Millennials, globalização e a promessa que nunca chegou
Era época de declaração de imposto de renda. Naquele dia, eu estava sentado em um sofá, esperando ser atendido pelo contador da família, quando, sobre a mesa de centro, encontrei uma revista de circulação nacional noticiando a vitória de Donald Trump. A publicação dava ampla cobertura ao fato e, folheando suas páginas, deparei-me com a seguinte frase – ou algo semelhante:
“A vitória de Donald Trump é a vitória dos derrotados (ou fracassados?) pela globalização.”
Imagino que a revista se referia à minha geração, nascida entre 1981 e 1996, conhecida como millennials ou geração Y. Já existem diversos estudos sociológicos sobre essa geração e como ela lida com o mundo — e não é minha intenção aqui produzir mais um. Prefiro, neste momento, lidar com os termos “derrotados” ou “fracassados”.
Toda publicação possui uma linha editorial, uma ideologia que orienta a construção das reportagens — e a tal revista é uma ponta de lança do pensamento neoliberal no país. Penso que aquele artigo talvez tenha sido escrito por um millennial que não se considera derrotado pela globalização.
Nossa geração cresceu com a promessa de que poderia alcançar as mesmas conquistas de seus pais, os baby boomers, nascidos entre 1946 e 1964. O mundo, anestesiado pela queda do Muro de Berlim e pela ascensão da Pax Americana, vendeu à classe operária a ilusão de que no “mundo livre” todos teríamos profissões incríveis, carros e casas. Seríamos a geração da transição do analógico para o digital. E no fim dos anos 1990, fomos invadidos por obras de ficção científica — esperançosa, na maioria das vezes…
Mas a queda das Torres Gêmeas, em 2001, foi o prenúncio do fim — para quem aceita que o fim existe. O mundo já não era mais unipolar, e surgiam outras alternativas ao universo que Friends nos fazia crer ser o único possível.
A verdade é que não havia espaço para todos os sonhos. As metrópoles tornaram-se megalópoles — “mortas e fálicas, com seu véu de pó e fumaça”, como já profetizava uma canção do rock nacional dos anos 1980. E a realidade nos deu o que ela pôde:
“A felicidade nunca chega, sempre está por vir; persegue-se a vida a vida inteira.”
E tudo, de repente, se tornou distante demais.
Meus colegas de trabalho, mais velhos que eu, não compreendem. Os da minha idade se afogam em remédios controlados. Atribuem culpa a tanta coisa, mas não percebem que talvez o fruto da nossa desesperança seja justamente essa felicidade que nunca chegou. Tento me censurar para não dizer em voz alta que, na verdade, essa felicidade nunca chegará.
Voltando ao primeiro parágrafo, é claro que nem todos fracassaram. Uma pequena parcela conseguiu ascender ao Monte Olimpo — o que, na prática, significa ter dinheiro o suficiente para comprar um apartamento maior que uma caixa de sapato, bem localizado, próximo ao trabalho ou a uma estação de metrô. O sistema deixou alguns vencerem para que a maioria não percebesse que talvez tenha sido enganada. Mas, paradoxalmente, até mesmo os vencedores… perderam.
Nossa pobreza nos força a escolher: uma casa própria ou uma família? Criar filhos tornou-se tão caro que passamos a humanizar animais. E talvez isso também tenha se tornado caro demais — a ponto de agora criarmos bonecos no lugar de cães e gatos.
“Nós não temos mais lugar”. Para Marc Augé, o ‘não-lugar’ é o espaço da supermodernidade: impessoal, provisório, destituído de identidade. Não é coincidência que a adolescência da geração millennial tenha sido vivida dentro de shoppings. Parte das nossas relações sociais foi construída em espaços genéricos, sem alma, largados entre lojas, cinemas e praças de alimentação. Quantos primeiros beijos foram dados em redes de fast-food? Quantas despedidas abafadas aconteceram em saguões de aeroportos ou rodoviárias, espalhando frustrações no anonimato das partidas?
Shopping centers, lanchonetes, aeroportos, rodoviárias — são todos não-lugares. Iguais em qualquer parte do mundo. Mas o que acontece quando deixamos de apenas habitar esses espaços e passamos a nos parecer com eles? Quando nós mesmos nos tornamos indistintos, deslocados, intercambiáveis? Talvez o drama da nossa geração seja este: não termos mais lugar no mundo, porque fomos formados em lugares que não pertencem a ninguém.
