Introdução
As realizações e conquistas sociais do peronismo, em sua primeira etapa de governo (1946-1955), são tantas e tamanhas que é comum entre os próprios seguidores do dito movimento interpretá-las como sendo fruto de uma revolução totalmente realizada, uma espécie de “Idade de Ouro” dos trabalhadores e do povo argentino que, com algumas variações de detalhes, pode e deve ser recuperada por meio da organização e da luta.
Paradoxalmente, essa versão do peronismo como uma revolução “concluída”, que deve ser repetida e recuperada, não coincide minimamente com o que pensavam aqueles que a levaram a cabo no passado, nem tampouco e, em especial, com os projetos do próprio General Juan Domingo Perón. Para todos eles, a riquíssima experiência política, econômica e social do período de 1943-1955 é apenas o início de uma transformação revolucionária muito mais profunda e, no que concerne à economia, a verdadeira gênese da gradual socialização dos meios de produção.
Que esse objetivo de socialização é afirmado explicitamente e, desde o princípio, por importantes setores do movimento peronista, pode-se provar com a simples leitura dos estatutos da CGT, aprovado em seu congresso extraordinário de abril de 1950. Em seu preâmbulo, depois de afirmar que “A Doutrina Peronista magistralmente exposta por seu criador, o General Perón, define e sintetiza as aspirações fundamentais dos trabalhadores argentinos e lhes aponta a verdadeira doutrina, com raiz e sentido nacional, cuja ampla e leal aplicação há de forjar uma Pátria justa, livre e soberana”, fundamentam tal definição ideológica no fato de que:
“O processo de realização tende à gradual socialização dos meios de produção e, por sua vez, impõe ao proletariado o dever de participar e gravitar desde o terreno sindical para fortalecer as conquistas da Revolução Peronista, para consolidá-las no presente e alargá-las no futuro” [1].
A inequívoca definição dada pelo movimento operário argentino – qualificado habitualmente pelo General Perón como a “coluna vertebral” do peronismo – não é, por outro lado, uma simples declaração setorial. Em uma ocasião tão importante como o 1 de Maio de 1952, em seu discurso aos legisladores argentinos, tendo como razão a inauguração do 86º Período Ordinário de Seções do Congresso Nacional, o próprio Líder Justicialista afirma decisivamente:
“Assim como a classe dos homens que trabalham vai subsistindo os representantes do individualismo capitalista no panorama político, também a classe dos homens que trabalham vai substituindo progressivamente as empresas individualistas, com novas organizações do tipo cooperativo. Isso significava que os trabalhadores, pela natural evolução econômica de nosso sistema, vão adquirindo progressivamente a propriedade direta dos meios capitais de produção, do comércio e da indústria. Este caminho, pelo qual avançam os trabalhadores argentinos, tem um longo, mas fecundo percurso e possibilitará o acesso do povo à sua própria economia. O velho ideal do povo com a plena posse de seus direitos políticos, sociais e econômicos se realizará então e, naquele momento, a justiça social alcançará o ápice de seus objetivos totais e a doutrina peronista será a mais bela e absoluta das realidades” [2].
Que o peronismo fundador aspirava á total socialização dos “bens capitais de produção, do comércio e da indústria”, resulta, então, irrefutável, mais além do ritmo desta socialização – ritmo que, naturalmente, depende mais da mutante correlação de forças nacional e internacional que de questões ideológicas ou de esquemas teóricos de gabinete.
Terceira Posição
Quando, a partir dos próprios textos peronistas, afirmamos que o peronismo aponta para a socialização dos meios de produção, estamos coincidindo com a acusação do “nacionalismo” fascistizante e antiperonista, segundo o qual o Justicialismo seria “um movimento que sai do capitalismo e caminha para o comunismo”? [3]. Obviamente, não. Os criadores da Doutrina Peronista sempre salientaram seu caráter de Terceira Posição. Seus postulados anticapitalistas são diferentes dos do coletivismo totalitário e burocrático marxista.
