Tudo indica que o conflito narcoterrorista que se desdobra no Equador está projetado para conduzir o país rumo a uma militarização a serviço dos EUA.
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Qualquer pessoa minimamente informada ou interessada em sua terra e no mundo sabe que, no final do século XX, ocorreu uma aceleração econômico-tecnológica global sem precedentes, que mudou a visão do planeta e de quase todos os seus habitantes. Mas é surpreendente como tão pouca atenção é dada a um dos atores que mais se beneficia dessa nova configuração: o crime organizado. As máfias, os cartéis, as tríades, as yakuza alcançaram uma capacidade sem igual de transformar organicamente as sociedades e seus laços sociais, inserindo-se em organizações estatais ou partidárias, igrejas e seitas religiosas, mercados econômicos e financeiros, mundo cultural e esportivo, etc. Além da vantagem econômica, agora buscam o poder político-social, para serem potências territorializadas. Por trás disso, há um alto nível de pensamento estratégico – o globalismo sabe disso bem – porque para resistir e expandir, uma organização criminosa deve neutralizar o poder político central, tornar-se aliada ou cúmplice através da corrupção ou intimidação e, como último recurso, com violência direta.
No Equador, os governos Moreno e Lasso e os altos comandos das Forças Armadas e da Polícia tentaram nos convencer de que já estamos na última fase, a da violência direta contra o Estado. Sem dúvida, aumentaram as gangues ligadas ao tráfico de drogas, mas também a inércia desses governos a respeito. Os alarmes, no entanto, não funcionaram, apesar do bombardeio de (des)informação governamental, auxiliado pela mídia privada, e apesar de tentativas como a reunião do Conselho de Segurança Pública e Estatal (COSEPE) em 27 de abril de 2023, na qual declararam que o terrorismo é a ameaça que paira sobre os elementos estruturais do Estado e, consequentemente, sobre sua segurança integral e […] que a ameaça terrorista será enfrentada com firmeza, com a participação de todas as funções e instituições do Estado. O COSEPE também solicitou a emissão de um decreto executivo [1] que estabeleça medidas coercitivas urgentes e eficazes, incluindo o uso de armas letais, para combater o terrorismo. O ambiente político adverso a Lasso e a aplicação da medida constitucional conhecida como “Muerte Cruzada” o impediram.
Na tarde de 9 de janeiro deste ano – já era presidente Daniel Noboa, filho de um dos homens mais ricos do Equador – uma gangue de jovens armados assumiu o controle do canal estatal TC. Curiosamente, na alvorada desse dia houve explosões, tiroteios, e nas redes se espalharam notícias de outros assassinatos de prisioneiros, ataques a pontes, sequestro do novo metrô de Quito, etc.: uma atmosfera caótica que teve também repercussões internacionais e lançou o pânico sobre muitos habitantes de Quito. Horas depois, os jovens “terroristas” se renderam à polícia sem resistência, discursos ou qualquer reivindicação ou pedido. Em meio ao tumulto, Noboa emitiu naquela mesma tarde (!) o decreto executivo 111, que identifica a existência de um “conflito armado interno” e prevê “a mobilização e intervenção das Forças Armadas e da Polícia Nacional no território nacional para garantir a soberania” e a integridade territorial contra o crime organizado transnacional, organizações terroristas e atores não estatais beligerantes”, identificando 22 organizações narcoterroristas como alvos militares. Em suma, uma guerra organizada… com uma operação de inteligência.
Um espetáculo, portanto, de manipulação psicossocial, para aterrorizar os equatorianos, e aplicar de uma vez por todas, com resistência mínima, as medidas geopolíticas, políticas e econômicas exigidas pelos organismos globalistas e pelas nossas oligarquias submissas, sob pretexto de segurança.
Dessa forma, foi possível exercer principalmente o controle desejado pelos yankees sobre as Forças Armadas para o nosso continente, especialmente após a queda do comunismo. Isso neutraliza ou enfraquece nossos exércitos envolvendo-os na luta contra o tráfico de drogas, para o qual não estão treinados. E sua dependência do poder do Norte aumenta, fortalecendo ainda mais a coordenação entre o Comando Sul e nossas Forças Armadas para qualquer tipo de intervenção, seja de segurança ou, na época, militar. Em outras palavras, a inteligência americana ou as tropas em nossos territórios, e as forças armadas nacionais, que podem ser usadas para reprimir a população civil quando o descontentamento social eclode devido aos ajustes neoliberais em curso ou, como já está acontecendo, para a brutal repressão militar dos agricultores, comunidades que resistem às atividades mineradoras[2].
