Adaptando a mitologia do herói criado por Stan Lee, a série da Netflix conta com uma abordagem mais adulta e dramática, mantendo o foco em problemas do cotidiano urbano.
Quando uma série da Marvel focada na figura do Demolidor – e ambientada em seu então rudimentar Universo Cinematográfico – foi anunciada, todos encararam essa notícia com ceticismo. O ator escalado para interpretar o personagem talvez não fosse o adequado, e depois do fiasco da adaptação do Homem Sem Medo (2003) de Ben Affleck, todos esperavam pelo pior. Em verdade, após o sucesso do colorido The Avengers (2012), ninguém contava com uma série de super-heróis com tons tão cinzas, obscura, violenta e autoral como foi a aclamada primeira temporada de Marvel’s Daredevil – talvez a melhor produção cinematográfica do gênero já produzida até então, ficando atrás apenas do insuperável Watchman (2009).
Absolutamente fiel ao legado de Frank Miller do período em que esteve a frente dos quadrinhos do herói, a série capta corretamente a essência do Demônio de Hell’s Kitchen: enquanto heróis como os Vingadores enfrentam ameaças cósmicas, invasões alienígenas, e outros, como o Dr. Estranho, encaram inimigos místicos e criaturas semi-mitológicas, o Demolidor (e todos os outros vigilantes que ganhariam suas próprias séries posteriormente) lida com um universo macabro composto por traficantes de drogas, sequestradores de crianças, assassinos de aluguel, assaltantes, redes de tráfico humano, gangues, cartéis e todo o ranço da violência urbana inerente a uma sociedade dominada pela barbárie empresarial-capitalista – nos fazendo lembrar que, mesmo num mundo onde existem super-soldados, gigantes verdes, martelos mágicos e homens com trajes robóticos, a violência micro-política segue sendo um fato sociologicamente denso e relevante.
A narrativa, que aborda as consequências da destruição parcial de Nova Iorque após os eventos de The Avengers, é extremamente feliz ao descrever realisticamente a estrutura do crime organizado em um eixo tripartido, clivado entre as oligarquias/setor financeiro/setor empresarial, a política e, de modo mais sub-reptício, organizações esotéricas, retratando a ascensão de tal eixo ao poder na medida em que vai reconstruindo e remodelando a cidade em ruínas, dentro de um esquema amplo de especulação imobiliária que, em última instância, afeta drasticamente a vida do proletariado urbano nova-iorquino e, mais especificamente, da população pobre que reside em Hell’s Kitchen e nas periferias circunvizinhas. E é justamente no seio de uma tal contradição de classe que o percurso heroico do advogado cego Matt Murdock encontra sua gênese.
Murdock é um personagem complexo e marcado por múltiplas camadas. Tendo perdido a visão na infância em um acidente envolvendo resíduos químicos (acidente que ampliaria suas modalidade sensoriais num grau supra-humano), Murdock é um mix de católico (espiritualmente), ninja (marcialmente) e boxeador (moralmente). Advogado e justiceiro irregular, sente-se conectado ao seu solo (ainda que viva em um dos principais centros de desenraizamento do mundo) a ponto de decidir viver na corda bamba para protegê-lo “daqueles que estão destruindo minha cidade”, enfrentando sozinho uma gama de figuras homicidas do sub-mundo do crime, galgando posições até chegar ao topo da pirâmide e ter sua vida transpassada pela presença enigmática de Wilson Fisk, o Rei do Crime, monumentalmente interpretado por Vincent D’Onofrio (que parece ter nascido para o papel).
Qualquer adaptação que possamos ver do icônico vilão originado nas páginas de The Amazing Spider-Man, fica ofuscada pela brilhante leitura feita por D’Onofrio do personagem.
Fisk é uma figura análoga a sujeitos como Marcelo Odebrecht e Eike Batista: um grande oligarca do setor da construção civil que maneja a criminalidade de perto. Originário do subúrbio de Hell’s Kitchen, nasce pobre, mas enriquece por meio de suas atividades ilícitas. É o típico exemplo do empresário de sucesso que vive nas sombras e para o qual “legalidade” e “ilegalidade” são termos intercambiáveis, homogeneizados no caldeirão do poder. Um mix de cão raivoso, estrategista de guerra e imperador compassivo, sua violência milimétrica obedece a uma tábua de valores atada à noção de Progresso: demolir áreas residenciais para construir arranha-céus (e ampliar os mega-lucros das oligarquias) não passa de um movimento para realizar as potencialidades do território.
Surpreendentemente, essa contradição imobiliária (batida, clichê em algum grau) cimenta o enredo da série e vai se diluindo numa batalha sangrenta pelo poder, cheia de reviravoltas e momentos memoráveis. O herói que emerge destes acontecimentos representa os anseios de uma classe trabalhadora que só quer viver sua vida, e o vilão, uma casta de investidores, rentistas, financistas e figurões corporativos ávidos por lucro e acumulação de poder indefinida. De um lado, os produtores sedentários, aqueles que só querem permanecer onde se enraizaram – do outro, os nômades parasitas: luta de classes. Antagonismo de classes em sua forma mais radical.
De resto, a série é cinematograficamente irretocável. Seus arranjos narrativos funcionam e não deixam furos. As cenas de luta são quase que como uma melodia, com destaque para a excepcional “cena do corredor”, claramente inspirada no clássico Oldboy (2003). Veja abaixo:
Num momento cinematográfico onde produções do gênero de super-heróis saturam o cinema de todos os lados, Marvel’s Daredevil tem o mérito de fugir dos lugares-comuns, nos entregando uma série consistente em seus próprios termos, esteticamente bonita e coerente com questões pertinentes ao nosso tempo. Um verdadeiro deleite para os fãs da mitologia dos quadrinhos.