Entre o luto e a ilusão
Diante do desespero, há uma guinada quase inevitável à explicação política — ou, muitas vezes, à pseudopolítica. A maior parte das pessoas tenta encontrar no passado recente alguma forma de explicação segura. Meus colegas de escola menos afeitos à história e à geografia buscaram simplificações que não abalam suas crenças de promessa.
A culpa é dos comunistas, afirmam. E assim permanecem enlutados, presos a um mundo que já não existe — ou que talvez nunca tenha existido.
Esse luto permanente os impede de aceitar que não há promessa alguma. Ou que a única promessa que este mundo — liberal, produtivista, automatizado — é capaz de cumprir… é a de dor e sofrimento.
A lente, o salto e o mercado


Lembro de uma madrugada fria em São Paulo. Eu fotografava do parapeito de uma janela. Cada janela diante de mim era um mundo: umas com luzes apagadas, outras com pessoas acordadas, outras com gente dormindo. A lente da câmera me dava uma distância segura para observar a vida alheia — e, ao mesmo tempo, me mergulhava numa solidão cortante.
Olhei para baixo e pensei: “e se…?“
Naquele tempo, eu ainda acreditava que o problema era eu. Que o fracasso era meu. Que algo em mim estava quebrado.
Mas não era eu o problema. O problema estava naquilo que eu queria enxergar.
Tal como a câmera, troquei a lente da minha vida. E percebi que dar fim à minha existência, para quem construiu esse sistema, seria como descartar uma peça com defeito — simplesmente mais um item fora do padrão.
Defenderam tanto o indivíduo que tudo se tornou o indivíduo. E, com isso, a existência do próprio indivíduo deixou de importar. Nada mais existe: nem o indivíduo, nem a identidade, nem o lugar. Tudo foi transformado em produto de supermercado, com preço curto e prazo longo — como diria um disco famoso dos anos 2000.
O Estigma Cultural e o Suicídio no Japão


Como nipo-brasileiro, cresci ouvindo inúmeros comentários sobre a terra de meus antepassados — e a esmagadora maioria deles revela uma compreensível falta de conhecimento. Mesmo em círculos acadêmicos, há um tema recorrente que sempre me chamou atenção: o alto índice de suicídios no Japão.
Não é incomum encontrarmos artigos científicos ou de opinião sobre o assunto, e a conclusão costuma ser a mesma: a cultura asiática, especialmente do sudeste asiático, seria uma cultura de massacre mental. Embora haja um quê de verdade nisso, discordo frontalmente dessa explicação como fator principal. Os estudiosos, por vezes, não enxergam a realidade mais ampla — ou temem atribuir a culpa a fatores que não sejam puramente culturais.
O Japão é um caso emblemático. Durante mais da metade do século XIX, era quase literalmente um país medieval: dividido em domínios semelhantes aos feudos da Alta Idade Média europeia, com uma população ruralizada e organizada em estamentos. Parece inacreditável que, em apenas 40 anos, essa nação rivalizasse com o Império Russo e, poucas décadas depois, ousasse bombardear Pearl Harbor. Mesmo após ser atingido por duas bombas atômicas, o país alcançou, em cerca de um século, altíssimos índices de desenvolvimento econômico.
Se o estudioso se ativer apenas a esses números, sem olhar além das estatísticas, é fácil se impressionar positivamente. Mas a modernização japonesa também produziu exclusão, deslocamento e solidão.
Yasujiro Ozu e a Estética da Perda


Alguns artistas japoneses do pós-guerra já alertavam para essa outra perspectiva. Yasujiro Ozu, cineasta consagrado que serviu duas vezes no exército imperial, deixou suas preocupações bem claras em suas obras: Tóquio, a cidade moderna, veloz e lotada de “não-lugares”, já não possuía espaço para os rejeitados da modernidade.
Nas obras de Ozu, quase sempre está presente a figura do trem e da estação — novamente, domínios do não-lugar a que me referi na primeira parte deste ensaio. O trem que parte da cidade nos leva a outro ambiente — talvez mais próximo do Japão anterior à abertura ao Ocidente. Um Japão menos brilhante, menos barulhento, mais calmo, mais monótono. Um Japão que, talvez, ainda resista nas cidades de montanha ou nos pequenos portos de pesca — lugares destinados a desaparecer, já que até lá os jovens são fisgados pela indústria cultural e acabam tentando a ilusão de “vencer na vida” na cidade grande.
