O Frágil Trono de Al-Julani

“No novo equilíbrio que se delineia, a Síria corre o risco de se tornar não um aliado secundário, mas um posto avançado estratégico dentro do bloco construído entre Israel e monarquias do Golfo como Emirados, Bahrein e Arábia Saudita, com o apoio direto dos Estados Unidos.”

Introdução

A Síria de Ahmad Sharaa, conhecido pelo nome de guerra Abu Mohammad al-Julani, está hoje no centro de uma transformação tão rápida quanto desestabilizadora. Após mais de uma década de guerra civil, insurgências jihadistas e intervenções estrangeiras, o país se encontra sob a liderança de uma figura que, até poucos anos atrás, era considerada parte integrante da galáxia salafista radical e chefe indiscutível do Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), uma das milícias islamistas mais poderosas a atuar no noroeste da Síria. A ascensão ao poder de Julani, consolidada após a deposição de Bashar al-Assad em dezembro de 2024, marca um evento sem precedentes na história política do Levante: pela primeira vez, um ator emergido do jihadismo armado tenta se transformar em um governo reconhecido, buscando ao mesmo tempo legitimidade internacional e alianças estratégicas com ex-inimigos históricos.

No centro desta guinada está o acordo em processo de normalização com Israel, apoiado pelos Estados Unidos e por algumas monarquias do Golfo. Um movimento que reverte completamente a orientação histórica da Síria baathista, outrora eixo central do “Eixo da Resistência” e refúgio para movimentos palestinos como o Hamas e o Jihad Islâmico Palestino. O entendimento, favorecido por Washington e legitimado pela promessa de estabilidade regional e suspensão das sanções, tem, no entanto, um preço altíssimo: a renúncia ao apoio à resistência, a marginalização da causa palestina e a exposição a tensões internas cada vez mais perigosas.

Este texto se propõe a analisar as implicações desta transição, nos planos geopolítico e interno. Por um lado, a inserção da nova Síria no bloco israelo-ocidental corre o risco de desintegrar definitivamente o Eixo da Resistência e de acentuar as fraturas entre atores regionais, relançando lógicas de guerra por procuração. Por outro, a transformação do HTS em uma coalizão de governo evidencia todas as contradições de um projeto nascido no terreno da insurreição, desprovido de coesão ideológica e de uma visão estatal compartilhada.

Através de uma reconstrução dos fatos recentes, uma análise da natureza compósita do HTS e uma comparação com precedentes históricos como Afeganistão e Líbia, o ensaio pretende mostrar como a Síria pós-Assad não entrou em uma fase de normalização concluída, mas sim em uma nova temporada de fragilidade sistêmica, na qual a paz aparente coexiste com riscos de implosão violenta. Um equilíbrio precário que poderia transformar a Síria não em um ator soberano, mas em um campo de batalha multinível, no centro de novos arranjos de poder e velhas ambições regionais.

O Fim do Eixo da Resistência?

O acordo entre Israel e a nova Síria liderada por Julani, reportado por fontes israelenses como o Channel 12 e a Kan News, prevê uma cooperação estratégica nos planos de inteligência e segurança para combater o Hezbollah e conter a influência iraniana no Levante[1]. Não se trata apenas de um entendimento diplomático, mas de um verdadeiro terremoto geopolítico: pela primeira vez, um dos ex-membros centrais do “Eixo da Resistência” se coloca abertamente ao lado de Israel e de seus aliados.

Esta passagem marca a ruptura da frente que, por anos, uniu Teerã, Damasco, Hezbollah e Hamas em uma lógica de oposição à hegemonia americana e à presença israelense na região. A Síria, que havia construído sua projeção estratégica no apoio à resistência pan-arábica e na aliança militar com o Hezbollah e com os movimentos palestinos, abdica agora daquele papel histórico e se realinha com o cordão anti-iraniano promovido por Israel, Estados Unidos e as monarquias do Golfo.

O novo governo, nascido da transformação do Hay’at Tahrir al-Sham de uma coalizão insurgente jihadista em um sujeito estatal reconhecido, se apresenta como um interlocutor funcional aos interesses israelenses e americanos. Não é mais a Síria que sustentava a “luta armada” contra a ocupação, mas uma Síria que se insere plenamente na estratégia regional iniciada com os Acordos de Abraão: uma estratégia que visa integrar regimes árabes pró-ocidentais na esfera israelo-norte-americana, em função anti-iraniana[2].

