não possui agora qualquer função social geral – seu cultivo se torna uma atividade altamente especializada, e sua apreciação é limitada a relativamente poucos.
A apreciação está sujeita a mudanças tanto quanto os costumes sociais e estilos artísticos. No momento atual, em que a arte é tão pouco integrada ao modo predominante de vida, prevalece o distanciamento crítico. O entusiasmo da Renascença, a autoconfiança do século XVIII e a crença no progresso do século XIX deram lugar a uma atitude eclética, um desejo pela procura de valor artístico nos produtos de qualquer estágio da civilização. O crítico que aplica tal critério exclusivamente artístico não pergunta, porém, o que o artista fez ,mas sim como ele o fez. Ele usa o termo “significância” em detrimento de “beleza”, uma vez que essa última pode significar coisas amplamente diversas para diferentes pessoas. Mover-se de sala a sala em um museu ou galeria de arte é experienciar o impacto vital que é produzido por toda arte, não simplesmente aquela de um período. Uma pessoa pode encontrar seu ideal de beleza na harmonia serena de um vaso ou estátua grega, outra nos nítidos contornos de um mosaico Bizantino. Os gostos podem variar, mas o poder de comunicação da experiência estética reside nas criações artísticas em si.
Outra questão surge se formos andando pela galeria de arte e dissermos: “Essa pintura transmite um sentimento de êxtase espiritual, ou aquela, de sofrimento mordaz”. Para muitos, essa é a característica essencial da obra. Para o crítico, que aplica um critério puramente estético, o “conteúdo” emocional da pintura é uma coisa bastante separada de sua “forma significante”. A tarefa do pintor é reconciliar ambos esses elementos, para representar o que vê na natureza e experiência humana e, ao mesmo tempo, atingir a ordem formal que confere ao seu trabalho a qualidade de arte. Uma situação similar se dá na música (embora sons musicais não representem nada na natureza): a música tem, com frequência, sido descrita como uma linguagem das emoções, mas em bases meramente estéticas, seria mais preciso defini-la como a arte de dar ordem significativa aos sons. Nessas condições, uma obra musical pode derivar seu valor de seu significado expressivo e emocional, ou então simplesmente da organização musical de seus sons.
Como é de praxe, a música serviu durante um longo período de aprendizagem como um meio de comunicar pensamentos externos a si própria, antes de adquirir as formas de ordem que a tornaram algo importante tomado por si só. Das antigas entoações de cânticos e canções heroicas ao complexo entrelaçar de vozes na polifonia, era quase exclusivamente um veículo às palavras – a música de dança seria a única exceção, e mesmo aqui a organização era imposta de fora. Através de tais associações, a música acumulou as conotações emocionais que hoje nos parecem inseparáveis de sua natureza; mas em todo caso. ela deve possuir sua própria ordem significativa, e isso pode existir sem qualquer “sentido” subordinado. Valorizar uma obra artística por sua significância “pura” ou por seu conteúdo emocional é uma questão de temperamento, gosto e treinamento pessoais. É obviamente possível combinar as duas abordagens. Mas tão logo consideramos o argumento concreto da arte, somos postos em contato com o pensamento e as experiências do artista e seu ambiente. Nossa apreciação é realçada se compreendermos suas intenções e sua configuração mental. E uma vez que o impulso à criação artística não se restringe a tempo ou espaço algum, tampouco a quaisquer estágios de desenvolvimento civilizacional, deveremos encontrar arte com valor significativo em qualquer um desses estágios.
