A Profecia Autorrealizável de Marilena Chauí

Quando menos se espera, múmias ocasionalmente ressurgem de seus sarcófagos e mausoléus para atazanar o quotidiano das pessoas normais. Ocasionalmente, essas múmias são também os “intelectuais orgânicos” do setor político momentaneamente dominante no país.

É o caso da há muito mofada Marilena Chauí, caso típico do filósofo que por saber muito e profundamente sobre um tema (no caso dela, Baruch Espinosa) acredita ter desvendado todos os mistérios políticos e sociais entre o céu e a terra.

Marilena Chauí deixou claro que não havia mudado uma única vírgula de suas opiniões pretéritas. Ela reiterou que ainda odiava a classe média, que ainda era marxista e que se recusava a entrar no século XXI.

A primeira coisa notável, mas não surpreendente, é que Chauí apresenta-se, assim, orgulhosamente, como paradigma desse marxismo oitocentista que se recusa a adaptar-se às condições objetivas do mundo contemporâneo. Não é a postura típica de uma corrente filosófica que autoatribui-se a designação de “ciência”.

Como estamos já cansados de saber, porém, o marxismo pós-Marx tornou-se uma religião, com um dogmatismo estéril intercalado por arroubos de genialidade vindos de heterodoxos inconformistas e iconoclastas.

Mas Chauí está muito longe de um Lênin ou um Gramsci. Está mais para um Bernstein velho e caduco erguendo o punho impotentemente contra “a burguesia”.

De todo modo, nem é desse aspecto retrógrado (e, portanto, reacionário) que eu queria falar, e sim da obsessão de Chauí pela mítica “classe média”, a classe que, segundo a velha, oprime os pobres e bajula os poderosos.

Em primeiro lugar, a leitura que Chauí faz da classe média é meramente moral – como é típico dos uspianos. De uma perspectiva sociológica, a classe média, que correspondia classicamente mais ou menos ao conceito de “pequena burguesia”, mas que hoje também abarca algumas outras camadas como o setor gerencial, a pequena e média burocracia estatal, os professores, etc., pertence à categoria mais ampla dos “setores produtivos” tal como definido por Alain Soral.

Proletariado e classe média, juntos, correspondem ao povo tomado em sua acepção jacobina frente aos setores sociais privilegiados. Boa parte da estratégia de dominação social contemporânea se apoia precisamente em colocar proletariado e classe média um contra o outro através de uma confusão de interesses e de identidades.

A própria realidade das classes, também, é diferente hoje. Proletariado e classe média estão se degenerando no precariado, a classe dos trabalhadores privados de garantias sociais e laborais, dos trabalhadores intermitentes e temporários. O fenômeno é socialmente transversal.

Chauí, portanto, está falando de uma classe média dos anos 60, quando a realidade da classe média hoje é outra, completamente diferente.

E quando ela fala que a “classe média oprime o pobre e bajula o rico” não se deve tomar isso de maneira literal. Ela está apenas dizendo que a classe média não vota como ela acha que ela deveria voltar e não se submete calada ao “admirável mundo novo” que o PT e o PSOL querem construir no Brasil.

De fato, hoje podemos dizer retrospectivamente, que “a classe média elegeu Bolsonaro”, mas essa classe média bolsonarista não teria sido criada precisamente por essa trupe de intelectuais, ativistas e porta-vozes do progressismo brasileiro?

Ora, a classe média brasileira é heterogênea. Como já foi dito, ela abarca empreendedores, profissionais liberais, pequenos e médios agricultores, burocratas, professores, etc. Trata-se de uma esfera ampla, com interesses conflitantes, preocupações diversas, etc. Ela nunca esteve unificada.

Não obstante, a classe média elegeu Lula em 2002. Foi graças a ela, e não ao “proletariado” que Lula chegou à presidência do Brasil.

Mas mesmo tendo votado em Lula, figuras como Marilena Chauí fustigavam publicamente a classe média, acusando-a de todos os males possíveis e imagináveis. Chauí, em sua mente perturbada, forjou essa imagem da classe média protofascista, sempre prestes a ir contra “a classe trabalhadora” (ou seja, Lula) caso não seja suficientemente “vigiada”.

Essa imagem foi construída puramente por Chauí para que o PT tivesse um “inimigo” a combater.

O problema é que, como todos já deveriam estar cansados de saber, a designação de um inimigo arrisca a sua mobilização e consolidação. No dia em que milhões de brasileiros se descobriram repentinamente designados como inimigos pelo mesmo governo no qual eles próprios haviam votado nasce a semente do bolsonarismo.

Chauí criou um inimigo imaginário e esse inimigo acabou emergindo dessa classe média. Não era previsão, mas profecia autorrealizável: atacando a classe média, a mesma reagiu instintivamente de maneira a se consolidar. Buscando uma resposta para confrontar a inimizade petista, a classe média encontrou o bolsonarismo e ela é, hoje, menos heterogênea do que no passado.

É quase como se Marilena Chauí tivesse sido uma das mães do bolsonarismo enquanto movimento.

Politicamente isso é comum: o inimigo é produzido e reproduzido pela própria força que jura combatê-lo. Ainda assim, porém, a classe média em 2022 uma vez mais apoiou Lula em peso.

Para a múmia Chauí, porém, não basta. A classe média permanece o “mal absoluto” nessa mente caduca que mais que ao século XX, pertence ao século XIX.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 55

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