A causa palestina, já isolada, perde outro pilar histórico. Damasco, que havia abrigado por anos as sedes do Hamas e do Jihad Islâmico, retira-se de fato do cenário da resistência, enfraquecendo tanto a legitimidade da causa quanto a capacidade de coordenação entre as forças que ainda se opõem a Israel. Um sinal evidente chegou em abril de 2025, quando as autoridades sírias prenderam dois expoentes do Jihad Islâmico Palestino, confirmando uma guinada repressiva em relação às facções historicamente aliadas[3]. O golpe não é apenas militar: é sobretudo moral. A “normalização” com Israel por parte de um ator historicamente identificado com a resistência transmite uma mensagem clara: a sobrevivência dos regimes vem antes da solidariedade pan-arábica.

No novo equilíbrio que se delineia, a Síria corre o risco de se tornar não um aliado secundário, mas um posto avançado estratégico dentro do bloco construído entre Israel e monarquias do Golfo como Emirados, Bahrein e Arábia Saudita, com o apoio direto dos Estados Unidos. Diante deste arranjo, o Eixo da Resistência — que une atores xiitas como o Irã e o Hezbollah a formações sunitas como o Hamas e o Jihad Islâmico — aparece cada vez mais isolado e vulnerável. Diante deste arranjo, o Eixo da Resistência — que une atores xiitas como o Irã e o Hezbollah a formações sunitas como o Hamas e o Jihad Islâmico — aparece cada vez mais isolado e vulnerável. Esta frente regional alternativa, fundada em milícias, ideologia e dissuasão, encontra-se hoje na defensiva. Sua sustentação é agora mais política do que militar. Neste contexto, o povo palestino permanece, mais uma vez, excluído dos novos cálculos geopolíticos, sacrificado no altar da estabilização aparente.

No entanto, se o reposicionamento da Síria produziu efeitos disruptivos na cena regional, no plano interno o novo regime parece tudo menos sólido. A aproximação com Israel e a abertura em relação aos Estados Unidos não representam uma cisura na história do HTS, mas sim a extensão coerente de uma estratégia que desde o início privilegiou a queda de Assad em detrimento de qualquer visão ideológica orgânica. O HTS nunca fez da luta contra o Ocidente a sua bandeira, e já durante o conflito sírio manteve relações indiretas ou convergências táticas com atores ocidentais e regionais.

Contudo, esta abordagem pragmática, útil à sobrevivência do movimento em contextos fluidos, nunca foi uniformemente compartilhada entre as suas várias almas. O risco, hoje, é que esta divergência exploda justamente no momento em que o HTS tenta se transformar em autoridade de governo. Para compreender se o novo regime poderá efetivamente se consolidar, é necessário partir do interior: da estrutura, da lógica e das contradições constitutivas do Hay’at Tahrir al-Sham.

A Legitimidade Frágil do Novo Regime

Para compreender as fragilidades que ameaçam a sustentação política do regime de Julani, é essencial partir da composição interna do Hay’at Tahrir al-Sham. A coalizão nunca foi um ator ideologicamente unitário, mas sim uma estrutura militar flexível que agregou milícias provenientes de percursos, territórios e visões diferentes. Em sua formação em 2017, o HTS uniu facções salafistas-jihadistas, grupos tribais locais, ex-combatentes da al-Nusra com ambições regionais e formações de orientação mais pragmática, interessadas em preservar poder territorial e influência social.

Esta heterogeneidade criou uma tensão constante entre a autoridade central — encarnada pela figura de Julani — e os vários comandos locais. Algumas brigadas permaneceram ligadas a uma ideologia pan-islâmica transnacional, outras se adaptaram às lógicas do poder local, transformando-se em atores híbridos entre guerra e administração. O controle do território — particularmente na província de Idlib — é frequentemente garantido mais pelo consenso clânico e pela força militar do que por uma real adesão a um projeto político comum.