A vida social revela uma evolução de formas simples a formas complexas (isso não constitui em si um critério de valor). A arte, como uma expressão daquela vida social, talvez testemunhe uma evolução paralela, mas isso não afeta necessariamente seu valor: ela pode ser boa ou ruim em qualquer etapa. Assim sendo, a evolução no sentido de progresso não possui qualquer relevância à arte em seus aspectos sociais. Possui relevância, contudo, para o desenvolvimento dos recursos da arte em si, os quais são capazes de possibilitar experiências artísticas que não seriam alcançáveis de outro modo. Existem, portanto, duas maneiras de comparar nossa reação a uma obra simples (como uma canção folclórica) e outra complexa (como uma sinfonia): a primeira seria perceber que cada uma constitui algo único, garantindo perfeita satisfação estética. Que comparação seria possível entre coisas tão diferentes? Esse é o julgamento do purista estético. A segunda (que seria a do hipotético “homem sensato”, esse tão útil artifício ficcional), seria reconhecer que a sinfonia desencadeia registros de pensamento e emoção que não são possíveis em uma canção popular: as inter-relações fascinantes de uma grandiosa estrutura musical, os contrastes de humor, de tensão e repouso, e a riqueza adicional da cor e sonoridade orquestral. Uma não é melhor do que a outra, mas a sinfonia é resultado de um processo de evolução sem o qual tais experiências variadas seriam inatingíveis. A diferença não é meramente de tamanho. Uma longa sinfonia não oferece necessariamente experiência mais rica do que uma curta (muito embora talvez precise de um espaço mais amplo para desenvolver suas implicações). A diferença é de qualidade: a sinfonia pode fazer o que uma canção não se propõe a fazer. Isso é trabalhar o óbvio, mas é uma qualificação necessária da visão que rejeitaria a concepção de evolução artística por completo. Essa talvez tenha sido uma atitude natural em um momento em que a pesquisa histórica começava a iluminar períodos remotos e negligenciados. Não há mais motivo para temer que qualquer parte de nossa herança cultural seja subestimada.
Há mais razão para apreensão em uma noção superficial que possui certa circulação: a de que todas as artes compartilham características comuns em cada época. Isso dá origem a uma nomeação tendenciosa e ilusória de períodos (“Música Renascentista”) e a atribuições, a uma arte, de qualidades distintivas de outra. Também assume que as artes acompanham uma à outra passo-a-passo em seus respectivos desenvolvimentos técnicos, ou que a música de Pérotin, por exemplo, seria comparável à arquitetura da Notre-Dame de Paris, onde foi executada. Tais noções não têm qualquer relevância para o desenvolvimento histórico concreto e as características ricamente variadas dos povos europeus.
A arte exerce seu impacto na sociedade, pois emana de níveis mais profundos em que os seres humanos compartilham uma natureza comum. O artista difere do artesão por sofrer um impulso emocional que o guia à atividade criativa. Ele não pode dispensar a experiência técnica do artesão (os construtores de catedrais góticas testemunharam o colapso de muitas de suas torres centrais antes dessa lição ser aprendida). Como o artesão, o artista deve ter a habilidade de controlar e dar ordem aos elementos materiais de seu meio – atividades mentais e manuais contribuem grandemente para tal fim técnico. Mas há um aspecto da obtenção da ordem que jaz a uma camada mais profunda que a técnica no sentido de habilidade adquirida. A mente humana está constantemente recebendo impressões através dos sentidos, e a parte dela que chamamos memória não está de modo algum totalmente sob nosso controle consciente. As impressões são armazenadas e, com ou sem nossa vontade, interagem umas com as outras para produzir novas combinações e assim tornar-se parte de um amálgama total da experiência. É dessas fontes que o artista deriva as ideias germinais que são a base de sua criação final. Toda pessoa difere de todas as outras na soma de suas experiências e em seus poderes de absorção. Toda pessoa também compartilha algumas características comuns com outros membros da comunidade a que pertence. Uma plateia de europeus ouvindo uma sinfonia de Beethoven mostrará graus variados de resposta enquanto pessoas, mas como um grupo, eles compartilharão um entendimento comum daquela convenção musical particular. O mesmo não pode ser dito de um grupo de ouvintes orientais. Seu arcabouço de impressões foi construído dentro de convenções que excluem a europeia.
