A narrativa hegemônica sobre a Revolução Francesa é de que “o povo francês” se rebelou contra um “monarca absoluto e tirânico”, resultando na “liberdade”. Será que foi assim?
Teoria: A Revolução Francesa é uma revolução feita pelo povo francês contra um poder real totalitário e tirânico; seu efeito é o advento da democracia e a defesa dos direitos do povo.
Realidade: A Revolução Francesa é uma revolução feita por uma minoria de burgueses urbanos contra o povo francês e contra um poder real extremamente fraco, que deixava uma grande liberdade para as províncias regionais do país; o efeito direto da Revolução é o advento de um regime totalitário e desarraigado que unifica o país através de uma centralização genocida que tem o efeito de destruir os direitos do povo e escravizá-los a um trabalho assalariado usurário.
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A maioria dos europeus tem uma visão falsa da Revolução Francesa.
Eles têm uma visão hollywoodiana da revolução:
> Em 1776, os americanos se rebelaram contra os malvados imperialistas ingleses em nome da liberdade e do Iluminismo.
> Em 1789, os franceses se rebelaram contra o malvado Rei Luís XVI, um rei fora de contato com a realidade do povo, um tirano sanguinário que manda atirar na multidão e que acabará decapitado pelo povo.
Na verdade, a Revolução Francesa é bem diferente da Revolução Americana.
Vamos analisar as premissas da visão usual da Revolução Francesa.
- Todo o povo francês se rebelou contra o rei.
- O rei era tirânico, ele era um monarca por direito divino.
- Depois que o rei foi decapitado, a França entrou no Progresso, Democracia e Liberalismo, para a felicidade do Povo.
Vamos desmascarar esses elementos um a um.
- Todo o povo francês se rebelou contra o rei
Isso não é verdade. A grande maioria do país era contra a revolução.
Compare com a situação atual: as elites húngaras em Budapeste são contra Orbán; os urbanitas em Moscou são contra Putin. Mas a população rural e a maior parte do país apoia seu líder.
Foi o mesmo na França. A grande maioria do país apoiava o rei.
Os revolucionários eram pessoas das cidades: principalmente Paris e Lyon. Eles eram os burgueses da época. Eles representavam uma minoria insignificante do país.
A zona rural francesa, 99% do país, era a favor do status quo. Eles amavam o rei. E apenas queriam algumas reformas econômicas.
Essa maioria da França foi, no entanto, “limpa”.
Como os kulaks na Rússia, o campesinato foi sendo dizimado pelas elites revolucionárias das cidades.
Veja a esse respeito os eventos violentos na Vendéia: o campesinato católico recusou-se a servir de carne de canhão para os parisienses. Eles se recusaram a abandonar suas colheitas para obedecer às ordens da elite urbana.
Os pobres camponeses da Vendéia pegaram suas forquilhas e formaram milícias para se defenderem dos exércitos de Paris. As milícias camponesas foram até os padres e os pequenos nobres locais para pedir ajuda: os nobres eram, acima de tudo, soldados de carreira, oficiais. E os nobres concordaram em comandar os camponeses, para liderar uma guerra de guerrilha que durou quase cinco anos, contra os revolucionários.
Aqui está um fato que não agrada à história usual: pequenos camponeses se rebelaram contra a elite revolucionária burguesa de Paris, e esses camponeses escolheram nobres locais e padres como seus líderes militares.
O que aconteceu então? Paris enviou “colunas de extermínio” do exército para erradicar essa rebelião e impor a “democracia”. Quase 300 mil habitantes foram exterminados pelo exército de Paris.
E o departamento será até apagado dos mapas e renomeado “Vengée” (um trocadilho com Vendée, que literalmente significa vingado, sacrificado, tendo dado uma lição, mostrado como exemplo).
Então, não, a Revolução foi obra de uma pequena elite urbana, que pressagiava o início da revolução industrial e que queria fazer um lugar para si no mundo dos negócios, abolindo as regras do Antigo Regime, como veremos.
Todo o povo francês sempre apoiou o rei.
- O Rei era tirânico, ele era um monarca por direito divino.