O HTS nasce em 28 de janeiro de 2017 da união de vários grupos salafistas-jihadistas, incluindo Jabhat Fateh al-Sham (ex-Frente al-Nusra), Jaysh al-Ahrar, Liwa al-Haqq, Jaysh al-Sunna, além de fragmentos de Nour al-Din al-Zenki e outros pequenos grupos. No momento de sua formação, o HTS representava a tentativa de reunificar uma galáxia jihadista síria profundamente fragmentada, reduzindo a competição interna e fortalecendo a frente contra o regime de Assad e os atores internacionais a ele aliados.

A natureza compósita do HTS se reflete em uma estrutura que se assemelha mais a uma federação tática de milícias do que a uma organização centralizada. As brigadas que dele fazem parte conservam frequentemente suas próprias cadeias de comando, territórios de referência e especificidades ideológicas. Algumas estão fortemente enraizadas nos subúrbios rurais de Idlib e Aleppo, enquanto outras operam com maior autonomia em zonas periféricas ou montanhosas. Este mosaico de entidades armadas, embora formalmente submetido à liderança de Julani, age com graus variáveis de coordenação e disciplina.

Além disso, a coalizão atravessou ao longo do tempo várias fases de acomodação: absorveu novos grupos, expulsou outros, sofreu deserções e reconfigurações. Algumas facções se desvincularam por divergências estratégicas ou por acusações de desvio ideológico, mostrando como o HTS é mais uma plataforma flexível do que uma estrutura rígida.

Antes de chegar à liderança do novo regime, o HTS representou um laboratório militar e ideológico onde coexistiam almas profundamente diferentes. Algumas brigadas provinham do universo salafista mais radical, com uma postura ideologicamente rigidamente antiocidental e orientada para uma visão teocrática do Estado islâmico. Outras formações, embora compartilhassem a hostilidade contra Assad, eram movidas por lógicas pragmáticas e locais, mais atentas ao controle do território do que a um projeto doutrinário coerente. Havia ainda grupos com uma forte identidade tribal ou regional, enraizados em comunidades montanhosas ou rurais específicas, para os quais a pertença ao HTS era funcional para proteção, recursos ou prestígio.

A coexistência destes atores sempre impôs um equilíbrio instável, com tensões latentes entre os defensores de um projeto político centralizado sob Julani e aqueles que visavam conservar margens de autonomia local. Estas tensões nunca foram totalmente aplacadas e poderiam facilmente ressurgir agora que o HTS tenta a transição de ator insurgente para poder estatal. O novo regime liderado por Julani é, portanto, o resultado de um compromisso político e militar entre componentes muito heterogêneos, unidos pela comum oposição a Assad, mas profundamente divididos sobre a visão do Estado, as relações com o exterior e a gestão do poder. O HTS, desde sempre mais uma coalizão oportunística do que um movimento ideologicamente monolítico, não possui as estruturas de legitimidade típicas de um Estado moderno: falta-lhe consenso popular unificado, instituições civis sólidas e uma visão compartilhada do futuro sírio.

O enraizamento territorial destes componentes varia: na província de Idlib, o HTS mantém ainda um controle substancial, enquanto em outras áreas — como Hama, Aleppo ou o campo de Latakia — a influência reduziu-se ou fragmentou-se, abrindo espaço para grupos rivais ou administrações paralelas. As divisões internas do HTS refletem-se também nas divergências sobre a gestão dos serviços, do poder judiciário e da educação religiosa, elementos que minam a credibilidade do esforço institucional.

A complicar o quadro, fora desta área central, existem atores que escapam completamente ao controle de Julani, em primeiro lugar as forças curdas no nordeste (SDF/YPG), apoiadas pelos Estados Unidos. Estes grupos, embora opostos ideologicamente ao HTS, constituem um bloco territorial alternativo com estruturas administrativas mais estáveis e relações internacionais mais consolidadas. A presença curda, juntamente com bolsões de resistência lealista, contribui para definir um quadro geopolítico no qual Julani não pode governar nem com plena soberania, nem com legitimidade universal.

Neste contexto, a passagem de grupo insurgente jihadista a governo reconhecido no plano internacional marca uma fratura de legitimidade que não pode ser preenchida simplesmente com a aquisição do poder formal. A adesão aos interesses ocidentais e israelenses, concretizada com a renúncia formal à reivindicação do Golã e a expulsão das históricas organizações palestinas de Damasco, poderia ser lida por muitas franjas internas como uma traição ideológica. O governo Julani está, portanto, exposto a uma dupla erosão: por um lado, perde o apoio das massas islamistas mais radicais; por outro, não consegue construir uma nova base social ampla e compartilhada. A falta de um processo de transição institucional inclusivo amplifica esta fragilidade, lançando as bases para uma potencial crise de governabilidade.