A convenção artística é então uma forma de ordem que alcançam as mentes criativas, em parte por meios técnicos cônscios, em parte por processos modulares preliminares, involuntários, se realizando abaixo do nível consciente. A extensão desse esforço consciente difere, é claro, com diferentes artistas – os cadernos de esboço de Beethoven demonstram os processos reais de trabalho, etapa por etapa, enquanto a espontaneidade de Schubert é um mote. Mas seja qual for o grau de técnica consciente na obtenção da ordem, não há dúvidas de que o ímpeto criativo, que é a força condutora impulsionando o artista a criar, vem de uma fonte ainda mais profunda, do vulcão, por assim dizer, que existe nas profundezas de toda personalidade humana. Esse substrato se expressa, no nível mais baixo, em paixões e instintos animais que exigem satisfação. A pessoal normal os liberta em relacionamentos pessoais, e suas energias superabundantes podem ser gastas no esporte, em jogos e hobbies. A saída para tipos mais assertivos talvez esteja em atividades competitivas como a guerra, a política, os negócios. Para outros tipos, a saída pode ser encontrada em perseguições intelectuais que os conduzem a uma descarga de energia muito além da mínima necessária para uma vida confortável. Todas essas atividades derivam da necessidade vital sentida por cada pessoa de preencher sua personalidade, conquistar, tornar-se potente.
Um novo fator entra em jogo no caso do artista. Ele não apenas se mostra capaz de fazer, mas de obter estilo em sua maneira de fazer. Essa é uma das maneiras em que ele supera o artesão. Ele não somente cria, mas cria algo único, que possui significância por sua imaginação criativa. No interior dele repousa uma ideia germinal latente: ele é guiado por uma compulsão emocional para desenvolvê-la. Ele possui a habilidade técnica para comunicá-la. E então, uma obra de arte vem ao mundo. Mas não termina por aí. Ele vive numa comunidade cujos membros cresceram com experiências similares às dele próprio: eles compartilham seu impulso expressivo, em algum grau. Possuem um estoque de impressões que está fadado a coincidir com as dele em muitos pontos. E quando estão de frente para a obra artística terminada – que traz suas próprias aspirações a um foco –, são impelidos a se identificarem com o artista e a desfrutar da satisfação vicária da criação. A experiência artística se completa na resposta emocional do recipiente: aqui jaz o poder da arte, na relação sutil entre o criador e o pretenso criador. Por meio de sua imaginação superior, o artista dá uma nova interpretação às experiências de vida comuns e, assim, amplia a visão de todos que recebem sua comunicação. Ele o faz não como um mestre ou um orador ao nível intelectual, mas por meio de um lampejo de esclarecimento que revela ao homem ordinário a elevação e a profundidade de sua natureza. O artista nos toca nas regiões mais íntimas de nossa experiência. Podemos não alcançar todos o poder e o sucesso, ou nos deslumbrarmos com o intelecto e a beleza, mas todos nós vivenciamos desejos e desapontamentos, alegrias e tristezas. Em algum grau, todos nós sentimos nosso desamparo em um mundo de estranhos acasos. Alguns depositam confiança na concepção religiosa de um mundo que transcende este mortal. Na arte, contudo, as provas e os medos mesmos desse mundo presente são transmutados em beleza e elevados a um plano onde o sofrimento individual perde sua aplicação meramente pessoal.
O valor do artista para uma comunidade reside, portanto, nos dons que ele traz a ela através de sua imaginação, superando o meramente útil, e assim contribuindo para a herança permanente da civilização. Ainda que tais dons sejam pessoais e singulares, o artista depende da sociedade em que vive em um aspecto essencial. Seja qual for sua habilidade latente, ele não é capaz de desenvolvê-la em isolamento. A tradição corporativa é a base de seu ofício, e a demanda popular garante a oportunidade para seu exercício. As ideias e ideais de uma comunidade ditam as formas e a moldura dentro das quais o artista opera. É ele quem as dota de significância artística, mas, antes de tudo, depende delas para a direção tomada por seus próprios pensamentos e intuições. Ele também depende da sociedade para os veículos físicos da expressão de tais pensamentos nos termos de sua arte particular. Precisa de materiais e de trabalho para seus edifícios e seus adornos, e de recursos cada vez mais elaborados para a execução de sua música. Tais necessidades materiais foram sempre providas pela igreja ou corte, pelo município ou patrono privado, para dar continuidade a seus ideais ou atingir um estilo de vida mais abundante. Sob essas condições, o artista pode trazer seu trabalho à fruição – na ausência de tal ambiente, seu gênio deve repousar dormente. A vida cultural da Europa é a história de incontáveis parcerias desse tipo entre artista e sociedade.
(Capítulo I de A Música e a Mente Europeia. Tradução de Andras Jucksch Ellendersen)