No discurso já citado, em 1 de Maio de 1952, é também Perón o que realça magistralmente este terceirismo econômico peronista:
“Para o capitalismo, a renda nacional é produto do capital e pertence ineludivelmente aos capitalistas. O coletivismo crê que a renda nacional é produto do trabalho comum e pertence ao Estado, porque o Estado é proprietário total e absoluto do capital e do trabalho. A doutrina peronista sustenta que a renda do país é produto do trabalho e pertence, portanto, aos trabalhadores que a produzem” [4].
O peronismo não confunde, portanto, socialização com estatização. É anticapitalista, mas pretende, diferentemente do marxismo, não entregar os meios de produção a um gigantesco Estado-Patrão ditatorial, antes, diretamente aos próprios trabalhadores. Trata-se de uma concepção muita semelhante com o que será conhecida como “socialismo autogestionário” [5], ainda que também se possam considerar as posições do anarco-sindicalismo e do sindicalismo revolucionário europeu anterior à Segunda Guerra Mundial, algo que vem tendo destaque em recentes estudos ideológicos imparciais, como o de Cristian Buchruker:
“Mais que do socialismo clássico, o peronismo em gestação adotou ideias fundamentais do anarco-sindicalismo hispânico-francês, o qual já possuía uma tradição que não pode ser negligenciada no sindicalismo argentino. Trata-se aqui de duas exigências: (a) o protagonismo político direto do sindicato (não por mediação do partido), sobretudo através da greve geral como instrumento de ação; (b) o objetivo distante de uma administração dos meios de produção pelos próprios sindicatos” [6].
Pós-Marxismo Revolucionário
Deve-se destacar, por outro lado, que o terceirismo peronista não implica necessariamente em uma “equidistância” a respeito do capitalismo e do comunismo. Isso foi esclarecido por Perón:
“[…] pensamos que tanto o capitalismo como o comunismo são sistemas já superados pelo tempo. Consideramos o capitalismo como a exploração do homem pelo Capital e o comunismo como a exploração da pessoa pelo Estado. Ambos insetificam à pessoa mediante à sistemas distintos. Acreditamos ainda que os abusos do capitalismo são a causa e o comunismo o efeito. Sem capitalismo, o comunismo não teria razão de ser; acreditamos igualmente que, desaparecida a causa, se dará o processo de desaparecimento do efeito” [7].
Quer dizer: o objetivo do peronismo não é outro senão fazer desaparecer o capitalismo, a causa de todos os problemas econômicos, políticos e sociais, o que, por si só, impedirá o surgimento do “efeito” indesejado: o capitalismo estatal “insetificante” comunista.
Essa distinção é de grande importância porque, hoje, perante a passagem das burocracias ex-comunistas da URSS e da Europa para o bando capitalista encabeçado pelos arquibandidos ianques, não faltam flautistas supostamente “peronistas” que declaram “obsoleta” a Terceira Posição e “recomendam” a aceitação do triunfo capitalista”. A esses fracos, portadores da mais infame renúncia, convém rememorar os luminosos pensamentos de Perón e da companheira Evita:
“O peronismo não pode confundir-se com o capitalismo, com o qual não tem nenhum ponto em comum. Isso é o que constatou Perón desde o primeiro momento. Toda sua luta pode se reduzir a isso: no campo social, lutar contra a exploração capitalista” [8].
O Peronismo, portanto, faz enfrentamento implacável ao capitalismo, independentemente de o comunismo existir ou não. Sua rivalidade com o marxismo é no terreno da eficácia revolucionaria: constatar quem consegue derrubar finalmente o injusto sistema capitalista. Daí as orientações precisas do General Perón:
“Nós somos a cabeça do movimento nacional-revolucionário. A nenhum partido ou movimento deve ser dada a permissão de colocar-se em uma atitude mais ‘revolucionaria’ que a nossa. O dia em que isso ocorrer, teríamos perdido nossa ‘razão de ser’ como movimento, ao sermos substituídos na condução popular. Aos justicialistas que se colocam em posições ‘conformistas’ ou ‘conciliatórias’ para com o sistema imperante em nossa pátria: devem ser expulsos do Movimento sem ilusões. São inimigos do povo e, portanto, nossos inimigos” [9].
