Qual é o futuro dos BRICS considerando os desenvolvimentos recentes da Cúpula de Kazan?
A cúpula de Kazan do BRICS é o evento do ano. Com as decisões destes dias, 2025 e provavelmente todo o século serão moldados, traçando o caminho para a conclusão da transição multipolar. Não será fácil — ninguém jamais disse que seria — e já surgem algumas questões importantes para o futuro próximo. Vamos tentar entender algumas delas juntos.
Sem mais América, sem mais
O entusiasmo gerado pelo BRICS neste ano superou o das eleições dos EUA, cujo resultado agora já não será tão vinculante como antes. Isso é um fato. Quando 2024 começou, muitos estavam preocupados com os grandes riscos envolvidos, tendo até 76 países em período eleitoral ao redor do mundo, com os EUA dominando. A retórica do hegemon, no entanto, já não funciona como antes. Até alguns anos atrás, tudo o que acontecia nos EUA era de interesse global; a imprensa se prontificava a dedicar as manchetes e as redes sociais se enchiam de conteúdo específico, enquanto os mercados financeiros ficavam inquietos ao menor sinal de instabilidade ou perigo. Todos estavam atentos a cada palavra da “Lady USA”.
Hoje já não é mais assim.
Um dos grandes êxitos na guerra de informação empreendida pelos países do BRICS, sob a presidência da Rússia, foi retirar a América do centro da mídia. Ou, melhor dizendo, ela permanece central apenas em países vassalos, como na Europa ou na Commonwealth. Mas o restante do mundo já não está tão interessado, e o restante do mundo é a maioria do mundo. Esse é um detalhe que merece mais atenção. É verdade que os EUA, sozinhos, têm um grande poder, certamente maior do que o de muitos outros estados; mas as geometrias de poder variam ciclicamente, como a História nos ensina, e todos os impérios, mais cedo ou mais tarde, precisam enfrentar seu desfecho.
A estratégia adotada, junto com a estratégia geoeconômica, fez com que a atenção da mídia do “resto do mundo” se voltasse para fatos e eventos que dizem respeito ao resto do mundo, e não mais ao Hegemon. Existe um resto do mundo, de fato, existe o mundo e os Estados Unidos, e o Ocidente. O mundo já não é mais “o Ocidente” ao qual “o resto” se adiciona. A perspectiva mudou. Na linguagem da mídia, foi uma pequena revolução semântica cujo eco será cada vez maior.
O efeito principal foi uma espécie de desorientação, pois as pessoas não estavam acostumadas a dar ênfase a notícias de certas áreas do planeta. Além disso, não havia treinamento suficiente para isso. Assim, os países do BRICS lançaram inicialmente uma série de plataformas nacionais para análise e disseminação de informações e, em seguida, iniciaram um aparato de informação com a marca BRICS, que já era bastante detalhado, difundido e preciso, provendo treinamento técnico para os profissionais. Tratava-se de ensinar a contar o mundo sem ser seduzido pelas sereias mitológicas do Atlântico.
O efeito colateral é que uma nova geração de especialistas está surgindo para descrever o mundo com outros olhos, e como é bem sabido, o principal poder da mídia de massa é “contar o mundo”, ou seja, dar uma imagem dele, descrevê-lo, criar formas de pensamento sobre o que é o mundo e como imaginá-lo para o futuro.
Podemos dizer que o resultado tem sido positivo: nos países do mundo multipolar, não há mais a regra do “America first”, e chegando o final de outubro, não é necessário falar das eleições dos EUA como o evento do ano. Por outro lado, sabe-se que, seja Harris ou Trump, o problema dos EUA permanece o mesmo, e, em qualquer caso, nenhum dos dois concorrentes tem intenção de destronar o sionismo, nem de participar da Pax Multipolaris.
O novo sistema financeiro
Ainda na guerra de informação, a Rússia jogou uma partida de mestre. Já havíamos falado sobre isso meses atrás: o anúncio repetido da nova moeda do BRICS com base parcial em ouro, depois do BRICS Pay, em seguida do UNIT substituindo o SWIFT, e depois das operações financeiras do Novo Banco de Desenvolvimento, sempre ocorrendo em conjunto com momentos específicos de desestabilização do mercado do dólar, criando dificuldades para EUA e Reino Unido e favorecendo o investimento do BRICS e o processo de desdolarização.