Há alguma verdade nessa afirmação: sim, o Rei da França reinava por direito divino. Ele obtinha seu poder da coroação, que desde o ano de 496 faz do rei da França o “tenente de Jesus na Terra”.
Portanto, sim, o poder político na França era legitimado pela religião. Como em 100% dos países da época, em todos os continentes. Incluindo os Estados Unidos, onde os Pais Fundadores construíram uma narrativa religiosa de “predestinação”, Novo Éden, etc.
MAS, a “Monarquia Absoluta” nunca existiu. Esse é um conceito inventado tardiamente na história. Transmite clichês persistentes: o rei faz leis como bem entende, ele festeja, ele prende filósofos e poetas! Ele rouba o dinheiro do povo para construir castelos…
É verdade que alguns reis da França gastaram muito dinheiro. Francisco I ou o Rei Sol, por exemplo. Mas fizeram isso numa época em que a riqueza da França não tinha igual: a França era a primeira potência mundial, de longe.
Mas além desse papel de pompa e influência cultural, os reis nunca tiveram muito poder político.
O pior dos reis franceses tinha infinitamente menos poder do que o Presidente de Portugal ou da Ucrânia ou do que qualquer ministro de um país ocidental.
Sob o Antigo Regime, havia muitas instituições que regulavam o poder real: a Igreja, as Corporações de Ofícios (sindicatos de trabalhadores e artesãos), os Parlamentos Provinciais (cada região tinha seu próprio parlamento e suas próprias leis), a nobreza local.
Na verdade, o poder do rei era extremamente limitado. Seu único campo real de ação era a política externa. E é por isso que a França estava tanto em guerra. Este é o único lugar onde o rei tinha poder! Fora do reino.
Falemos sobre os Parlamentos Regionais. Eles são um elemento crucial para entender o que aconteceu.
Ao entrar em guerra com os ingleses, a França ficou mais pobre e precisou de reformas econômicas urgentes.
Na década de 1780, o Rei da França queria lançar uma grande reforma para dinamizar um pouco o país e reviver a economia.
Mas o rei tinha tão pouco poder que não conseguia fazer cumprir a lei no país.
Cada parlamento regional (cerca de 60 no total) recusava ou modificava a lei real.
Como se Califórnia e Texas aplicassem cada um sua própria versão da lei dos EUA, sem levar em conta as ordens de Washington, o Presidente, a Suprema Corte.
Como resultado, cada Província tinha uma lei diferente. E ninguém era obrigado a aplicar as leis reais.
Tanto que todas as tentativas do rei de reformar o país foram em vão: a cada tentativa (cerca de dez no total), a burguesia nos Parlamentos se recusava a seguir a lei, numa tentativa de desestabilizar a monarquia.
E o país se encontrava ainda mais em crise do que nunca.
Para resolver isso, Luís XVI teve uma ideia. Ele convocou os Estados Gerais.
É uma espécie de Super Parlamento! com representantes de toda a França, de todas as classes sociais. O objetivo é realizar uma espécie de referendo direto com o povo, para anular a opinião dos Parlamentos Provinciais. E ter uma única lei nacional para todo o país, votada diretamente pelo povo.
Mas foi um fracasso. Nenhuma solução foi encontrada. E a Revolução irrompe.
> A Revolução não eclodiu porque o Rei era tirânico e tinha muito poder. Mas precisamente porque ele não tinha nenhum. Ele era incapaz de reformar o país porque cada Província da França era quase autônoma e obedecia às suas próprias regras. Seguindo, assim, a tradição francesa de quase total descentralização / devolução.
O Rei era extremamente fraco na França. Politicamente e legalmente. Ele tinha tanto poder sobre a França quanto a atual Rainha da Inglaterra tem sobre a Austrália: quase nenhum, exceto poder simbólico e influência na política externa.
Três anedotas e pontos interessantes. Muitas vezes se acredita que sob a Monarquia o povo era esmagado por impostos, que não podia votar, que o rei estava em sua Torre de Marfim.
A realidade é bem diferente:
A) Em 1780, estima-se que o imposto anual pago por um camponês francês era equivalente a 18 dias de trabalho. Em 2014, o imposto anual pago pelos trabalhadores franceses corresponde a mais de 208 dias de trabalho.