Fragmentação e Risco de Golpe: Os Precedentes Históricos

A Síria pós-Assad encontra-se agora a enfrentar uma das transições mais complexas do mundo árabe contemporâneo. As experiências históricas demonstram como a queda de um regime autoritário, na ausência de um projeto político compartilhado e de uma estrutura institucional credível, pode abrir cenários de violência prolongada, anarquia militar e guerras intestinas.

Um primeiro caso emblemático é o do Afeganistão pós-1992. Após o colapso do regime pró-soviético de Najibullah, as várias facções dos mujahidin — uma frente que por mais de uma década havia resistido à ocupação do Exército Vermelho — encontraram-se subitamente sem um inimigo comum. O vazio deixado pelo Estado central não foi preenchido por nenhuma autoridade unificada: o governo provisório liderado por Burhanuddin Rabbani nunca foi aceito por todos os componentes armados.

O conflito entre as principais facções — Jamiat-e Islami (liderada por Massoud), Hezb-e Islami (de Hekmatyar), Junbish-e Milli (de Dostum) e as formações xiitas hazara como Hezb-e Wahdat — degenerou rapidamente em uma guerra civil generalizada. Cabul foi literalmente reduzida a escombros entre 1992 e 1995, alvejada por foguetes, cercos e vinganças sectárias. As diferenças étnicas (entre pashtuns, tadjiques, hazaras e uzbeques) sobrepuseram-se às rivalidades políticas e às ambições pessoais, enquanto cada senhor da guerra recebia apoio de potências externas: Paquistão, Irã, Arábia Saudita, Rússia, Índia.

Neste contexto de caos e fragmentação, os Taliban emergiram em 1994 no sul do país, apresentando-se como força moralizadora e unificadora. Apoiados pelo Paquistão e por setores religiosos conservadores, conseguiram avançar rapidamente. Em 1996, tomaram Cabul, executaram publicamente Najibullah e instauraram um emirado islâmico fundado em uma rígida interpretação da shari’a. A guerra civil afegã não apenas continuou, mas transformou-se em um conflito entre a autoridade centralizada dos Taliban e a Aliança do Norte, em um ciclo de violência que durará até a intervenção americana de 2001.

Um segundo exemplo, mais recente, é o da Líbia pós-2011. A revolta contra Kadhafi, inicialmente unida sob a bandeira do Conselho Nacional de Transição, desintegrou-se logo após a sua queda. O problema central foi a proliferação descontrolada de milícias locais — islamistas, tribais, regionais — que haviam participado do conflito e que, uma vez concluída a guerra, recusaram-se a depor as armas ou a integrar-se em um exército nacional. Cada milícia tornou-se um ator autônomo, controlando bairros, aeroportos, arsenais, rotas comerciais e prisões improvisadas.

A partir de 2014, o país dividiu-se política e territorialmente: de um lado, o governo de Trípoli, sustentado por milícias islamistas e apoiado pela Turquia; do outro, o governo de Tobruk, ligado ao Exército Nacional Líbio de Khalifa Haftar, apoiado pelo Egito, Emirados Árabes Unidos, França e Rússia. Este dualismo agravou-se com o tempo, transformando a Líbia em um teatro permanente de guerra por procuração, onde as potências regionais e internacionais se confrontam indiretamente por influência e recursos (petróleo, tráficos migratórios, armas).

Entretanto, na falta de uma autoridade unificada, desenvolveu-se uma economia informal dominada por extorsão, milícias criminosas e tráfico de seres humanos. Áreas urbanas inteiras (como Benghazi ou Misurata) foram destruídas ou militarizadas, enquanto as instituições estatais — da saúde à justiça — dissolveram-se ou sobrevivem apenas no papel. Mesmo as tentativas de mediação da ONU chocaram-se com a falta de um ator suficientemente forte para impor um compromisso duradouro.