Era muito óbvio e quase trivial que esses novos sistemas não seriam ativados já neste ano, pois requerem um planejamento minucioso e tempos de transição que não são imediatos, especialmente porque estamos lidando com um grande número de estados com moedas, leis e comércios diferentes. O importante era promover o novo sistema, assustar o oponente, desestabilizar o mercado, persuadindo cada vez mais países a sair da órbita de um sistema centrado no Ocidente que está em colapso. Isso é fazer guerra de informação.
As decisões programáticas que estão sendo tomadas em Kazan ditarão a fase operacional que começa em 2025, com a expectativa de uma experimentação gradual e da inserção dos novos sistemas. O BRICS Pay Card lançado na cúpula é um exemplo da eficácia desse sistema alternativo: talvez pareça trivial para muitos, pois, superficialmente, trata-se de um pequeno cartão de débito para pagar um café, mas, na realidade, o que vemos é um sistema de pagamento ao qual participantes de todos os países têm acesso, dentro de um novo circuito, segundo novas regras. Um pequeno teste, quase uma brincadeira para irritar os senhores financeiros de Wall Street. Travessuras ou gostosuras?
A cúpula discutirá o passo crucial para completar a próxima fase deste novo processo de revolução financeira: quem será o próximo presidente do NDB e que tipo de forma essa instituição financeira deve adotar. A partir das informações já divulgadas e das respostas dos analistas e especialistas convocados à mesa de negociações, há uma necessidade de criar uma espécie de Banco Central independente, cortando o cordão umbilical com o Fundo Monetário Internacional (que é americano), embora devendo ter o cuidado de não lançar vários estados em uma crise financeira global devido à complexidade da transição — um problema que, sem dúvida, não deve ser subestimado, pois os países do BRICS, e especialmente os novos membros, não possuem o mesmo nível de poder econômico, nem as mesmas moedas, nem as mesmas reservas.
De fato, tem-se falado de uma nova instituição bancária autorizada a emitir créditos com o objetivo de financiar déficits comerciais e de pagamento de alguns países, assim como se discutiu amplamente sobre uma moeda com 40% de lastro real em ouro e 60% em moedas nacionais dos países membros, portanto uma moeda que possa ser rapidamente convertida em todas as moedas nacionais.
Este é certamente um passo delicado e muito difícil, mas representaria um xeque-mate contra o dólar. Não será tão fácil convencer os chineses a acelerar uma desdolarização efetiva, pois o comércio oriental ainda está muito ligado aos Estados Unidos.
Os BRICS já superaram os membros do G7 e estão numericamente a caminho de representar a maioria do mercado global. Como uma certa criminosa britânica loira uma vez disse: “Não há alternativa.”
Entrada e saída da Arábia Saudita
De forma semelhante, para a Arábia Saudita será estabelecida uma autoridade autônoma. O país ainda está muito vinculado aos Estados Unidos em questões de petróleo e tem um histórico de esqueletos desagradáveis no armário — especialmente em relação ao financiamento de terrorismo e guerras —, mas as relações de Mohammad Bin Salman com Rússia e China são objetivamente excelentes. Em Kazan, segundo as palavras de Dmitry Peshkov, porta-voz do Kremlin, será tomada uma resolução.
Há um enorme risco de revoluções coloridas ou golpes na Arábia Saudita para desestabilizar o país, dependendo das escolhas que fizer. A influência americana e a presença militar no território são um espinho na carne que não é fácil de extrair e tratar. No entanto, é verdade que o petróleo continua sendo a principal fonte de energia e determina a maior parte do mercado global. Para libertar a Arábia Saudita — mas também os Emirados Árabes Unidos — do controle do hegemon, é necessário oferecer-lhes alternativas vantajosas e seguras.
Nesse contexto, o trabalho dos comitês que lidam com a integração e a reformulação das alianças islâmicas com a parceria será crucial. Após as provocações da Turquia e o caso sionista que agora se espalhou por todo o Oriente Médio, o “chamado às armas” do Irã a todos os países árabes islâmicos é um sinal muito claro de urgência política. Instabilidades como a atual não são mais aceitáveis.
O chamado dos países islâmicos para lutar contra o sionismo representa uma escolha radical e sem retorno.