Do ponto de vista econômico, o evento em questão serviu para aumentar o IVA de 12 para 15%, para arrecadar, dizem, fundos para o conflito armado interno. Pouco depois, um projeto de lei econômica urgente foi enviado à Assembleia Nacional, segundo o qual as medidas econômicas propostas pelo Executivo servirão para comprar armas, abastecer as forças de segurança e intervir na infraestrutura do sistema prisional, projeto que entrou em vigor por consentimento tácito. Esta lei vai além do aspecto estritamente econômico; ela se insere na estratégia externa deste governo, que liga o aspecto político-econômico institucional a aspectos de natureza militar, em uma medida que contribui para a agenda neoliberal do FMI. Foi também proposto aos governos Moreno e Lasso, que o rejeitaram devido ao seu alto custo político. Noboa e seus conselheiros aproveitaram a oportunidade favorável para implementá-lo, embora tenha vazado que seus recursos não serão destinados ao tão discutido conflito, mas sim para financiar reservas internacionais e gerenciar um novo empréstimo com o FMI.
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Fundamentais também são os acordos assinados entre Equador e Estados Unidos. Apenas de 2019 a 2023 (ou seja, quando governavam Moreno e Lasso), foram assinados 11 acordos de cooperação e segurança. Entre os mais importantes, está a Estratégia Integrada do País [3] (existe uma versão de 2018 para o período Moreno), que abre caminho para os outros. O banqueiro Lasso declara o “presidente mais favorável aos Estados Unidos em mais de duas décadas”, ampliando a parceria em defesa e segurança para melhorar as forças armadas equatorianas, em troca de um aumento significativo nos gastos com defesa, por meio de vendas militares no exterior e vendas comerciais diretas. Em suma, a simples compra de armas, equipamentos de defesa, logística, contratados, instrutores, bem como sua mobilização e manutenção, etc., para o complexo industrial de armamentos do Pentágono e seus fornecedores.
Por sua vez, Noboa ratificou em 15 de fevereiro, com autorização do Tribunal Constitucional, três acordos de cooperação internacional com os Estados Unidos, para os quais esses acordos não necessitam da aprovação da Assembleia Nacional, pois não envolvem uma aliança militar ou belicista, nem atividades de defesa mútua ou reciprocidade em ações militares (sic). Estes tratados, assinados durante o governo Lasso, não foram então ratificados pela Assembleia e foram suspensos. Um deles é o Acordo sobre o Status das Forças, aplicável aos membros das Forças Armadas e funcionários civis do Departamento de Defesa norte-americano, aos contratantes americanos, empresas, corporações e seus funcionários sob contrato ou subcontrato com esse Departamento; todos com privilégios e imunidades como os do pessoal diplomático. Todas as licenças profissionais serão aceitas, poderão usar uniformes, portar armas durante o serviço e usar o espectro de rádio. Além disso, os Estados Unidos terão controle disciplinar e jurisdição penal sobre seu pessoal dentro do território equatoriano. As aeronaves, navios e veículos operados pelo Departamento de Defesa poderão entrar, sair e circular livremente em nosso território.
Outro Acordo é o relativo às operações contra atividades marítimas transnacionais ilícitas, que propõe operações combinadas entre a Marinha equatoriana e a Guarda Costeira dos Estados Unidos, para prevenir, identificar, combater, desencorajar e interceptar atividades marítimas transnacionais ilícitas, especialmente o tráfico de drogas e a pesca não declarada e não regulamentada. Inclui operações e procedimentos para ordens de sobrevoo e pouso, que permitirão que as aeronaves militares americanas operem no espaço aéreo nacional e o atravessem, com autorização e coordenação do Ministério da Defesa. Eles também podem pousar e permanecer temporariamente na base aérea Simón Bolívar e em outros aeroportos alternativos a serem designados, bem como transmitir ordens da aviação equatoriana (FAE) para aeronaves suspeitas que aterrissam lá.
O terceiro acordo é intitulado Assistência na Interceptação Aérea. Trata-se de financiamento, dados de inteligência, informações, formação, controle e comunicações, apoio logístico, dados de radar, principalmente do Sistema Cooperativo de Integração de Informações Situacionais (CSII). O CSII, conforme o acordo, mostra a posição das aeronaves, as pistas de interesse e rastreia um radar relocalizável além do horizonte para determinar a natureza legal ou ilegal de um voo.
