No debate sobre as raízes da Civilização Ocidental (aquela que conduz os rumos da América do Norte e da Europa Ocidental) é típico dos apologistas traçar conexões com a Igreja Católica, Grécia e Roma. Não obstante, talvez a Reforma Protestante e o Judaísmo sejam subestimados como elementos determinantes.
Há alguns dias celebrou-se o aniversário da Reforma Protestante. A data, em si, é questionável porque ignora que o processo de fratura da Igreja Católica foi gradual, e que, em certo sentido, a Reforma já havia se espalhava a partir de Jan Hus e John Wycliffe quando Lutero pregou as suas Teses.
Mas ela representa um marco importante porque as ações de Lutero e logo de Calvino adquiriram um “momentum” que transformou o seu projeto em um evento de escala civilizacional, graças à presença de uma série de condições favoráveis a isso.
Aquilo que me interessa comentar rapidamente sobre esta data, porém, é o seu papel na construção daquilo que entendemos por “civilização ocidental”. Apesar dos discursos reacionários sobre “civilização ocidental” apelarem artificialmente à Grécia e à Roma, bem como à Europa Medieval, a realidade é que a Antiguidade e o Medievo constituem realidades completamente fechadas para a mentalidade liberal-conservadora preocupada com a tal “civilização ocidental”.
Se tomarmos aquilo que Spengler ou Nietzsche escreveram sobre a perspectiva do homem clássico fica muito fácil perceber como é difícil construir uma conexão direta entre Atenas e Ocidente, exceto nos termos limitados do método analógico utilizado pela geopolítica. O homem clássico é um homem da realidade manifesta, que pensa a natureza como forma e como florescimento de formas; até mesmo o funcionamento dos seus sentidos parecia operar de forma diferente, como um exame do texto da Ilíada permite perceber no que concerne as cores trabalhadas por Homero.
Na prática, apesar de estarmos acostumados a esses esforços de construir um vínculo com a Antiguidade (vide o esforço foucaultiano [e de outros] por traçar um elo entre homossexualismo e cultura grega, ou os esforços dos democratas de apelar a motivos gregos em sua crítica da “tirania”, etc.), derivados do prestígios simbólico do mundo grego, há muito pouco na Modernidade que devemos, realmente, diretamente aos gregos.
Ao contrário, é fácil perceber como a Reforma Protestante influenciou o Iluminismo e, portanto, a Modernidade e toda a civilização desenvolvida a partir de então; e isso apesar de ser necessário apontar para o papel do nominalismo e do jusnaturalismo, da tradição escolástica em sua fase tardia, na construção desse mesmo processo.
É necessário, quanto à Reforma Protestante, recordar o papel atribuído por ela à razão humana e à plena capacidade do indivíduo de interpretar as Escrituras; bem como a sua refutação do caráter comunitário da relação entre homem e Deus e, em contrapartida, o seu subjetivismo.
Assim, apesar de Descartes ter sido “católico”, a sua filosofia seria concebível senão em um ambiente já fundamentalmente moldado pelo protestantismo como o da França huguenote? Ou a de Locke, sem considerar os seus anos na Holanda calvinista?
Mas menos conhecida é a “Haskalah”, ou “Iluminismo Judaico”. Este se seu influenciado pelo Iluminismo “gentio”, na medida em que Moses Mendelssohn foi um leitor de Locke e interlocutor de contemporâneos como Kant. Não obstante, o impacto de Mendelssohn e da Haskalah foi revolucionário pela sublevação da autoridade do rabinato tradicional. A culminação da Haskalah é o sionismo, ainda que perdurará no sionismo uma dimensão religiosa de raízes bastante profundas.
Os bem educados encontrarão em Maimônides, Rambam, Luria e outros sábios medievais muitas das prescrições presentes ainda hoje na mentalidade israelense em relação a Israel e ao trato com os palestinos.
Mas Mendelssohn, propriamente, foi influenciado por figuras mais antigas como Espinosa, Menasseh ben Israel e Simone Luzzatto, os quais exerceram ampla influência sobre a sociedade e a filosofia europeias, os dois últimos mais no âmbito político, enquanto Espinosa é um dos “grandes” da filosofia moderna, sendo propriamente influenciado por Descartes, mas também pela rica tradição teo-filosófica judaica. Ben Israel e Luzzatto tiveram um grande papel, tal como Mendelssohn, na propagação das concepções modernas de secularismo, como derivação necessária da “liberdade de consciência”. Mendelssohn vai um pouco mais longe até, defendendo praticamente um “indiferentismo religioso” tanto em um sentido metafísico quanto como “necessidade de Estado”.
Mas em um sentido mais amplo, também o papel da razão vis-à-vis a religião e a tradição expõe uma grande influência do ambiente intelectual judaico na construção da civilização ocidental. E isso porque a tradição rabínica, tal como ela se apresenta no Talmud, na Mishná e nos textos teológicos do judaísmo medieval, sempre foi uma tradição de debate intelectual de forte conotação racionalista.
Quanto a isso, se em alguma medida está estabelecida a influência da Reforma Protestante sobre o Iluminismo, seria necessário então apontar para a influência direta dos exegetas e gramáticos judeus, como David Kimhi e Elia Levita. Kimhi teve uma influência particular porque a Bíblia “do Rei James” se apoia em grande medida nos comentários anticatólicos feitos por ele. Quanto a Elia Levita, o seu papel como “professor de Cabala” do clero católico no período renascentista tem paralelos com a própria influência do cabalista Johannes Reuchlin sobre Lutero.
Essa influência da Cabala sobre a filosofia moderna, aliás, parece se estender além, na medida em que há hoje uma tradição acadêmica que sustenta com bons argumentos que a doutrina das mônadas de Leibniz possui origem cabalística, havendo inclusive evidência documental de que Leibniz estudou a Cabala; e que tanto a doutrina da tabula rasa quanto a perspectiva progressista de Locke foram influenciadas pelo tikkun olan, em uma ideia de “retificação da natureza” por meio de melhoramentos graduais rumo à perfeição.
Uma outra via de influência está no republicanismo liberal tal como ele se desenvolveu na Holanda, especialmente através da obra de Petrus Cunaeus, que escreveu “De Republica Hebraeorum”, um texto que argumenta que o reino hebreu tal como apresentado na Torá constituía a república ideal que poderia servir de modelo para a Holanda recém-“libertada” do Império Espanhol. Cunaeus, interessantemente, foi interlocutor do agente colonial e rabino já mencionado Menasseh ben Israel, bem como bastante influenciado por Maimônides. No mesmo sentido esteve um dos menos conhecidos revolucionários americanos, o pastor Samuel Langdon, que também defendia o antigo reino hebreu como o modelo ideal a partir do qual construir uma república federativa.
Mais notórios e não demandando muitos comentários são os textos de Max Weber e Werner Sombart sobre as origens do capitalismo, os quais abordam, respectivamente, as raízes protestantes e judaicas do modo de produção, tanto por causa do papel atribuído pelo racionalismo, bem como por causa de uma relação bastante diferenciada que essas religiões teriam tanto com a acumulação quanto com a cobrança de juros.
É por isso que, considerando as características fundamentais da civilização ocidental, é nessas interações entre tradição protestante, tradição judaica e tradição iluminista que devemos buscar as raízes da atual civilização moderna de pretensões planetárias.