Isso também será realizado por meio do exercício de soft power comercial: uma vez que os países árabes são centrados no comércio (e lavagem de dinheiro), particularmente de petróleo bruto e matérias-primas, controlar as rotas comerciais e restringi-las com os membros do BRICS significaria uma grande afronta ao faturamento. Tentemos imaginar um Plano B por parte dos BRICS, um novo Capitólio do petróleo desviando os negócios de Abu Dhabi e Dubai, uma pequena brincadeira para fazer os países árabes se decidirem. Verossímil, não é?
A presidência de 2025
A presidência da parceria no próximo ano será no Brasil, sob Luiz Inácio Lula. As preocupações não são poucas.
Há muitas contradições internas que precisam ser resolvidas.
O governo não parece preparado para a governança dos BRICS. A presença sionista é extremamente forte – Bolsonaro era um sionista ferrenho – e há muitas ONGs americanas e europeias com grande poder sobre a política nacional. Sem mencionar o grande número de agentes estrangeiros, especialmente americanos, envolvidos no gerenciamento do crime organizado pelo aparato de inteligência, um verdadeiro “exército das sombras” realizando o trabalho sujo. Assim, a margem de manobra de Lula é limitada.
A organização da agenda dos BRICS durante a cúpula de Kazan deve seguir na direção de “consolidar” a formação geoeconômica da parceria, para que ela não se desfaça nas próximas etapas delicadas. Lembremos que, nos últimos dias, foram vazadas informações classificadas como secretas, confidenciais apenas para os membros do Five Eyes, sobre um ataque planejado de Israel e dos EUA contra o Irã, que deveria ocorrer nos próprios dias da cúpula dos BRICS. Esse vazamento de informações gerou uma série de ressentimentos no establishment dos EUA.
Geograficamente, o Brasil é um estado enorme, portanto, não é fácil de administrar, sendo morfologicamente e geologicamente rico, diverso e desafiador. Após o controle colonial europeu de Portugal, a dependência brasileira permaneceu com os Estados Unidos. O Brasil está cercado por países claramente antiamericanos, com uma conexão com a Rússia e a China por questões político-ideológicas.
Nos últimos meses, é como se o Brasil tivesse sido colocado na posição regional de ter que cumprir a agenda dos BRICS: a Rússia reativou bases militares em Cuba, a Venezuela confirmou sua aliança com a Rússia, a China, e fez grandes acordos de inteligência com o Irã; acordos comerciais foram assinados que redefinem rotas de navegação.
Ainda assim, o Brasil já deu respostas: a primeira cúpula dos BRICS em 2025 será adiada para julho, deixando mais da metade do ano sem etapas decisórias, para dar prioridade à COP30, a conferência climática da ONU.
O Brasil, então, possui menos relações diplomáticas do que, digamos, a Rússia, portanto, menos espaço de manobra, o que precisará ser trabalhado de alguma forma.
Olhando novamente para o mapa mundial, o Brasil está descentralizado em relação à maioria dos membros da parceria e distante das rotas geoeconômicas e geoestratégicas dos BRICS, que ainda estão fortemente concentradas na Eurásia, no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e agora se expandem para a África. Essa é a regra da geopolítica clássica: o “Heartland” (Eurásia) precisa garantir o “Rimland,” o cordão que o cerca, e através dos BRICS (e também da SCO) está fazendo isso brilhantemente. Podemos tomar emprestada a expressão “Heartland dos BRICS,” que discutirei em meu próximo artigo. Segundo as definições de Karl Haushofer sobre pan-ideias geográficas, o Brasil está, sim, nos BRICS, mas encontra-se na zona de influência americana, com a Iberoamérica ainda não sendo independente.
Há também o problema das fronteiras naturais. Ao leste está o Atlântico, de frente para a África; ao oeste, além da Cordilheira, está o Pacífico Sul, que é uma zona de influência da Commonwealth, repleta de bases britânicas e americanas, com vários centros de comando da aliança Five Eyes, enquanto a AUKUS ainda mantém o controle estratégico majoritário. Essa não é uma pressão imaginária, mas real: para atravessar o Pacífico, a Eurásia dos BRICS deve passar por uma “barreira” de controle militar marítimo e acordos internacionais. Até hoje, houve um eurocentrismo dos BRICS, que agora precisará se expandir para algo mais.