A deserção das cúpulas marxistas, sejam social-democratas ou comunistas, da frente revolucionária à qual supostamente pertenciam, resolve na prática o pleito entre o peronismo e o marxismo, ao provar que o único anticapitalismo e anti-imperialismo possível na atualidade é aquele corporificado nos Movimento Nacional, Populares e Terceiristas de Liberação: autêntico peronismo argentino; o bolivarianos da Venezuela; o rigor revolucionário islâmico das nações e povos muçulmanos; a resistência torrijista armada no Panamá; etc. Os escassos núcleos que, com intenções melhores do que resultados, ainda estão tentando manter o apego à velha liturgia comunista tradicional, antes ou depois, as abandonarão e superarão as bandeiras do comunismo para integrar-se plenamente às pujantes forças do nacionalismo popular e revolucionário de Terceira Posição.
Processo de Socialização
Sendo o General Perón o condutor de um processo revolucionário real, e não um utopista de gabinete, é lógico que o largo processo de sua produção teórica, mais que dedicar-se a teorizar sobre a sociedade futura, se concentra nos problemas práticos de um governo de libertação nacional e social, ou, após a contrarrevolução oligárquica de 1955, na luta concreta pela recuperação do poder por parte do povo argentino. Isso não significa que o processo de socialização advogado seja tão a longo prazo que se converta em uma simples e inoperante expressão de desejos ou fórmulas retóricas. Na verdade, o líder máximo justicialista expõe, de forma constante e repetidamente, às fórmulas especificas que, a seu juízo, revestirão tal processo de socialização não-estatista. Uma interessante contribuição doutrinária neste sentido é ofertada em uma longa conferência, concedida em 1970 ao jornalista uruguaio Carlos Maria Gutierrez, correspondente do jornal Prensa Latina. Diante da pergunta “Você crê que teria de se chegar, no caso da tomada do poder, à destruição das estruturas burguesas, digamos, da livre imprensa, para empregar o termo corrente? Ir mais além do que se passou entre 1950 e 1955?”, Perón responde sem a menor dúvida:
“Nós estávamos fazendo, mas estávamos fazendo através de um sistema. Que já havia empresas […] As cervejarias do país estavam todas nas mãos de uma cooperativa do sindicato de cervejeiros. Eu pensava fazer o mesmo com as ferrovias enquanto suprimia o déficit: entregá-las ao sindicato dos ferroviários. E havia fábricas, como […] da Lanera del Sur […] a… não me recordo como se chamava, que já estavam sob esse sistema.
A concepção é essa: um promotor da empresa emprega cem milhões para promover uma empresa. Até que ele tenha retirado esses cem milhões, mais seus juros, essa empresa deve ser exclusivamente dele. Mas quando haja retirado seu capital, acrescido de juros razoáveis, essa empresa já não é dele, é de todos que trabalham lá. Essa é a concepção cooperativista da empresa. Por esse sistema, você vai levando tudo na direção de cooperativas; cooperativas onde trabalham patrões, trabalhadores e todos, mas que trabalham na produção.
Agora se isso não acontecer com todas as empresas, o Estado, no final terá que assumir o controle daquelas onde isso não tenha se realizado” [10].
Trata-se de uma citação tão extensa quanto instrutiva, que nos mostra um modo (não o único proposto por Perón) de chegar gradualmente e sem derramamento de sangue à entrega dos bens de produção aos trabalhadores — realça a concepção cooperativista-sindical deste processo de socialização e, por sua vez, recupera exemplos concretos com os quais o peronismo no poder avançou em direção.