B) Em 2020, um francês vota, em média, uma vez a cada dois anos, em eleições que não fazem diferença, já que o voto é diluído em nível nacional, sem ter qualquer influência. Em 1740, um camponês francês votava várias dezenas de vezes por semana, em assuntos concretos: alocação de recursos da aldeia, construção de uma estrada, uma ponte, escolha de uma data para uma celebração, conscrição, impostos. E várias vezes por mês, ele era convidado a dar sua opinião sobre assuntos mais sérios, durante plebiscitos (referendos) ou durante sessões de queixas.
C) O rei não estava em uma Torre de Marfim. Pelo contrário, qualquer homem do reino, qualquer que fosse sua condição, podia ir encontrar-se com o rei em Vincennes, pessoalmente, para expressar suas preocupações. Também era possível pedir ao rei e seus conselheiros que prestassem justiça em um caso específico: o rei, sentado sob um carvalho, ouvia então as queixas e encontrava uma solução justa. Qualquer cidadão do reino podia exigir isso.
O rei passava grande parte de seu tempo em áreas rurais para que os camponeses pudessem vir a ele em busca de ajuda.
A única condição para ver o rei era “usar roupas limpas”. Por essa razão, os conselheiros bondosos eram designados para dar roupas limpas gratuitamente aos camponeses, para que todos pudessem vir ao rei.
Esse vínculo entre o povo e o rei ia muito longe: em Versalhes, o rei estava em “espetáculo” o dia todo. O povo era livre para vagar pelo castelo, para vir ver o rei levantar-se, ir para a cama, sentar-se em conselho, lavar-se e jantar com sua família.
Essa proximidade era explicada de maneira simples: o rei, sendo o enviado de Deus na terra, deveria servir de modelo para seu povo, seu reino era um navio que deveria permitir-lhe salvar as almas de seu povo, ele deveria, portanto, dar o exemplo e ser acessível a todos.
Finalmente, uma última anedota: antes de começar a reinar, cada rei da França tinha que ser um mestre artesão “graduado” em um campo. Qualquer campo. Isso implicava que o jovem rei passaria anos inteiros em uma oficina e em contato com os trabalhadores, para aprender o ofício. Em geral, leva cerca de 10 anos de trabalho antes de produzir sua criação final, a “obra-prima” que permite a alguém se tornar um mestre artesão. Alguns reis eram sapateiros, outros vidraceiros, outros ferreiros, cozinheiros, padeiros. Luís XVI era um gênio da serralheria. O aprendizado desse ofício manual tinha como objetivo transmitir aos reis um ofício prático, um know-how, e uma compreensão do mundo das artes e do trabalho.
3) Após a decapitação do rei, a França entrou no Progresso, Democracia e Liberalismo, para a felicidade do Povo.
Ingenuamente, muitas pessoas que não conhecem a história francesa acreditam que a Revolução libertou a França da ditadura. E que, após a Revolução, a França entrou numa era de progresso, democracia e paz para o povo.
Na realidade, é exatamente o oposto.
Democracia: A França não terá uma democracia real após a Revolução; pelo contrário, será um regime oligárquico onde a burguesia detém o país que está sendo estabelecido e que durará até… 1940, com a invasão alemã que desencadeia o Regime de Vichy, depois a IVª República e, eventualmente, a Vª em 1958, a única que pode ser chamada de democracia. Levou 150 anos.
Fim da tirania: Na verdade, a burguesia em 1789 sabia muito bem que, se a situação era tão séria, era apenas porque o Rei não tinha o poder de governar. Eles sabiam disso. E o primeiro reflexo, uma vez no poder, será reformar totalmente o país para centralizá-lo completamente e evitar qualquer contrarrevolução do povo. O Rei queria manter a forma federal do Estado, com parlamentos provinciais, regras locais, costumes, línguas, culturas diferentes. Mas o primeiro reflexo dos revolucionários em Paris foi destruir os Parlamentos Locais que poderiam contrabalançar seu poder e centralizar TUDO em Paris. Uma única lei. Uma única cultura. Tudo vem de Paris. E tudo se impõe em todo lugar. Sem limite. Todas as culturas locais são atacadas, os Parlamentos e conselhos das aldeias são destruídos, a votação local é proibida.