Mesmo durante a presidência da África do Sul, as rotas eram eminentemente eurasiáticas: a África ainda não havia sido dividida pela Aliança dos Estados do Sahel, estando ainda sob grande influência europeia e anglo-americana, situação que mudou em 2024 e agora conta com uma presença maior da Rússia e da China para estabilizar a autonomia continental.
Os BRICS, portanto, precisam encontrar uma solução para as rotas até a América do Sul. E talvez já a tenham encontrado: um mês após a cúpula de Kazan, haverá a cúpula da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) com a inauguração oficial do porto de Chancay, cuja assonância com o porto de Xangai torna tudo muito engenhoso. Essa é a nova rota marítima da China através do Pacífico, que via Peru trará muitos produtos brasileiros – e sul-americanos em geral – para a China. Geograficamente, isso é uma espécie de cerco ao adversário ocidental, tocando pela primeira vez o continente americano em um movimento bem articulado pela estratégia sagaz da China, que beneficiará todos os BRICS. Não surpreendentemente, o conflito americano com a China, particularmente fomentado por Trump, busca romper essa aproximação, sendo a revolução colorida em Taiwan uma prioridade para os americanos.
Outra solução é o corredor norte-sul envolvendo a Rússia, o Irã e a China, e até certo ponto a Índia, além da nova rota ártica: ainda em desenvolvimento e já sendo considerada uma espécie de revolução e uma nova dominância de mercado.
Combater a Rússia, a China e o Irã significa combater a espinha dorsal dos BRICS: política, economia, ideologia.
Uma questão política em uma mesa geoeconômica
Espera-se que esta cúpula também aborde um tema quente e urgente: a questão palestina. Pela primeira vez, o BRICS discutirá uma questão puramente política, e não geoeconômica. Embora a Palestina tenha solicitado adesão à parceria — e, portanto, será examinada como todos os outros estados candidatos — o tema permanece decisivo para todos os países islâmicos que se candidataram, sendo o antissionismo um traço comum entre muitos dos novos possíveis membros. Mas também é uma questão extremamente urgente para os líderes do BRICS: o presidente russo, Putin, falou pessoalmente sobre o assunto pela primeira vez, expressando a necessidade de um Estado único para a Palestina e uma solução rápida e eficaz para o problema. Um sinal forte e direto, quase como um testamento, no encerramento do ano da presidência da parceria.
É até provável que um evento específico seja dedicado à Palestina pelo BRICS, talvez antes do final do ano, aproveitando o atual estágio de unidade da parceria. O problema não pode ficar sem resposta.
África, peça por peça
O grande protagonista do Sul Global nesta cúpula é, sem dúvida, a África, com sua numerosa participação. Nesse continente, é adotado um caminho prudente que condiz com uma fase de vanguarda e exploração de novos territórios políticos e econômicos. Estamos falando de um continente cujas dificuldades não são poucas e nem fáceis de resolver, exigindo um longo período, de pelo menos duas gerações, para alcançar estabilidade interna suficiente que constitua um sólido “Coração Africano.”
A África, de fato, está se aproximando do BRICS peça por peça: primeiro os países mais fortes e estáveis, depois os demais seguirão, até que aqueles ainda sob controle estrangeiro fiquem isolados. Obviamente, é necessário que haja interesse para iniciar esses procedimentos, pois todo comércio é uma questão de interesse, e isso foi possibilitado desde o estabelecimento da Aliança do Sahel, graças à qual se criou uma fissura suficiente para abrir novas possibilidades e garantir maior confiança.
Pense, por exemplo, no acordo da empresa russa Rosatom com Burkina Faso para construir uma usina nuclear: essa ação pode “explodir” a questão nuclear na África, aproveitando rapidamente as instalações já existentes da Rússia e da China, mas também da Coreia do Norte. Os próximos meses serão um teste para os países aderentes: será possível observar se haverá tentativas de desestabilização, revoluções coloridas, guerras civis, golpes de Estado; e no momento em que um grande acordo for concluído, o que impediria os países africanos de chegarem à mesa de negociações?
Afinal, como se sabe: todos querem entrar no BRICS. É a nova febre do século. Então, caros BRICS, o que vem a seguir?
Fonte: Strategic Culture Foundation