Cooperativas e Peronismo
A concepção das formas cooperativas de propriedade como um dos meios principais de socialização não-estatista da economia é lógica “porque, como destaca Perón, é um ideal justicialista que todo o processo econômico caia em mãos dos ‘homens que trabalham’, e o sistema cooperativo tende a isso” [11].
Que não se trata de uma mera declaração retórica salta à vista se comparamos, por exemplo, as cifras relativas ao cooperativismo argentino entre 1946 e 1951. Entre estas datas, o número de cooperativas passa de 1.299 a 2.400; o número de associados de 500.000 a 800.000; o capital subscrito (em milhões de pesos) de 95 a 350 e as operações efetuadas (também em milhões) de 361 a 2.000. Ou dito de outra forma: em apenas cinco anos, o setor cooperativo aumenta em 100% o seu número; 60% os seus associados; em 260% o seu capital subscrito e em 440% em termos de operações realizadas.
Esse gigantesco salto se aprofunda mais a partir de 1952 e, sobretudo, com a promulgação do Segundo Plano Quinquenal. Em sua exposição do 1de Maio daquele ano, o General Perón mostra essa linha estratégica na economia:
“As cooperativas agrárias têm merecido nosso total apoio, já que elas são, na economia social da doutrina peronista, unidades de ação econômica que realizam o acesso dos homens que trabalham à posse total do instrumento e dos frutos de seus esforços. A ajuda em crédito fornecida às cooperativas alcançou, em cinco anos, a soma de 1.000 milhões de pesos e seguem em progressivo aumento. Assiná-lo, como norma definida para o futuro, a de conferir primazia de crédito às organizações cooperativas em relação às empresas de caráter individual. Chegaremos progressivamente a deixar em mãos da organização cooperativa agrária todo o processo econômico de produção. Não deve haver no país um só agricultor que não seja cooperativista, porque a organização cooperativa é para o trabalhador agrário o que a organização sindical é para o trabalhador industrial, sem que isso signifique que a indústria não possa se organizar também de forma cooperativa” [12].
A cooperativização-socialização total dos meios de produção é, portanto, um objetivo explícito do peronismo. Tal cooperativização concentra, em princípio, sobretudo o terreno agrário, por ser este um domínio econômico de mais fácil socialização e onde, ademais, existe uma notável tradição de organizações cooperativas antes do Justicialismo, mas se expande para atingir o fim assinalado pelo General Perón:
“As cooperativas como unidades básicas justicialistas para a organização nacional da produção, da indústria e do comércio” [13].
Estado Revolucionário
A defesa que o peronismo faz do modelo cooperativo de organização econômica não pode e nem deve confundir-se com as fantasias reformistas que sobre as cooperativas têm grupos pequeno-burgueses, como os diversos destacamentos do Partido Socialista do deputado gorila Juan B. Busto. O Movimento Nacional de Liberação criado por Perón, ao contrário dos ditos grupos social-democratas, sabe que – embora pareça um truísmo recordá-lo – o sistema capitalista é criado para que triunfem os capitalistas e, portanto:
“Os fracassos do cooperativismo, em tempos de economia capitalista, são explicáveis e perfeitamente lógicos: uma cooperativa, expoente perfeito da economia social, não podia conciliar seus interesses nem poderia enfrentar-se com os monopólios do capitalismo” [14].
Para evitar isso, é necessário um ordenamento político e social, um Estado que comande as “regras do jogo” capitalista e as substitua por outras de tipo revolucionário, popular, anticapitalista e pró-cooperativista, haja vista que:
“[…] sem dúvidas, o movimento cooperativo não pode ir adiante sem o apoio do Governo. Em todas as partes do mundo, as cooperativas têm fracassado quando têm contra si o Governo” [15].
