Como a Síria foi destruída e o que vem por aí?

Com a queda da Síria diante das hordas terroristas dirigidas a partir da Turquia, de Israel e dos EUA, é necessário avaliar qual será o futuro dessas terras.

Turquia, Israel e EUA deram um golpe de mestre e infligiram uma derrota estratégica à Síria, à Rússia e ao Irã no Oriente Médio, basicamente transformando a Síria em uma Líbia.

Para entender como isso foi possível, sem se demorar muito no histórico de mais de uma década de conflito, é necessário recordar que a guerra internacional contra a Síria (que nunca foi uma guerra civil) começou a partir da Primavera Árabe, em que ONGs financiadas pelo Ocidente agitaram parte da população contra o governo e, em coordenação, grupos salafistas foram discretamente armados e financiados pelo Catar, pela Arábia Saudita e pela Turquia.

Assad então começou uma guerra sangrenta contra, simultaneamente, mais de três dúzias de diferentes grupos terroristas e separatistas pipocando em diferentes partes do país, com as piores situações do outro lado do Rio Eufrates com os curdos, no noroeste da Síria nos arredores de Idlib com forças salafistas apoiadas pela Turquia, eventualmente o ISIS no deserto perto do Iraque, druzos perto de Golã apoiados por Israel, e milícias salafistas apoiadas pelos EUA no sudeste, na fronteira com o Iraque.

Inevitavelmente, em poucos anos essas forças terroristas e separatistas chegaram a se apossar de 70% da Síria, até que Bashar Al-Assad, a contragosto, pediu ajuda à Rússia e ao Irã.

Com o apoio do Hezbollah, das milícias iraquianas, das Forças Quds do Irã, lideradas pelo General Qassem Soleimani, do Grupo Wagner e da Força Aérea da Federação Russa, Assad, que do contrário inevitavelmente seria derrotado, conseguiu recuperar o controle de aproximadamente 70-75% do país.

Para o Irã, a Síria era fundamental no projeto do Eixo da Resistência que levava do Irã ao Líbano e permitia ao Irã se projetar como um dos polos no mundo multipolar, eixo ao redor do qual se organizaria um Grande Espaço Imperial.

Para a Rússia, a Síria era fundamental por seu papel na garantia logística da Marinha Russa bem como parte de um cordão de segurança do Rimland meridional eurasiático.

E na medida em que Assad, graças aos russos, aos iranianos e aos libaneses, recuperou o controle da maior parte do país, iniciou-se a costura diplomática para reconciliar alguns setores rebeldes com o governo central, começando pelos rebeldes dos arredores de Daraa, os curdos e até mesmo os rebeldes de Idlib.

Esses diálogos, que se consolidaram nos Acordos de Astana, apontavam para uma nova federalização da Síria, uma nova Constituição, e uma série de outras modificações consensuais a serem implementadas no país. Os Acordos de Astana tinham como fiadores principalmente a Turquia, a Rússia e o Irã.

Mas enquanto Rússia e Irã levaram esses acordos a sério, a Turquia (e outros atores internacionais) usaram os Acordos de Astana como o Ocidente usou os Acordos de Minsk. Se os Acordos de Minsk foram usados para armar e treinar as Forças Armadas Ucranianas para uma invasão do Donbass – impedida pelo ataque preventivo russo da operação militar especial russa – os Acordos de Astana foram usados para armar e treinar o Tahrir al-Sham e o Exército Nacional Sírio e para coordenar a vitória na Síria.

Nessa operação atuaram instrutores ucranianos especializados em drones, suporte logístico e financeiro turco, as forças de inteligência e de ciberguerra de Israel, além do suporte de inteligência dos EUA. Mas nada disso explica a derrota de Assad.

A realidade é que a chave da vitória sobre a Síria se deu, basicamente, pelo suborno de vários generais sírios. Foi tão simples quanto isso. A Síria foi “derrotada” em 10 dias porque não houve qualquer batalha, apenas algumas escaramuças. Enquanto a Rússia bombardeava diariamente as posições terroristas, matando uns poucos milhares de salafistas, e os instrutores iranianos exigiam que os sírios ficassem e lutassem, o Exército Árabe Sírio simplesmente usava a artilharia enquanto recuava, em uma entrega ordeira e planificada do território do país.

Na prática, para que se veja o ridículo da situação, os russos provavelmente mataram mais salafistas do que os próprios sírios, apesar do país pertencer aos sírios e não aos russos.

A traição dos generais sírios é fácil de entender considerando os efeitos de mais de 10 anos de sanções acachapantes. O Exército Sírio é pago valores irrisórios porque o Estado praticamente não tinha dinheiro para manter os militares. Ademais, esses generais (e talvez outros elementos da elite síria) consideravam que Assad e seu governo quase monopolizado por alauítas representava um obstáculo para seus próprios projetos de poder.

Aqui, é claro, entrarão os agentes da Embaixada da França para dizer que a culpa é da Rússia (alguns dirão que é do Irã também).

As acusações são absurdas.

