O Papa Francisco faleceu e agora nos cabe analisar o seu legado e a importância do seu Pontificado.


Comentar sobre o Papa Francisco é complicado porque ele foi provavelmente o maior alvo de desinformação dentre os Papas do último século. Sim, em alguma medida mais até do que Pio XII e Bento XVI porque a desinformação contra Francisco às vezes assumia o tom de elogio e defesa (enquanto Pio XII e Bento XVI foram vítimas de difamação pura e simples).
Forças subversivas desejosas por se apropriar da autoridade papal, não raro colocavam palavras na boca do Papa, ou inventavam interpretações surreais e delirantes para os seus escritos e discursos. Do outro lado, também, os reacionários se acostumaram a teatralizar uma indignação permanente, com toda manifestação do Papa virando motivo para escândalo e drama.
Ao mesmo tempo, porém, o próprio Papa Francisco – extremamente midiático, adaptado à sociedade do espetáculo em sua era de virtualização – dava azo a ambiguidades com declarações e gestos confusos. Ademais, o fato de seus discursos não raro se assemelharem ao conteúdo de documentos oficiais da ONU e do Fórum de Davos no que concerne o ambientalismo oficial, o nomadismo cosmopolita, os direitos humanos, etc. (quase como se tentasse dar uma “leitura católica” dos fenômenos da pós-modernidade) também não ajudava.
A sua visão sobre a questão da imigração irrestrita parece inteiramente equivocada. Com um enfoque no sofrimento individual do imigrante, Francisco não visualizava que o estadista é como um pastor encarregado de cuidar das suas ovelhas, e que ele não pode sacrificar o seu próprio rebanho pela pretensão arrogante de salvar e se apropriar de todas as ovelhas do mundo (ainda mais, quando, do lado de fora da cerca, entre as ovelhas que aguardam, abundam lobos com pele de ovelha). O que Francisco demandava, portanto, era que os estadistas traíssem seus deveres e sacrificassem conscientemente seus próprios povos em nome da “humanidade”.
A Encíclica Fratelli tutti não é outra coisa senão a consagração desse discurso etnomasoquista e contraproducente em uma era de imigração em massa, apesar de outros aspectos dela serem bastante pertinentes e verdadeiros, como a crítica da especulação financeira e a sujeição da propriedade privada ao bem comum e à dignidade humana. Ela vai tão longe quanto defender concepções de governança global para gerenciamento de pandemias na linha do que foi apregoado por Klaus Schwab, criticando ainda os “populistas” por seguirem seu próprio caminho.
Uma leitura humanista católica do imigracionismo teria dado mais ênfase nas causas e estaria menos preocupada com constranger e admoestar os países que padecem com a ameaça da substituição demográfica.
Não obstante, também na Fratelli tutti encontramos um bom documento sobre o diálogo interreligioso sem ecumenismo. Apesar do próprio Papa ter tido momentos controversos e ambíguos, como aquele que envolveu a Pachamama, ele também conduziu uma ambiciosa projeção que aproximou de forma inaudita a Igreja Católica da Igreja Ortodoxa e da Igreja Anglicana, levando às melhores e mais próximas relações com essas outras expressões da Cristandade em séculos.
Em relação a outros temas, o que se viu foi a fusão entre a ambiguidade ou ineficiência comunicacional do Papa e o oportunismo desinformador da mídia. Especialmente no que concerne a questão LGBT, o aborto e o divórcio, onde o Papa Francisco buscou (talvez não da maneira mais adequada) a aproximação com os “sofredores”, mas sem realmente abandonar a doutrina católica em relação a esses tópicos.
A Encíclica Laudato si’ foi um esforço extremamente interessante de construir as bases de um ambientalismo integral católico, que não exclui o homem (como se dá no ambientalismo niilista), pondo em cheque o comportamento parasitário e rapace das elites econômico-financeiras, que devastam o mundo em nome da acumulação de capital. Mas em sua construção ela pressupõe como dado o “consenso científico sobre o aquecimento global”, cada vez mais questionável.
Também causava estranheza o seu rechaço pelas expressões simbólicas de hierarquia e poder, que fazem objetivamente parte do papel representativo da Igreja Católica. A Igreja tem como uma de suas funções representar o Reino dos Céus e, por isso, é símbolo de hierarquia, glória, etc., o que se expressa na pompa, nos ritos, e por aí vai.
Mas por outro lado, essa recusa da representação da transcendência através da estética se dava em favor da centralidade do amor aos pobres, aos fracos e aos necessitados, que jaz no coração do Evangelho. Também a Igreja se desenvolve dialeticamente, e em reação aos exageros da teologia da libertação, o Catolicismo experimentou um breve período de “fechamento” e “distanciamento” que coincidiu com a ascensão do neoliberalismo e do neoconservadorismo.
Em reação, por sua vez, aos exageros dessa abordagem, Francisco lavava os pés dos enfermos e dos refugiados, levava a sério a caridade e a misericórdia, e efetivamente atualizou a Doutrina Social da Igreja com uma competente crítica do capitalismo pós-moderno e suas consequências desumanizantes e desenraizadoras. Nesse sentido, foi um Papa com um olhar concentrado especificamente nos humildes do mundo e foi, correspondentemente, um Papa cuja virtude maior foi a humildade.
Em muitos outros temas, porém, ele foi a absoluta continuação do papado de Bento XVI, especificamente no que concerne o papel político e geopolítico do Vaticano no mundo. Expressão disso foi a postura do Papa em relação à Palestina, cujos cristãos ele contatou diariamente por mais de 1 ano para se certificar de seu bem estar. Mas também a intensificação do diálogo com a Rússia, o entendimento com a China e a conquista de uma reabertura católica em Cuba.
Todos esses são méritos imensos do Papa Francisco enquanto chefe de Estado, aos quais se somam a centralização de todas as atividades financeiras do Vaticano no Instituto para as Obras de Religião, potencialmente blindando o Vaticano contra a especulação financeira (tanto a externa quanto a interna).
Nesse sentido, o retrato final do Papa Francisco em sua morte é de um Papa “humano, demasiado humano”, tal como foi Pedro, cujo trono ele ocupou de forma digna e imperfeita por 12 anos.