O Brasil não vê os inimigos de seus amigos como seus inimigos. E não há problema algum nisso.
Nos últimos dias, desde a visita de Macron a nosso país e a recepção excessivamente calorosa oferecida a ele no final de março (a qual inclusive motivou inúmeros memes na internet), debate-se as vantagens e desvantagens das relações franco-brasileiras, bem como o propósito real de Macron nessa aproximação.
Tem sido fácil encontrar reações positivas expressas com grande efusividade, especialmente dentro do chamado “campo progressista”, dos que enxergam em Macron e na França contemporânea uma “alternativa aos EUA” que não se afasta do marco da democracia liberal – já que, no Brasil, a narrativa da “defesa da democracia” contra o “populismo autoritário” tornou-se tema comum na nova esquerda nacional.
No que concerne os fatos concretos, temos que Macron visitou, primeiro, o norte do Brasil – especificamente o estado do Pará – onde junto a Lula enfatizou o papel da Amazônia como “reserva internacional”, além de anunciar um programa de 1 bilhão de euros em investimentos para a chamada “bioeconomia” da Amazônia do Brasil e da Guiana Francesa.
Não se sabe, em um plano concreto, no que consistiria essa bioeconomia, já que as pautas de Macron para a Guiana Francesa nos últimos anos têm envolvido projetos de construção de rodovias e hidrovias, além de intensificação da mineração. Enquanto o discurso análogo no Brasil, promovido por ONGs e por alguns ministros e burocratas vinculados à Open Society de George Soros, se dirige precisamente na direção oposta: o rechaço por toda forma de desenvolvimento ou integração econômicos da Amazônia em relação ao resto do Brasil.
De fato, tem despertado críticas entre setores patrióticos da sociedade brasileira o fato de que ONGs, com a ajuda de alguns elementos liberais do governo, têm promovido a criação e ampliação de “reservas indígenas”, espaços nos quais o Estado brasileiro não pode entrar, nos quais não pode haver infraestrutura, onde não pode haver atividade econômica organizada ligada à macroeconomia brasileira, mas nos quais não raro se descobre a atividade de “ativistas”, “missionários” e “exploradores” estrangeiros, e dos quais consistentemente saem minérios raros, de lá para armazéns estrangeiros.
Acusa-se, nesse tipo de situação, de uma típica postura de “dois pesos, duas medidas”, em que o Ocidente atlantista proíbe países como o Brasil de fazer precisamente aquilo que eles autorizam a si mesmos; de modo que não seria casual que Macron teria condecorado, precisamente, a liderança indígena Raoni Metuktire com a Ordem Nacional da Legião de Honra. Durante o encontro com Macron e Lula, Raoni especificamente demandou o fim da obra de construção da ferrovia chamada “Ferrogrão”, ligando as cidades de Sinop e Miritituba, uma obra essencial para o desenvolvimento econômico brasileiro.
Segundo tanto o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, quanto o presidente da organização Aprosoja, que reúne produtores de soja, a posição de Raoni, que não tem legitimidade para falar por todos os índios brasileiros, parece claramente influenciada por Macron, já que é precisamente Macron quem tem pressionado no plano internacional para que outros países não comprem produtos brasileiros supostamente produzidos com desmatamento.
O problema é que a narrativa das “vantagens” das relações com a França parece bastante frágil. O projeto do PROSUB é de 2008, datando do período Sarkozy e, na prática, as pesquisas brasileiras no âmbito dos submarinos nucleares datam pelo menos dos anos 70. O projeto em si já era problemático desde o início, já que por uma falta de visão geopolítica de longo prazo, não se viu problema algum no compartilhamento de tecnologia militar com a OTAN quando ele foi pensado.
Desde, por exemplo, a Guerra das Malvinas, já deveria ter ficado claro para qualquer país do Terceiro ou Segundo Mundo que não é prudente fechar parcerias militares e tecnológico-militares com países da OTAN quando se mantém pretensões soberanistas ou irredentistas; como a Argentina aprendeu dolorosamente após a França ceder os códigos do Exocet, adquirido pela Argentina, para a Grã-Bretanha.
Por outro lado, é necessário chamar a atenção para o fato de que Macron quer as nossas reservas de urânio para alimentar a própria indústria nuclear, em troca de nos revender combustível nuclear para submarino. Macron se dirige a nós em um período no qual a França tem sido defenestrada da chamada “Françáfrica” por processos nacional-revolucionários, o que ameaça cortar o seu acesso às reservas de urânio do Níger.
Não obstante, a visita de Macron gerou expectativas entre aqueles que acreditavam em um investimento francês para alavancar a indústria nuclear brasileira e finalizar a construção de Angra III – mas as expectativas foram frustradas, e Macron não assinou qualquer acordo neste sentido com Lula.