Tudo é decidido em Paris, por um colégio de cerca de dez pessoas, não eleitas. A França, antes dividida em províncias históricas (Aquitaine, Bretanha, Alsácia, Córsega, Savoia…), é redesenhada em quadrados do mesmo tamanho, com números em vez de nomes.
Progresso para o povo: as primeiras três leis dos revolucionários, supostamente para servir ao povo, não são as que acreditamos. As três primeiras decisões são as seguintes:
- Proibição da greve (Lei d’Allarde)
- Dissolução das corporações de ofício que protegiam os trabalhadores (sindicatos) (Lei Le Chapelier)
- Colocação à venda de todos os bens que pertenciam à nobreza ou à igreja, a preços irrisórios… alguns francos de ouro por dezenas de castelos e hectares de terra. É como se o Central Park ou a Sunset Boulevard fossem vendidos por 10€. Literalmente, o país inteiro é privatizado, todas as terras são compradas por burgueses das cidades, os camponeses são forçados a trabalhar, sem poder fazer greve e sem poder se agrupar em corporações para proteger seus interesses. (Bien Nationaux)
Em poucos dias, passamos de um país quase socialista para um país ultraliberal. Passamos da França Real, que protegia os trabalhadores, para a República Liberal.
Como a URSS em 1991. Isso é necessariamente feito com sangue e em benefício de uma pequena minoria de urbanitas que enriquecem sem contar o custo.
Conclusão:
A Revolução Francesa foi uma fase extremamente violenta na história da França. E acima de tudo, uma fase repleta de mentiras.
A Revolução Francesa não ocorreu contra um rei tirânico e absolutista, contra um regime centralista e ditatorial.
A Revolução Francesa não ocorreu pelo povo e para o povo.
A Revolução Francesa pode ser resumida de forma muito simples: é a substituição de uma elite por outra. A revolução esconde apenas isso. A elite militar e religiosa (a nobreza) tinha uma visão tradicional da França: campesinato, religião, corporações protegendo os trabalhadores, Parlamentos Provinciais que certamente bloqueavam as reformas, mas também eram um contrapeso útil, a defesa da cultura de cada região…
Mas no alvorecer da revolução industrial e do boom econômico, essa elite foi substituída por outra: urbana, adepta das ideias liberais, ateia, ávida por destruir as barreiras sociais para expandir o mercado.
É só isso. De um lado, um rei ansioso para preservar a França pluralista tradicional. E, portanto, incapaz de reformá-la. Do outro, uma elite econômica nascente, ansiosa para apagar o passado, alcançar o poder político para liberar a economia, expandir o mercado, enquanto impõe a uniformidade ditatorial.
Qualquer pessoa que conheça a história do liberalismo SABE que o liberalismo sempre precisa de um punho de ferro para se impor.
Ontem Pinochet, Friedman, Reagan, Thatcher, Iéltsin. Em 1789 chamava-se Revolução Francesa, o Terror, a Vendéia, vários milhões de mortos.
Então é isso que a revolução esconde.
Não é a queda de um tirano para defender o povo. É a escravização do povo francês, a venda do país para os burgueses industriais e o início da destruição da base cultural e religiosa da França tradicional, em nome da centralização parisiense.
A “República” de Paris sabe que está desenraizada e é ilegítima. Que ela é antifrancesa. Que ela se mantém apenas pelo poder do dinheiro. E é por isso que precisa controlar tudo, padronizar tudo. Destruir tudo o que é francês.
A Revolução Francesa é francesa apenas no nome.
A Revolução não salvou o povo.
A Revolução não destruiu a elite.
A Revolução é a primeira mudança de regime.
A Revolução é a primeira revolução colorida.
A Revolução é a substituição de uma elite por outra.
A Revolução é a substituição de uma elite militar, religiosa, étnica, enraizada, local (com base no critério da tradição ancestral), por uma elite urbana, liberal, ateia, selecionada com base em critérios puramente econômicos.
A França não decapitou um rei.
Ela decapitou a si mesma.