Em resumo, em fevereiro deste ano, o Equador foi legalmente transformado em uma base militar norte-americana. Não apenas Manta ou as Galápagos como no passado, mas todo o espaço aéreo e terrestre mais o mar territorial. Em um artigo anterior[4], mencionamos a importância das Ilhas Galápagos para os Estados Unidos na disputa geoestratégica com a China no Pacífico; agora adicionamos a importância geoecônomica da construção do porto de Xangai, a 60 km de Lima, com uma maioria de capital chinesa: a “porta da Ásia” na América do Sul, projetada para ser a via marítima mais importante para transportar produtos da Ásia. Fundamental para o monitoramento dessas atividades é o controle do espaço marítimo equatoriano, uma prioridade para o Comando Sul, especialmente se o confronto com a China continuar a se agravar.
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Compreende-se assim a missão confiada a Laura Richardson, chefe do Comando Sul, durante sua visita em 22 de janeiro de 2024, quando estava acompanhada pelo ex-senador Christopher Dodd, conselheiro do presidente Biden para o hemisfério ocidental. Ao encontrar Noboa e o Comando Supremo das Forças Armadas equatorianas, juntamente com os presentes e as decorações, ela transmitiu a ordem de implementar imediatamente o que, na época, Lasso chamava de Plano Equador.
Neste contexto, um novo ato servil do governo Noboa, que declara como “lixo” o equipamento militar equatoriano de origem russa e se oferece para enviá-lo para a Ucrânia. Em troca de um gesto tão generoso, os Estados Unidos prometem fornecer equipamento militar no valor de 200 milhões. Surpreendido por tanta filantropia, o governo russo responde proibindo 5 exportadores de bananas equatorianas (30% da produção destinada a esse mercado) com o aviso de que poderia adicionar mais empresas à lista. Duas semanas depois, Noboa teve que desistir de ajudar os “irmãos” ucranianos: um embaraço internacional que mais uma vez demonstra a ignorância geopolítica do Ministério das Relações Exteriores, das Forças Armadas e das elites empresariais, que acreditam que a ordem unipolar dos Estados Unidos continuará a governar o mundo e que potências como a Rússia ou a China ainda não são importantes na reconfiguração do planeta. Derrota tática, portanto, do alto comando das Forças Armadas equatorianas, e naturalmente de seus líderes no Pentágono, que não conseguiram se alinhar à estratégia ianque de isolar a Rússia como uma ditadura repudiada internacionalmente. Nosso povo não tem a menor ideia de um risco como este, que o envolve em conflitos entre grandes potências.
Mas essa agenda regional imposta nunca para. Pelo contrário, sua aplicação é acelerada quando interesses nacionais e estrangeiros convergem em eventos como o de 5 de abril: o ataque sem precedentes – ordenado pelo presidente Noboa – à embaixada mexicana em Quito para sequestrar o ex-vice-presidente Jorge Glass, que se refugiara na embaixada desde dezembro de 2023 devido a um novo processo legal contra ele. Apenas duas horas antes deste incidente vergonhoso, o Ministério das Relações Exteriores mexicano lhe havia concedido asilo político e havia pedido ao governo equatoriano que lhe garantisse uma passagem segura para deixar o país. Esta violenta incursão violou a Convenção de Viena (1961), a Convenção sobre os direitos e deveres dos Estados (Montevidéu, 1933) e a Convenção sobre asilo diplomático (Caracas, 1954) e, o mais grave, ameaçou a soberania do México devido aos insultos contra o pessoal diplomático mexicano. O governo de López Obrador imediatamente interrompeu as relações diplomáticas com o governo equatoriano e solicitou uma reunião imediata da Organização dos Estados Americanos (OEA); posteriormente, denunciou o Equador à Corte Internacional de Justiça de Haia pelas “responsabilidades do Equador por violações do direito internacional”.
É importante conhecer o contexto em que ocorre esse ataque à embaixada mexicana: por um lado, a popularidade de Noboa estava em declínio, por outro, com o referendo e a “consulta popular”, estava em jogo sua possibilidade de voltar à presidência em 2025. Além disso, como visto, Noboa conduz sua estratégia política com base em golpes de efeito na população, por meio de uma manipulação emocional alimentada pelo medo e pela “guerra” permanente contra o crime organizado ou o narcoterrorismo. Internacionalmente, isso coincide com as demandas que o presidente López Obrador apresentou ao governo norte-americano em relação ao problema da imigração e à militarização da fronteira (apelo ao respeito à soberania do México e de outras nações), expressando – dentro dos limites devido à situação geográfica mexicana – a posição de não se alinhar com os interesses dos norte-americanos. “Há pelo menos dois séculos os norte-americanos têm uma tendência maníaca de se intrometer na política interna de outros países, não apenas emitindo certificados de boa conduta como se fossem os juízes, o governo do mundo, mas também intervindo militarmente em países com governos não sujeitos aos interesses do governo dos Estados Unidos, esta é a história”[5], explicou; deixando implícito, entre as linhas, que a invasão da embaixada mexicana ocorreu com permissão do Departamento de Estado dos Estados Unidos[6].
