Lembrada como a grande obra-prima do já infelizmente falecido Ariano Suassuna, gozando de grande e plenamente justificada popularidade nacional, o Auto da compadecida é um dos grandes momentos da dramaturgia nacional e mesmo da literatura mundial. Parte desse sucesso, aqui no Brasil, é fruto da bem-sucedida adaptação cinematográfica de 2000, com Fernanda Montenegro e Matheus Nachtergaele, sucesso de público e de crítica, diversas vezes reprisado na TV aberta até hoje.
A peça, encenada pela primeira vez em Recife, narra as peripécias dos dois protagonistas entre o mundo material e o mundo espiritual: o arteiro João Grillo − esperto e astuto − e seu companheiro, fiel escudeiro, uma espécie de Sancho Pança às avessas, meio abobalhado, meio palerma, Chicó.
Perfeitamente integrada à tradição satírica antiga e ao romance picaresco europeu, com os dois pés afundados na literatura de cordel e na oralidade nordestina, a peça é uma gigantesca e poderosa sátira social, com elaboradíssima concepção estilística e com sofisticado uso da linguagem, que mescla com impecável destreza o alto e o baixo, o grotesco e o sublime, o sagrado e o profano, exatamente como nos textos de Menipo, de Luciano, de Lucrécio e de toda a tradição da sátira medieval e do renascimento, que tem como principal característica a macarrônica união da cultura popular e erudita, gerando um tipo de prosa ao mesmo tempo exuberante e excêntrica.
Grilo, herói responsável por todos os episódios do enredo, é o típico protagonista picaresco, que utiliza de sua esperteza e sagacidade para desnudar impiedosamente a sociedade corrupta em que vive, bem como para desmascarar as estruturas de poder reinantes, revelando toda sua hipocrisia e teatralidade, sempre com um humor escancaradamente desavergonhado.
No primeiro ato da peça, João quer enterrar um cachorro, e exige do padre todas as extravagâncias eclesiásticas do ritual católico: ele quer missa e quer a missa em latim! O clérigo, furioso, recusa e repreende João, afirmando que isso seria uma diabólica, agourenta e imperdoável missa negra, certamente mal vista pelo todo-poderoso. Grilo, então, alega mentirosamente que o cachorro pertence ao Major Moraes, poderoso senhor feudal daquela vila no interior do nordeste. O padre imediatamente muda o tom e cresce os olhos diante da oportunidade de fortalecer os laços entre o clero e a plutocracia dominante, e aceita rezar a missa, benzer o cachorro e finalmente enterrá-lo. Nessa cena já temos a primeira “profanação grotesca” − pra usar a expressão de Bakhtin − da peça, onde um ritual sagrado é transformado em bufonaria carnavalesca e, despido de seus ares sublimes, torna-se nada mais que uma convenção social terrena, simples, comum e carnal, um verdadeiro “rebaixamento material”.
Suassuna foi acusado de ser anti-clerical, o que é evidentemente absurdo, já que era católico fervoroso, admirador da monarquia e repudiava com veemência a república e o secularismo moderno. Ler o Auto da compadecida como um tratado contra a Igreja é típico de leitores que não têm fôlego o suficiente para um mergulho mais profundo no texto, e logo retornam à superfície com conclusões precipitadas e frequentemente equivocadas. Por ser um escritor satírico, nada escapou à sua corrosiva canetada, nem a Igreja, nem o matrimônio, nem o comércio, e nem mesmo o cangaço e a figura mítica do cangaceiro. Suassuna ridicularizou a todos e expôs, através de Grilo e Chicó, como são frágeis enquanto instituições sociais, sendo muitas vezes, na verdade, convenções burguesas escravas da avareza, da luxúria e da burrice.
Severino, cangaceiro que aterroriza a vila, entra na igreja, quase perto do último ato, e encurrala todos os personagens: Grilo, Chicó, o padre, o padeiro corno e sua esposa. Depois de disparar tiros e mostrar que não está ali para brincadeira, chega até Grilo, que mais uma vez precisa usar de sua esperteza para escapar da morte. Severino está certo de que precisa matar os dois, João e Chicó, mas no último momento é vítima da sagacidade malandra de Grilo, que arquiteta toda uma história para ludibriá-lo. Depois de encher uma bexiga com o sangue de um gato morto e escondê-la debaixo das roupas de Chicó, João diz pro cangaceiro que tem uma gaita mágica capaz de ressuscitar os mortos e, melhor ainda, isso lhe foi revelado em sonho pelo padre Cícero pessoalmente! Severino, com os olhos esbugalhados, exige prova, e diz que dará um tiro certeiro em João e, logo depois, soprará a gaita para ver se ele realmente irá levantar e andar. Grilo, risonho e desesperado, tremendo de nervoso, diz que tem uma ideia melhor: vai golpear com uma faca seu amigo Chicó e depois irá ressuscitá-lo com a gaita. Severino, crispado de desconfiança, aceita e apenas assiste. Grilo acerta com a faca a bolsa debaixo da roupa do amigo, que cai fingindo estar morto, ensopado de sangue de gato. Logo em seguida, João começa a tocar o instrumento, fazendo com que Chicó magicamente de fato se levante: uma paródia infernal da ressurreição de Lázaro dos evangelhos. Severino lacrimeja feito criança abandonada, certo de que foi o próprio padre Cícero que lhe enviou aquela gaita para sua proteção. Pede para morrer com urgência: quer ascender aos céus e tocar o manto sagrado de seu “Padim Ciço”. Chicó, então, está livre, mas João não tem a mesma sorte.
O último ato da peça é de tom majoritariamente sublime. É a cena do julgamento das almas e tem como figura central Maria, a Compadecida. Junto com Jesus e o encourado (o diabo), eles debatem sobre o destino de todas aquelas almas viajantes e a virgem Maria, a juíza suprema, é responsável por tentar salvar todos da danação eterna. Todo o ato é irretocavelmente bem escrito e, inclusive, pode funcionar isolado da peça, mais ou menos como O grande inquisidor funciona fora dos Irmãos Karamázov, e equilibra, como na tradição picaresca e satírica de Menipo e Petrônio, as duas modelações e formas de representação juntas: a grotesca e a sublime.
Se a alguns incomoda o tom excessivamente áspero da pena de Suassuna, é preciso lembrar de duas coisas: primeiro, que Ariano descansa no mesmo salão de outros grandes mestres da sátira, como Swift e Rabelais (que vale lembrar, era padre e não deixou de ridicularizar o clero francês quando preciso), e segundo, das palavras do gramático inglês William Cobbet que, quando perguntado sobre a natureza excessivamente severa de seus escritos, respondeu:
«Sim, grosseiro, e deve ser assim em um caso como esse. Swift nos aconselhou a não cortar blocos com navalhas. Qualquer instrumento de gume é delicado demais para esse tipo de trabalho: uma picareta, que perfura com uma ponta e arrasta com a outra, é a ferramenta adequada para esse tipo de trabalho».
Queria parabenizar ao Mateus Pereira por trazer de forma descritiva esse texto maravilhoso sobre essa obra prima que é o Auto da Compadecida de Suassuna. Ótimo texto.
Obrigado pelo comentário, Camila.