O homem, afastado do seu lugar de origem, longe de suas tradições e da sua comunidade, lançado numa selva de concreto onde ninguém compreende seu dialeto — onde todos buscam um espaço onde poucos poderão estar — está fadado, em muitos casos, a pôr fim à própria vida.
E quem disse que estamos imunes a isso?
Talvez só demos cabo da nossa existência de outra maneira.
O Leste Asiático parece ser um laboratório do sistema capitalista — ou melhor, do mundo pós-capitalista. Jovens, concentrando seu trabalho nas áreas de serviço, acordam, tomam café da manhã na rua, passam horas no trem até chegar ao trabalho. Saem do trabalho, tomam outro trem, passam no supermercado, compram algo pronto pra jantar e dormem — até que a rotina se repita seis vezes por semana.
Parece algo comum à nossa realidade na periferia do capitalismo. A diferença é que, na Coreia do Sul e no Japão, à exceção do espaço de trabalho, tudo pode ser feito sem dizer uma única palavra. Não há interação social. Não há sequer um “bom dia” à caixa do supermercado — que já foi substituída por uma máquina de autoatendimento. Um fetiche da burguesia ocidental, que acredita ser esse o ápice do triunfo tecnológico.
Paul Virilio acerta ao afirmar que a tecnologia quebra nossa noção de realidade — as duas horas no trem nos deixam cansados o suficiente para simplesmente aceitarmos a realidade sem questioná-la. Os espaços foram colapsados e engolidos pela velocidade. Aquilo que poderia nos dar mais tempo, em nome da lógica de mercado, nos rouba o tempo.
Qualquer leitor atento já deve ter percebido, a esta altura, a razão da introspecção dos habitantes desses lugares — e, por consequência, as taxas de baixa natalidade.
A Neurociência da Comunidade Perdida
Lembro dos estudos de uma cientista chamada Joan Chiao e de seu campo chamado “neurociência cultural”: ela apontava que asiáticos são, biologicamente, mais propensos à depressão, mas que essa condição era, até certo ponto histórico, superada pela experiência coletiva de vida.
Gosto dos exemplos das praças chinesas: sempre há um grupo de idosos praticando atividades em grupo. Um colega de trabalho descreveu certa vez uma situação curiosa naquele país:
“Se você sentar em um banco, abrir um jornal e começar a ler, em cinco minutos alguém estará sentado ao seu lado, lendo o jornal com você. Em dez minutos, já haverá um intenso debate, pois várias pessoas começaram a se juntar para ler o seu jornal e já começam a emitir opiniões.”
Os japoneses não eram tão diferentes: atividades laborais, recreativas e religiosas sempre foram coletivas. Tudo isso foi severamente abalado pelo processo de industrialização.
A Solidão do Homem Desenraizado
A tristeza do operário japonês suicida é a agonia do sujeito “liberto” das estruturas de pertencimento — estruturas combatidas pelo liberalismo: a família, a comunidade, a religião, a tradição. O sistema nos vende a ideia de que podemos ser tudo o que quisermos. Mas paradoxalmente, se posso ser qualquer coisa, então não sou nada — já que qualquer um pode ser aquilo que me cabia ser.
O trem, o metrô, o ônibus lotado — que me tira de casa e me transporta por não-lugares até o trabalho ou espaços de socialização — são lembretes de que tudo que existe desmancha no ar. Não há mais raiz, porque não há mais território.
Nós, os Derrotados da Globalização
Esse é o vazio millennial.
Nós, os derrotados pela globalização.
Alguns pularam dos prédios. Mas, tal qual uma erva daninha que insiste em nascer das rachaduras do asfalto, eu não quis perecer de tal forma.
O problema não sou eu. O problema não está em mim. A solução não é a realização de sonhos ou a superação pessoal. Está, primeiramente, em identificar que a estrutura da civilização liberal é feita para moer carne — e transformar tudo em massa uniforme.
Dos aviões intercontinentais, das espaçonaves e dos satélites que monitoram cada passo nosso, eles nos observam e nos massificam, enquanto mantêm-se uniformes no desejo de eclipsar as tradições — únicas capazes de redimir a existência sem fundamento.
No fundo, é o reenraizamento e a identidade coletiva que nos salvarão.
E você precisa enxergar isso.