A Síria corre hoje um risco análogo. A aliança interna ao HTS é frágil e poderia dissolver-se assim que o cimento anti-Assad perder força. A percepção de que Julani traiu a causa jihadista ou firmou pactos excessivos com Israel e os Estados Unidos poderia empurrar facções dissidentes a se revoltarem. Isto poderia resultar em um conflito intra-jihadista ou em uma insurreição fragmentária. A “guerra dentro da revolução” — como já ocorrido no Afeganistão e na Líbia — corre o risco de abrir uma nova temporada de instabilidade, com um retorno à lógica dos feudos armados.

A nível geopolítico, a desagregação do HTS e do novo governo abriria espaços para intervenções externas. Potências regionais como o Irã ou atores residuais ligados ao antigo regime poderiam tentar explorar a situação para restabelecer influência, enquanto Estados como a Arábia Saudita e os Emirados poderiam escolher apoiar facções rivais para garantir-se uma alavanca negocial. Em síntese, a Síria pós-Assad poderia transformar-se em um novo campo de batalha para milícias concorrentes e potências estrangeiras, invalidando qualquer perspetiva de estabilização e comprometendo o futuro político do país.

Reação em Cadeia: O Retorno da Guerra por Procuração

O Irã é o grande derrotado da transição síria. Ao contrário da Rússia, cujo envolvimento na Síria sempre teve um caráter pragmático e circunscrito — visando preservar bases militares e um ponto de apoio no Mediterrâneo — Teerã investiu no país recursos muito mais profundos, vendo na Síria um nó essencial do “Eixo da Resistência”. Para Moscou, a Síria foi sempre uma plataforma de projeção estratégica; para o Irã, uma fronteira ideológica, um corredor operacional em direção ao Hezbollah, e um território onde consolidar a sua visão da ordem regional. A queda de Assad e a normalização com Israel minam pelas raízes este constructo, marcando uma derrota bem mais estrutural para Teerã. e um corredor operacional vital em direção ao Hezbollah no Líbano. e um corredor operacional vital em direção ao Hezbollah no Líbano[4]. Por mais de uma década, a Síria representou para o Irã uma plataforma logística, ideológica e militar para a projeção da sua influência no Levante. Teerã investiu ali imensos recursos econômicos, mobilizou milícias xiitas transnacionais (iraquianas, afegãs, libanesas), construiu infraestruturas e estabeleceu uma rede de influência que ia muito além da simples aliança com Assad.

A nova Síria liderada por Julani, aliada a Israel e inserida em um quadro ocidental, representa uma inversão de rota estratégica que mina os alicerces do eixo xiita na região. Neste cenário, o Irã poderia reagir como já fez no passado com atores sunitas, mesmo hostis do ponto de vista ideológico, como os Taliban após 2001: apoiando-os temporariamente para atingir um inimigo maior. Após a invasão estadunidense do Afeganistão, apesar do histórico antagonismo entre Teerã e o regime talibã (que em 1998 quase culminou em um conflito armado após o assassinato de diplomatas iranianos em Mazar-i-Sharif), o Irã estabeleceu contatos táticos com a nova insurgência talibã. Ofereceu refúgio a dirigentes, forneceu armamentos seletivos e facilitou o trânsito logístico em algumas áreas ocidentais do país, na tentativa de desgastar a presença americana e reequilibrar a influência paquistanês-saudita. Este precedente demonstra como Teerã está disposta, em casos extremos, a colaborar com inimigos ideológicos quando a aposta estratégica o justifica[5]. Franjas jihadistas hostis a Julani poderiam receber apoio militar, logístico e propagandístico de Teerã na tentativa de desestabilizar a nova ordem síria.

No entanto, uma eventual intervenção iraniana não se esgotaria em uma manobra unilateral: poderia desencadear uma reação em cadeia. Os atores regionais hostis ao Irã — Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, o próprio Israel — poderiam responder alimentando o conflito sírio com recursos adicionais, armas e ingerências. A Turquia, temendo um retorno da influência xiita perto de suas fronteiras, poderia reforçar seu apoio a facções anti-iranianas ou tentar uma ação direta para proteger seus interesses no norte do país. Os Estados Unidos, já patronos da normalização, poderiam intensificar a assistência a Julani em nome do contenção do Irã.