Sem a Rússia, Assad teria caído em 2015. A Rússia, ademais, tem bombardeado os terroristas diariamente, sem parar, há 10 dias e matou bem mais terroristas nos últimos 10 dias do que os sírios se dispuseram a fazer. A Rússia não ganha absolutamente nada com a queda de Assad e, naturalmente, não teria motivo algum para arriscar as suas bases e posições no litoral. Ao contrário, a Rússia sofreu na Síria uma derrota estratégica.

As pessoas que exigem histericamente que a Rússia deveria salvar a Síria de si mesma são, simplesmente, propagandistas russofóbicos. A Rússia não tinha como lutar pela Síria no lugar dos próprios sírios. Foi o mesmo com o Nagorno-Karabakh. O governo armênio se recusou a enviar tropas e lutar pelo território, para depois culpar a Rússia pela invasão do Azerbaijão. O único erro da Rússia foi o de repetir o falido modelo dos Acordos de Minsk com a Síria.

O mesmo vale com o Irã. Autoridades iranianas declararam que jamais abandonariam ou trairiam o Irã e anunciaram ontem que enviariam tropas, drones, munição e veículos para ajudar a defender a Síria. Mas não existe muito que o Irã pudesse fazer se a Síria se recusou a se defender e caiu em 10 dias. Não existe “força expedicionária” que pudesse ser preparada e enviada para a Síria em menos de 1 mês.

Ademais, é necessário analisar o fato de que Assad só pediu ajuda à Rússia e ao Irã a contragosto. Ademais, as elites sírias sempre pressionaram para manter a presença estrangeira em um nível mínimo, praticamente forçaram a maior parte dos russos e iranianos a saírem do país após a “vitória” sobre o ISIS e, especificamente em relação aos iranianos, os proibiram de montar bases em seu território.

No delírio patrioteiro burguês, as elites políticas e militares sírias acreditaram no mito da sua própria autossuficiência, quando todos sabiam que eles só conseguiram sobreviver graças à ajuda estrangeira. Nesse sentido, o pequeno-nacionalismo sírio contribuiu para pavimentar a queda do governo Assad ao recusar a integração da Síria em um projeto geopolítico multipolarista mais amplo, o que exigiria ampla presença russa e iraniana no país.

Nesse sentido, Turquia, Israel e EUA planejaram o golpe contra a Síria no melhor momento possível.

A Rússia está ocupada com a Ucrânia e poupando tropas pelo alto risco de uma guerra em larga escala contra a OTAN eclodir a qualquer momento. Ademais, a Rússia estava com efetivo reduzido no país, por causa tanto do conflito ucraniano quanto por causa da pressão síria por sua saída.

O Irã, por sua vez, está em alerta total para o confronto com Israel, além de possuir um presidente conciliacionista e ser mais rechaçado pelas elites sírias até do que a Rússia.

O Hezbollah, por sua vez, estava engajado em um duro conflito com Israel, e apesar de ter vencido o conflito sofreu perdas materiais e humanas importantes.

Não haveria momento melhor do que esse para atacar.

Para a Turquia, alimenta-se a ilusão geopolítica de um insustentável neo-otomanismo, único triunfo que Erdogan pode apresentar até agora.

Para Israel, é a desculpa perfeita para implementar o Plano Oded Yinon na Síria, utilizando a desintegração da Síria como desculpa para penetrar o território vizinho e anexar mais um pedaço dele.

Agora, se engana quem acredita que a Questão Síria acabou. Ao contrário, é o começo de uma nova fase de caos.

Manter um Estado unificado com todas essas várias facções terroristas e separatistas é praticamente impossível. Assad era o “inimigo” que permitia unificá-los em uma causa comum, mas agora Assad não é mais o Chefe da República Árabe da Síria.

O mais provável é alguma desintegração – mesmo que apenas de facto – do território sírio. As últimas informações indicam que alauítas e cristãos, que compõem parte considerável das forças militares sírias mais dispostas a resistir, não querem mais lutar por sunitas ingratos aparentemente ansiosos por serem governados pelo ISIS. Quanto aos curdos, será impossível reconciliá-los com as facções terroristas apoiadas pela Turquia.

Vários outros grupos terroristas possuem desavenças sérias e ocasionalmente violentas entre si. Os terroristas vindos da Chechênia e da Ásia Central, por exemplo, estão na Síria para decapitar e traficar mulheres, e não estão muito interessados no discurso à-lá Zelensky de Al-Julani

A libianização da Síria será um evento trágico que impulsionará novas ondas de refugiados para todo o mundo, mas a transformação do eixo Latakia-Tartus em uma fortaleza alauíta-cristã parece a única maneira de reduzir os danos desse colapso e de fazer perdurar uma semente de um Estado sírio funcional. Se essa estrutura estaria sob o governo de Assad é incerto, já que o próprio destino de Assad é, ainda, incerto.

Enfim, a Síria travou uma guerra mundial por 13 anos, resistindo como pilar civilizacional em meio às marés de caos, contra tudo e contra todos, até um momento em que, por traição interna, resistir tornou-se impossível.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 39

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