Uma das prioridades do Pontificado de Papa Francisco foi garantir que o Vaticano teria uma voz em um mundo caótico e em transformação.


O pontificado do Papa Francisco chegou ao fim com a morte do Santo Padre em 21 de abril de 2025, deixando uma marca profunda na Igreja Católica e no mundo ao longo dos doze anos em que se desenvolveu. Vindo “do fim do mundo” em 2013 para assumir o trono pontifício em Roma, Francisco moldou uma projeção da Santa Sé absolutamente original, inclusive na trajetória do Vaticano nas relações internacionais.
Se, por um lado, deu continuidade aos ensinamentos de João Paulo II e Bento XVI no fortalecimento da doutrina social cristã, na crítica aos excessos da globalização e na defesa de um mundo pacífico baseado no diálogo e no respeito entre os povos, por outro, Francisco — cujo pensamento se fundamentava em estruturas distintas das de seus predecessores — acrescentou uma vocação que muitos definiram como “pós-ocidental” ao ecumenismo. Um impulso para centralizar as periferias, que o levou a compreender, antes de muitos líderes, que é justamente das feridas sangrentas das regiões esquecidas do mundo que podem brotar as sementes da divisão e do conflito.
Interpretando a “Guerra Mundial em Fragmentos” ou a “Guerra Fria 2.0” como fontes de um grande caos global desde 2013, o Papa Francisco utilizou todas as armas da diplomacia vaticana para costurar rupturas, amenizar crises e fomentar o diálogo em contextos problemáticos. Empregou o peso moral e diplomático da Santa Sé, frequentemente representado pelo Secretário de Estado Pietro Parolin, em contraponto às estratégias das grandes potências. Franciscano no nome e no espírito, uniu a vocação de “peregrino da paz” à necessidade de dialogar, sem preconceitos, com os “sultões” do mundo. Promoveu uma visão multipolar das relações internacionais e uma ideia complexa de ordem global baseada no diálogo.
Um papado “geopolítico”
Embora não fosse um teólogo de refinada profundidade como Bento XVI, nem um diplomata de formação como Pio XII e João XXIII, ou um “papa guerreiro” como João Paulo II, Francisco demonstrou notável perspicácia no exercício da liderança, revelando-se um dos pontífices mais políticos do último século. Seu papado foi político porque buscou sanar divisões e rupturas nas relações internacionais — e, por fim, geopolítico porque, em diversos contextos, conseguiu fazer convergir sua visão teológica com o papel diplomático da Santa Sé.
Seus relacionamentos com as três grandes potências globais — China, Rússia e Estados Unidos — ajudam a entender essa postura.
Com a China, Francisco construiu um caminho de diálogo que se materializou numa intensa diplomacia cultural e no desejo de firmar o tão aguardado Acordo sobre os Bispos (2018), renovado em 2020 e 2022. A República Popular é o grande sonho da diplomacia vaticana, e o Papa sabia que concessões em temas sensíveis ao Ocidente, como Hong Kong — por mais dolorosas — eram necessárias para preservar o multilateralismo como instrumento de paz. Sem se reconhecerem formalmente, China e Vaticano legitimam-se como atores favoráveis à distensão entre potências. Um legado que deve perdurar.
Com a Rússia, a relação foi marcada por complexidade. Em 2013, Francisco alinhou-se com Vladimir Putin ao se opor a ataques dos EUA contra a Síria de Bashar al-Assad. O Papa aceitou o papel da Rússia como defensor fidei no Oriente Médio, manteve relações com Damasco (protetorado de Moscou) em nome dos cristãos perseguidos e até mostrou compreensão pelo cesaropapismo de Putin em tempos de paz, buscando aproximação com o Patriarcado de Moscou. Somente após a invasão da Ucrânia, em 2022, Francisco tornou-se mais crítico ao patriarca ortodoxo Kiril, chamando-o de “capelão do Kremlin”. Mas, em sua visão ecumênica, a Rússia ainda tinha um papel fundamental: daí o empenho do Vaticano em buscar a paz, tentando evitar uma “guerra civil” entre cristãos no coração de uma Europa cada vez mais marginalizada.
Com os EUA, os laços foram repletos de paixões políticas e vicissitudes. Francisco apoiou os esforços de Barack Obama para reabertura com Cuba, divergiu de Washington sobre a Síria, enfrentou resistência da ala mais radical do catolicismo americano durante o governo Trump e, apesar da afinidade geracional com Joe Biden, não conseguiu estabelecer uma ponte sólida devido a divergências sobre a Ucrânia e Gaza. Com o possível retorno de Trump, as relações permaneceram complexas.
O diálogo, a qualquer custo
Desde 2013 até hoje, o Papa Francisco e o Vaticano promoveram sua “ofensiva pela paz” independentemente do envolvimento das grandes potências nas crises globais. Na visão de Bergoglio, qualquer sinal de “Terceira Guerra Mundial em fragmentos” deveria ser enfrentado desde o início, para neutralizar riscos, abrir espaço ao ecumenismo e à tolerância, e criar bases para o diálogo. O foco nas periferias existenciais transformou-se numa busca quase universal pelo entendimento.
O Papa Francisco e o Vaticano deram voz aos marginalizados em Mianmar, começando pela tragédia dos rohingyas; alertaram sobre os repetidos atentados que fragilizaram a estabilidade do Sri Lanka;
criaram as bases para o diálogo entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição constitucional na Venezuela, persistindo até estabelecer canais de negociação que, em 2023, trouxeram esperança de um futuro processo eleitoral justo; e, sobretudo, voltaram sua atenção para a África e suas guerras esquecidas. Nesse continente, as “divisões” diplomáticas do Papa se materializaram através de revistas católicas como Nigrizia e La Civiltà Cattolica, que documentaram as “guerras negras” e conflitos civis no Congo, Sudão do Sul, Etiópia, República Centro-Africana e Burkina Faso. Ações concretas da diplomacia papal, como as da Comunidade de Sant’Egídio, criaram as condições para estabelecer pontes de diálogo.
Na República Centro-Africana e no Sudão do Sul, o papel ativo da Santa Sé foi, portanto, substanciado em uma verdadeira “geopolítica da misericórdia” que fundiu a postura política e o afluxo teológico em sua melhor forma. O papel do Vaticano, sob essa perspectiva, é o de facilitador de processos de paz em contextos locais difíceis e conturbados. De um promotor de diálogo onde a violência e a opressão prevalecem. O método é o do confronto sem preconceitos, independentemente da constatação de erros e razões. O objetivo é criar pontes de diálogo nas quais a política possa se unir ao confronto entre crenças e praticantes do bem comum. E abrir perspectivas de descontinuidade e esperança em um mundo em chamas. O que, hoje mais do que nunca, parece difícil de perseguir. E que precisamente nas periferias, para Francisco, é necessário começar a construir para dar o exemplo aos grandes atores com os quais o Vaticano dialoga sem preclusão e temores reverenciais. Uma lição que na “Terceira Guerra Mundial” em pedaços precisa ser redescoberta.
Fonte: InsideOver