Não obstante, apesar das expectativas da chamada “Frente Parlamentar Nuclear”, não há muito que a França possa nos oferecer nesse momento de muito vantajoso, até porque o Brasil já assinou, em 2022, um acordo importante com a Rosatom russa que já aborda a perspectiva de construção de novos reatores nucleares de pequeno e médio porte em várias partes no Brasil, inclusive na Amazônia, conforme comentado por Ivan Dybov, presidente da empresa na América Latina.
Eu gostaria, porém, de pensar o assunto em termos geopolíticos ainda mais amplos.
Essa visita de Macron não existe de forma isolada, alienada de outros eventos internacionais. Nada do que está acontecendo é casual. Como já comentamos, França está sendo gradualmente expulsa da África, o que se intensifica com a recente derrota do candidato pró-francês no Senegal.
Ao longo dos últimos 2 anos, o Ocidente tentou nos pressionar e seduzir, de forma direta e aberta, para que nos posicionássemos ao seu lado contra a Rússia na questão ucraniana. Isso se deu sem muito sucesso. O Brasil balançou e ainda balança, mas não aderiu ao alinhamento automático com o Ocidente, tampouco ficou abertamente contra a Rússia. Não aderimos a qualquer sanção contra a Rússia, tampouco fornecemos armas ou munições à Ucrânia; não podendo-se esquecer, porém, que nos posicionamentos contra a Rússia em algumas votações internacionais sobre a questão ucraniana.
Mas o Ocidente não vai se contentar, tampouco desistir, porém parece que agora se avança sobre nós tendo um outro horizonte como guia: nos enredar no maior número possível de relações comerciais atlantistas em setores estratégicos, a ponto de gerar em nós uma dependência incontornável que, inevitavelmente, acabará pautando a nossa política externa até mesmo por razões de pragmatismo da parte de burocratas e políticos brasileiros sem visão de futuro..
Investidas supostamente “vantajosas” e “bilaterais”, vindas de todos os lados do campo ocidental, para cima dos nossos setores energético, militar, infraestrutural, biotecnológico, etc., indicam um cerco “brando” em que, no lugar das ameaças, falarão vínculos comerciais dos quais só poderíamos nos livrar com enormes prejuízos.
Pensemos, por exemplo, o que pode acontecer caso haja um acirramento das tensões internacionais e, ao mesmo tempo, o Brasil se torna dependente do Ocidente atlantista em âmbitos importantes no plano nuclear, energético e militar. Deve-se também ler a recente compra da brasileira Avibrás, produtora dos sistemas missilísticos Astros, por uma empresa australiana.
Com o Brasil enredado nesses diversos acordos e relações bilaterais com os parceiros atlantistas, será muito mais fácil pressionar o Brasil em vários níveis, chegando aos das votações fundamentais da ONU e do Conselho de Segurança. Ameaças de sanções, ou mesmo de ruptura de acordos, farão “maravilhas” para convencer personagens “pragmáticos”, mas carentes de fé no soberanismo, das “vantagens” de se aproximar cada vez mais do Ocidente e da OTAN.
E também é óbvio que isso é, em boa medida, fruto de uma timidez em relação ao BRICS, ao papel futuro dos BRICS e ao papel do Brasil nos BRICS.
Os BRICS se tornaram, para vários dos seus membros, uma plataforma de construção de uma nova ordem multipolar, bem como uma ferramenta de desafio direto ao hegemonismo unipolar que se apoia sobre as instituições internacionais contemporâneas. Nessa condição, as relações intra-BRICS são pensadas como “prioritárias” para vários dos seus membros, especialmente em comparação com as relações com a OTAN e seus parceiros mais próximos.
Para o Brasil, porém, os BRICS ainda são apenas uma associação relativamente solta de países emergentes interessados em parcerias de investimentos e coordenação comercial. Qualquer sugestão mais ousada é vista no Brasil com ceticismo. Nesse sentido, as relações com os BRICS acabam não assumindo a mesma prioridade que outras possíveis relações, e os BRICS acabam sendo vistos apenas como parte de uma ampla rede de relações bilaterais e multilaterais do Brasil.
O Brasil não vê os inimigos de seus amigos como seus inimigos. E não há problema algum nisso.
O problema é: e se as tensões e contradições entre as diferentes visões planetárias de futuro se acirrarem? Como ficamos?
Dirão que deveremos ficar “neutros”, mas os países com a economia excessivamente atrelada à OTAN realmente têm como sustentar neutralidade? Como ficarão os países que adquiriram dependência em setores-chave da indústria bélica e energética?
Esse é o problema de pensar a política externa não como braço da geopolítica, mas como braço da economia, considerando as relações comerciais não em um sentido planetário, mas como meras trocas contratuais equivalentes a se comprar pão na padaria.
Essa é uma das estratégias de cooptação mais eficazes do Ocidente atlantista. O entrelaçamento comercial gera um grau de dependência que abre o país para investidas no âmbito cultural, político e militar. É aí que entram as ONGs e os lóbis para promover a guerra híbrida. Depois é só movimentar as peças no tabuleiro.
E agora tentam fazer isso com o Brasil.
Esse é o verdadeiro segredo da visita de Macron.
Fonte: Strategic Culture.