Do giz ao G8

“Quem possui consciência — quem sabe do ser-aí, do seu estar-no-mundo reflexivo — passa a enxergar o mundo globalizado como plástico, fútil e vazio, incapaz de resolver os problemas que cria. É nesse vazio que se busca a razão existencial: na própria identidade, no que faz de si e de seus pares singulares, como estelas que iluminam o universo.”

– Yukihiro Aoyagi

1. O ofício da crítica

Completo dez anos na cátedra de História. Escolhi este caminho carregando muitas dúvidas – e foi um sábio professor quem me disse: “Meu papel não é apontar soluções, mas criticar”. Desde então, tenho conduzido meu ofício assim: professor de História e, ao mesmo tempo, crítico da vida.

Construir uma crítica não é fácil. Exige abandonar as paixões juvenis, compreender o mundo como foi – ou como é – e buscar uma percepção ponderada da realidade que nos cerca. Antes de seguir, peço desculpas aos leitores cristãos e sensíveis: às vezes, a História precisa ser contada com violência e ruptura, porque a verdade nem sempre é confortável.

Aprendi a amar as aulas de Introdução à História, comuns nas séries iniciais, mas o desafio maior veio nas séries finais, onde o raciocínio se torna mais complexo e exige maturidade que os adolescentes ainda estão formando. Alguns atingem esse nível mais tarde, e reencontrá-los nos corredores da vida é um dos maiores presentes desta profissão.

2. Japão e o dilema da fé estrangeira

Em uma dessas aulas avançadas, mergulhamos nas grandes navegações: marinheiros valentes enfrentando mares revoltos para chegar ao Oriente. Entre temperos indianos e porcelanas chinesas, os livros didáticos narram a chegada de portugueses e holandeses ao Japão – e a perseguição aos cristãos católicos pelo xogunato Tokugawa.

O passado, porém, não se deixa julgar com os olhos do presente. Já foi “julgado” em seu tempo. Podemos apenas condenar o que ainda persiste. O resto é o crime historiográfico do anacronismo. Não espero que adolescentes de quinze anos absorvam plenamente essa ideia. Ainda assim, quando uma aula menciona o best-seller japonês Chinmoku (Silêncio), de Shusaku Endo, ou o filme de Martin Scorsese, percebo o surgimento de um entusiasmo crítico – e, por alguns minutos, minha sala se transforma em uma corte revolucionária.

Admiro essa paixão juvenil, mas insisto na reflexão: “pensem antes de falar”, digo sempre. A historiografia nos obriga a recordar o triste destino daqueles homens, mas o raciocínio menos passional nos permite discernir que o xogunato Tokugawa compreendeu — com a sagacidade de quem sobrevivera a guerras civis — que a fé trazida do além-mar poderia ser manipulada como instrumento político. Já antes, alguns daimyos convertidos ao cristianismo negociavam com portugueses — armas em troca de escravizados —, provocando desequilíbrios que ameaçavam a estabilidade do arquipélago.

Essa atenção Tokugawa não era em vão: alguns anos antes, missionários portugueses haviam chegado a um conjunto de ilhas no Sul do Pacífico, que posteriormente passaram a ser chamadas de Filipinas. A conversão religiosa daquela população criou uma dependência cultural e espiritual da metrópole, abrindo espaço para a dominação por meio de uma administração colonial – e, no caso filipino, o processo levou apenas 50 anos a partir de 1521. O Japão manteve rotas comerciais com Manila até 1624, mantendo os líderes militares atentos aos mecanismos de assimilação e controle estabelecidos pelas potências marítimas.

Era, portanto, o risco de abrir fissuras em um território recém-unificado: uma espécie de balcanização avant la lettre, em que novas lealdades externas poderiam fragmentar a ordem que o xogunato buscava consolidar.

É difícil aceitar que o sangue dos mártires tenha servido de alicerce à formação de uma unidade nacional e de um Estado centralizado. Convido meus alunos a se distanciarem da emoção nesse momento; quase como se Hideyoshi Toyotomi levantasse a mão e apontasse para o outro lado do mar, mostrando o que poderia ter acontecido.

3. Paralelos históricos: Japão e China

Na China, aproximadamente na mesma época, cai a dinastia Ming e ascende a dinastia Qing. A instabilidade política, somada à imensidão do território, transformava o controle dos portos em um desafio quase hercúleo. Monitorar a entrada e saída de missionários, comerciantes e mercadorias revelava-se uma batalha silenciosa e constante, abrindo caminho para um cenário de caos que, séculos depois, seria lembrado como os “100 anos de humilhação”. A reação chinesa à influência estrangeira foi lenta, vacilante e inevitável.