Abrir-se-ia assim uma nova frente de guerra por procuração, onde a Síria voltaria a ser um campo de batalha multinível entre potências rivais, invalidando qualquer tentativa de estabilização. Neste cenário, a luta não seria apenas entre Julani e seus opositores internos, mas entre blocos geopolíticos inteiros, com a população síria mais uma vez aprisionada entre alianças externas, ambições ideológicas e cálculos de poder.

Conclusão

A transição síria para o governo liderado por Julani não representa apenas uma nova fase política para o país, mas uma profunda mutação do equilíbrio regional do Médio Oriente. A Síria não é mais a fortaleza ideológica da Resistência, nem o corredor estratégico do eixo Teerã–Beirute; é agora uma peça realinhada dentro de um sistema promovido por Israel e pelos Estados Unidos, sustentado por algumas monarquias do Golfo, e construído para conter o Irã e erradicar as suas redes militares na região.

No entanto, esta transformação tem um caráter frágil e irresoluto. A legitimidade do novo regime sírio não se funda em um consenso popular amplo nem em uma arquitetura institucional sólida, mas em um equilíbrio precário entre as várias almas do Hay’at Tahrir al-Sham, coaguladas ao longo do tempo em torno de uma liderança mais militar do que política. As diferenças ideológicas, territoriais e estratégicas que atravessam a coalizão poderiam explodir no momento em que faltarem as condições extraordinárias da guerra ou na presença de escolhas demasiado divisivas por parte da liderança. A abertura a Israel, a marginalização da causa palestina e a expulsão das históricas formações da Resistência são decisões que correm o risco de desencadear fraturas irreversíveis.

O pior cenário — mas não irrealista — é o de uma nova implosão síria, desta vez não mais ao longo da falha entre regime e oposição, mas no interior do próprio campo que conquistou o poder. Como demonstram os casos históricos do Afeganistão pós-1992 ou da Líbia pós-2011, a queda de um regime não garante o nascimento de um Estado; ao contrário, na ausência de um verdadeiro pacto político nacional, corre o risco de produzir fases adicionais de guerra civil, domínio das milícias e interferências externas.

O Irã, grande derrotado desta transição, poderia tentar sabotar o novo equilíbrio sírio apoiando facções dissidentes ou promovendo formas de desestabilização assimétrica. Mas cada reação iraniana seria apenas o estopim de uma resposta mais ampla: Arábia Saudita, Israel, Turquia e Estados Unidos poderiam voltar a operar ativamente no tabuleiro sírio, reativando a lógica da guerra por procuração que já devastou o país nos anos passados.

No final, a Síria corre o risco de ser novamente reduzida a um espaço disputado, mais do que a um sujeito soberano. Um laboratório geopolítico onde se jogam partidas maiores do que o seu destino interno, e onde a estabilização prometida pela “normalização” revela-se, mais uma vez, um frágil véu sobre tensões não resolvidas. A paz, como no passado recente, poderia revelar-se apenas uma trégua aparente.

Fonte: Eurasia Rivista

Notas

[1] Israel confirms direct normalization talks with Syria, in «The Cradle», 30 giugno 2025, https://thecradle.co

[2] Israel holding talks with Syria on ‘Sharaa regime’ joining Abraham Accords, in «The Times of Israel», 29 giugno 2025: http://www.timesofisrael.com/report-israel-holding-talks-with-syria-on-sharaa-regime-joining-abraham-accords/

[3] Syria detains two leaders of Palestinian Islamic Jihad, in «Reuters», 22 aprile 2025: https://www.reuters.com/world/middle-east/syria-detains-two-leaders-palestinian-islamic-jihad-2025-04-22/

[4] Gabriele Repaci, La Siria dopo Assad, in «Eurasia. Rivista di studi geopolitici», n. LXXVIII – Nel mirino dell’Occidente, maggio 2025.

[5] Iran’s Cooperation with the Taliban Could Affect Talks on U.S. Withdrawal, RAND Corporation, 9 agosto 2019: https://www.rand.org/pubs/commentary/2019/08/irans-cooperation-with-the-taliban-could-affect-talks.html

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Gabriele Repaci

Colaborador da "Eurasia. Rivista di studi geopolitici". Escreve para a revista científica "Das Andere - L'Altro"; já colaborou com a Associação Político-Cultural Marx XXI e com a Arianna Editrice.

Artigos: 55

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