Por que, realmente, Pavel Durov foi preso e a quais interesses a sua prisão atendia?
A detenção na França de Pavel Durov, fundador e diretor do Telegram, tem várias dimensões relacionadas aos interesses do Ocidente coletivo, ao funcionamento da Internet e à liberdade de expressão. Assumindo uma posição libertária de princípio, Pavel Durov se recusou a colaborar com os serviços de segurança russos para identificar criminosos que utilizavam o Telegram. Por esse motivo, ele se mudou para os Emirados Árabes Unidos, onde obteve a cidadania e participou de uma série de projetos ligados às operações de blockchain de criptomoedas. No entanto, mesmo antes da Operação Militar Especial (OME), era evidente que o Ocidente dificilmente toleraria a existência de projetos que não obedecessem à sua agenda política. Um ataque ao Telegram era questão de tempo. Neste caso, surgiu uma boa oportunidade de conduzi-lo através da França, para onde Pavel Durov imprudentemente se dirigiu. Dado que ele também possui cidadania francesa, será responsabilizado de acordo com as leis desse país, reduzindo assim consideravelmente as chances de auxílio por parte da Rússia e dos Emirados Árabes Unidos. Mesmo que essa situação leve claramente a um aumento das tensões entre a Rússia e a França, e talvez também entre os Emirados Árabes Unidos e a França.
O aspecto interessante é que a Internet, como tal, se desenvolveu na interseção de duas tendências-chave: o libertarismo, cuja ala era representada por cientistas e teóricos da engenharia, e o segmento do poder, já que a rede foi criada como uma alternativa às comunicações militares e civis existentes em caso de guerra nuclear. Embora existam grupos convencionalmente libertários nos Estados Unidos (por exemplo, o Cato Institute), eles ainda estão inseridos no sistema político e não fazem nenhum movimento que possa abalar a agenda geral, muito menos competir com os gigantes tecnológicos e o establishment. No caso do Telegram, temos ainda um produto competitivo de sucesso considerável que: 1) era percebido como uma verdadeira alternativa às redes sociais globais existentes; e 2) pelo menos oficialmente, não tinha vínculos com os serviços de inteligência e segurança de outros Estados. Provavelmente, os Emirados Árabes Unidos se limitaram a algumas interações formais, mas não tiveram acesso a códigos e algoritmos, como acontece nos Estados Unidos com o Meta (Facebook) e o Google; 3) demonstrou sucesso na seleção da equipe, pois Pavel Durov é o rosto do projeto, por trás do qual há centenas de pessoas envolvidas em programação, engenharia, logística, etc. Consequentemente, a questão pode ser levantada não apenas em termos de tentativas de acessar correspondências, bancos de dados e algoritmos, mas também como uma tentativa de tomada da empresa pelo Ocidente, executada pelas mãos da França.
O pano de fundo econômico também pode ser expresso em possíveis problemas de capitalização do Telegram, já que a notícia da detenção de Durov levou ao colapso das criptomoedas Toncoin (TON e NOT), que são os principais ativos da plataforma blockchain do Telegram. Essas ações, para usar uma alegoria histórica, são uma espécie de roubo e pirataria. O tecno-feudalismo ocidental, representado por empresas como Amazon, Google, Meta, Microsoft, Apple, bem como pelo Estado profundo, está, portanto, tentando eliminar um “senhor feudal” indesejado, embora de certa forma poderoso, para controlar grande parte do ciberespaço informativo. Também devemos lembrar a história do TikTok, quando representantes dessa empresa (ByteDance) foram detidos e presos nos Estados Unidos e no Canadá. No contexto do confronto geopolítico entre China e Estados Unidos, as tentativas contínuas de expulsar a ByteDance do mercado ocidental e sua proibição em vários países também falam da luta pelo domínio sobre os fluxos de informação, ainda que de forma pós-moderna.
Nesse contexto, o Telegram era uma plataforma puramente libertária, cujas ideias foram constantemente defendidas e promovidas nos Estados Unidos por muitos anos. Mas lá, devido ao totalitarismo neoliberal, isso permaneceu apenas um sonho.
Se olharmos para os meios de comunicação, este incidente é descrito de maneiras diferentes, dependendo do lado da história de onde o vemos. O jornal turco Sabah, por exemplo, acredita que o objetivo da prisão de Pavel Durov foi uma tentativa de silenciar o que estava acontecendo na Faixa de Gaza, já que vários canais palestinos e pró-palestinos cobriam regularmente as atrocidades militares israelenses. Acredita-se que, como o Telegram foi usado no espaço pós-soviético, o pano de fundo geopolítico deve ser procurado aqui. Primeiro de tudo, surge o tema do conflito na Ucrânia e na Rússia. Embora devamos admitir que o Telegram foi usado por serviços de inteligência e propagandistas ucranianos e ocidentais, bem como por golpistas contra a Rússia e seus cidadãos. Na Ásia Central e no Cáucaso, há uma enorme quantidade de usuários do Telegram — e essas regiões agora estão sob clara pressão dos Estados Unidos e da União Europeia, pois são vistas como fronteiras no ventre da Rússia. Por esse motivo, não se pode descartar que os planejadores da prisão de Durov tenham considerado o espaço pós-soviético também do ponto de vista de uma expansão tecnológia-informática, com uma elaboração ideológica pró-ocidental da população.
As acusações oficiais feitas contra Pavel Durov são certamente absurdas, pois qualquer provedor de Internet ou empresa de transporte que possa ser usado por qualquer criminoso para cometer ações ilegais poderia ser acusado dos mesmos crimes. Sabe-se que sua detenção foi prolongada pelas autoridades francesas, aparentemente para pressioná-lo a chegar a algum tipo de acordo.
Ao mesmo tempo, parece bastante estranho que não haja protestos em massa em apoio a Durov e que as comunidades de hackers não estejam conduzindo ataques cibernéticos contra as instituições francesas, como aconteceu, por exemplo, com Julian Assange. Mesmo que importantes vazamentos de informações governamentais sejam regularmente publicados nos canais do Telegram, onde a própria liderança da rede social não tem qualquer envolvimento. Deve-se observar esse fenômeno no futuro próximo. É muito provável que o ex-presidente russo Dmitry Medvedev tenha razão ao destacar que, sendo Durov russo (apesar das outras cidadanias), ele será tratado como um russo e não como outro guru da Internet e ativista pela liberdade de expressão.
Do ponto de vista da regulamentação global da Internet, é claro que é necessário falar de uma polarização adicional do espaço da Internet. É improvável que os globalistas tenham sucesso em suas tentativas de estabelecer suas regras e domínio, pois serão confrontados pela China tecnologicamente avançada e por importantes atores políticos como a Rússia e o Irã. Sem mencionar as tradicionais divisões sobre soberania e o malthysteicholdering do espaço da Internet. Se por um lado o Estado profundo e o establishment neoliberal continuarão a exercer sua pressão, por outro, isso não poderá senão resultar no surgimento de novas áreas de resistência e em uma fragmentação adicional da Internet.
Além disso, de uma forma ou de outra, a palhaçada da França é outra clara demonstração do colapso do Estado de direito e da liberdade de expressão na União Europeia. E no contexto global do conflito da Rússia com o Ocidente e de suas nuances metafísicas, é claro que precisamos tomar decisões mais adequadas e eficazes nas frentes da nossa luta, sem nos preocuparmos com os restos em decomposição da velha ordem mundial.