Com a vitória de 9 questões em 11 no referendo e na “Consulta popular”, o processo de militarização da sociedade se consolidou e agora tem uma base constitucional. Um maior envolvimento das Forças Armadas e da Polícia na esfera política, sob a liderança de um presidente autoritário, era o principal objetivo desta consulta e, obviamente, foi alcançado. Consumou-se a coordenação ou melhor, a submissão político-militar do Equador à geoestratégia do Comando Sul.
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O Equador sofre desde 2017 de uma gradual e profunda reconfiguração geopolítica, política e econômica condicionada aos interesses geoestratégicos norte-americanos, com governos neoliberais apátridas que têm cedido soberania, pisoteando a República e prejudicando os interesses nacionais sem prestar atenção ao perigo de o país se tornar um estado falido. Grave é o papel das Forças Armadas e da Polícia, que, em vez de defender a soberania e a ordem interna, são os principais promotores dessa rendição, pois, ao impor a imagem de um Estado incapaz de proteger seus próprios cidadãos, nos lançam nos braços dos “irmãos” do norte. As forças antinacionais se beneficiam da intervenção das forças armadas nas ruas e nas prisões, apresentada como um triunfo do governo na luta contra o “narcoterrorismo”, em uma aliança estratégica com os Estados Unidos. E isso, apesar de lutarem e prenderem apenas membros de pequenas gangues, menos que peões, enquanto os verdadeiros chefes do crime organizado, membros de clubes prestigiosos, que têm contatos políticos, judiciais, empresariais e, principalmente, financeiros, não são tocados. Mas elas também se beneficiam da falta de investigações sobre as estruturas e redes bancárias, ou sobre o setor de exportação de bananas, principal via de drogas para a Europa, ligada à lavagem de dinheiro e aos paraísos fiscais, apesar da articulação patente do círculo bancário interno do ex-presidente Lasso com a máfia albanesa, ocultada por altos funcionários de polícia anteriores, com pleno conhecimento da embaixada americana. Nem é mencionada a forte influência do sionismo no governo Noboa[7], representada por um ministro das Relações Exteriores de origem judaica sem nenhum conhecimento das relações internacionais, ou pelo ministro da Defesa Loffredo Rendón, um civil especializado em segurança privada e treinado pelo Mossad, enquanto os principais responsáveis pela compra de armas, uniformes e equipamentos de espionagem para o Estado, por razões de segurança nacional, permanecem em segredo…[8]
Para declarar o “conflito armado interno” e promover a estratégia militar aplicada para combater a suposta crise de segurança, era necessário um ambiente de violência incomum, funcional à aceitação irracional de uma nova situação de despotismo e controle social. Se em qualquer momento crítico o cenário internacional se mostrasse demasiadamente desfavorável para os ianques, isso permite que o Equador intervenha ou seja utilizado como trampolim para atacar um dos inimigos do imperialismo norte-americano. Esta situação está destinada a se reproduzir em vários países da América Latina, para promover divisão, conflitos e caos, como as contínuas viagens da general Richardson, acompanhado pelo diretor da CIA, deixam pressagiar com suficiente clareza.
Notas
[1] https://www.primicias.ec/noticias/politica/reunion-cosepe-declaratoria-terrorismo-bandas.
[2] https://www.prensa-latina.cu/2024/03/26/brutal-represion-militar-contra-comunidad-antiminera-de-ecuador>.
[3] https://www.state.gov/wp-content/uploads/2022/07/ICS_WHA_Ecuador_Public-1.pdf>.
[4] https://www.eurasia-rivista.com/ecuador-uno-stato-fallito/.
[5] https://presidente.gob.mx/estados-unidos-tiene-que-aprender-a-respetar-soberania-de-mexico-presidente/.
[6] https://latamnews.lat/20240424/amlo-insinua-que-postura-de-eeuu-sobre-asalto-a-embajada-mexicana-es-porque-ayuda-a-ecuador-1149978563.html
[7] “Estou particularmente preocupado com a grave situação no Oriente Médio e com os ataques iranianos contra o Estado de Israel. “Todo o apoio do Equador ao povo israelense nestes tempos difíceis”, escreveu o chefe de Estado em X” https://www.swissinfo.ch/spa/presidente-de-ecuador-muestra-preocupacion-por-situacion-oriente-medio-y-respalda-a-israel/75698452
[8] https://www.primicias.ec/noticias/en-exclusiva/gasto-militar-seguridad-ecuador/