Enquanto a romântica “Rebelião dos Boxers” desponta no século da Revolução Industrial, a “Rebelião de Shimabara” — protagonizada por cristãos japoneses derrotados pelo exército do xogunato — ocorre mais de 250 anos antes. Apesar da distância temporal e das particularidades culturais, ambos os episódios nos oferecem um espelho: padrões, paralelos e contrastes que se repetem através da história, mostrando como poder e fé se entrelaçam.

É nesse fluxo de acontecimentos — entre conflitos, negociações, sangue e diplomacia — que aprendemos a observar o passado sem precipitá-lo em julgamentos fáceis, reconhecendo a complexidade que molda nosso presente e nos convida a pensar, sempre, além do imediato.

4. Juventude e insatisfação

Fui jovem nos anos 1990. Enquanto parte da sociedade ainda sonhava com a leveza das sitcoms — esperávamos Seinfeld e Friends —, outros episódios da vida nos deixavam mais próximos do último episódio de Família Dinossauros. Nesse contexto de contrastes e inquietações, surgiam os primeiros protestos “antiglobalização”.

Alguns anos mais tarde, em 2001, minha vida ganhou um novo marco: minha mãe me deu uma agenda com uma capa peculiar, mostrando um rapaz de balaclava sobre um carro em chamas, no meio de um protesto. Só depois descobri que a imagem retratava a icônica manifestação contra a reunião do G8, em Gênova. Foi ali, meio que sem saber, sem ter sequer noção do que aquilo queria dizer, que me defini politicamente: quero ser insatisfeito… para desespero da minha mãe.

Poucos anos depois, adentrei a faculdade. Escolhi História, como Nguyen Giap; Humanidades, como Subcomandante Marcos.

5. Globalização e cultura

Esperava encontrar algum eco daquele posicionamento contra a globalização, mas apenas me recordo das palavras do renomado historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior: “A globalização não é um fenômeno recente, é um fenômeno antigo, por isso, imparável.” Para ele, a globalização remonta ao espalhamento humano pela Terra, evidenciada na diversidade de alimentos que consumimos hoje: a manga indiana, a batata andina, o quiabo africano.

Passei anos refletindo sobre isso. A perspectiva de um indivíduo é moldada pelas experiências e pela forma como ele age politicamente. O processo de globalização do século XVII, embora fosse a ponta de lança da burguesia mercantil, não tinha o poder de controlar o tempo e o espaço como ocorre a partir da Revolução Industrial.

É verdade que a “Rebelião dos Boxers” e sua tentativa de frear a influência ocidental não compreendiam que a globalização é histórica e contínua. Muitos esforços de resistência se mostraram inevitavelmente limitados. Os ensinamentos marciais chineses se revelaram insuficientes diante das armas de fogo, desenvolvidas e aprimoradas ao longo de séculos. Nesse contexto histórico, pode-se dizer que a China precisou abraçar a globalização para assimilar novas formas de organização política, social, industrial e militar. Mas isso só foi possível porque pôde subordinar o elemento técnico à cultura, preservando e adaptando sua própria tradição como base para o poder.

Esses padrões históricos encontram ecos no presente. A contraposição à globalização continua a existir. As rebeliões do passado, assim como as estratégias contemporâneas da China — desde a criação de redes sociais próprias até tecnologias de navegação por satélite — refletem tentativas de conciliar identidade, cultura e estratégia política diante de pressões externas.

6. Antiglobalização amadurecida

Pessoalmente, não me interessa se a globalização é antiga ou inevitável, como defende Durval Muniz. Para mim, ela se agiganta a ponto de revelar suas próprias fraquezas. Quem possui consciência — quem sabe do ser-aí, do seu estar-no-mundo reflexivo — passa a enxergar o mundo globalizado como plástico, fútil e vazio, incapaz de resolver os problemas que cria. É nesse vazio que se busca a razão existencial: na própria identidade, no que faz de si e de seus pares singulares, como estrelas que iluminam o universo.

E é aí que a antiglobalização surge. Amadurecida, como eu.

Vejo exemplos concretos dessa resistência: alguns indígenas que saíram das aldeias para estudar nas universidades decidiram queimar os livros — pois, à luz de suas experiências, eles não faziam sentido — e retornaram às aldeias para viver e resistir segundo suas formas mais tradicionais. Não se trata de rejeitar a tecnologia, mas de subordiná-la à cultura, à civilização, àquilo que dá sentido à existência coletiva.

Será que podemos pará-la? Talvez. Mas, seja como for, meu avião já está com os motores ligados, pronto para colidir contra quem tiver a ousadia de pensar o contrário.

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Yukihiro Aoyagi

Professor de História da rede pública de ensino, pós-graduando em Metodologia do Ensino, e membro da NR-AM.

Artigos: 55

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