Especificamente, isso significa que:
(1) Remover da oligarquia o controle sobre os setores fundamentais da economia. Segundo a Constituição Justicialista de 1949, em seu artigo 40, estes setores fundamentais são a importação e a exportação; minerais; quedas d’água; jazidas de petróleo;m, de carvão e de gás e as demais fontes naturais de energia, com exceção dos vegetais; assim como os serviços públicos. Corresponde sua propriedade, em princípio, ao Estado, ainda que, como vimos, na medida em que avança o processo revolucionário, parte dessas atividades possa passar para as mãos dos trabalhadores do setor, por meio de suas cooperativas operárias ou sindicatos. É possível também, como mostra o caso SEGBA, a existência de formas intermediárias de cogestão operário-estatal, assim como empresas de direção tripartite: Estado-Trabalhadores-Usuários.
(2) Uma planificação indicativa que, sem cair nos erros centralistas burocráticos da planificação do tipo estatista-comunista, impeça que, com o velho conto do “livre mercado”, acabem por manipular a economia um punhado de grandes empresas estrangeiras ou nativas.
“A ostentada ’liberdade econômica’ não passou nunca de uma ficção, uma vez que à economia ou o Estado dirigem ou fazem, em seu lugar, grandes consórcios capitalistas, com a diferença de que o primeiro pode faze-lo em beneficio do povo, ao passo os últimos normalmente fazem em seu prejuízo” [16].
(3) Formas de apoio direto do Estado às cooperativas e empresas sindicais, o que inclui, desde o apoio em crédito preferencial até a contratação direta, por parte do Estado, naquelas tarefas que normalmente ficam por conta de empresas capitalistas. Aqui convém recordar uma afirmação direta do General Perón aos membros do Comitê Central e delegados regionais da CGT, que visitaram a residência presidencial de Olivos, em 9 de Agosto de 1950:
“O Governo está disposto a dar às cooperativas operárias a oportunidade para que façam os negócios que lhes permitam ganhar muito dinheiro, em lugar de entregá-las, como se fazia antes, à entidades capitalistas”.
(4) O combate ideológico contra sobrevivências da mentalidade burguesa-individualista, promovendo a consciência de formas de economia social e cooperativa, especialmente entre os jovens. O Segundo Plano Quinquenal, por exemplo, sustenta em seu parágrafo IV. G. 14 que:
“A difusão dos princípios do cooperativismo e da constituição de cooperativas escolares e estudantis serão patrocinadas pelo Estado a fim de contribuir na formação da consciência nacional cooperativista e prestar serviços úteis aos alunos” [17].
Socialização Integral
Quando, anteriormente, recordávamos que, para o General Perón, as cooperativas deviam tender a se converter nas “unidades básicas justicialistas para a organização nacional da produção, da indústria e do comércio”, fica claro que a socialização-cooperativização que o peronismo propunha não se reduz ao nível de cada empresa ou unidade econômica de produção. Isso porque, apesar da entrega de todas as empresas para seus próprios técnicos e trabalhadores, organizados em cooperativas, impedir tanto a exploração do homem pelo homem (capitalismo), como a exploração do homem pelo Estado (comunismo), ela nem por isso resolve todos os problemas da economia. Para começar, não assegura a igualdade de oportunidades, dado que existem setores econômicos mais produtivos que outros e, dentro de cada setor econômico, empresas maiores e menores, mais modernas e mais atrasadas, etc. Tampouco se garante uma real solidariedade nacional: a partir do momento em que essas empresas cooperativadas se desenvolvem no marco de uma economia de mercado, necessariamente se provocará uma brutal competição entre as empresas, que passariam a considerar cada coletivo operário ou cooperativo como um rival na busca por benefícios e por outros coletivos operários e cooperativos.
Para evitar tais possíveis efeitos negativos, o General Perón impulsiona cooperativas, não isoladamente, mas sim a partir da “universalização da organização cooperativa” [18], mediante à Federação de Cooperativas de cada ramo de produção. Estas, estruturadas democraticamente e de baixo para cima, permitiriam que cada empresa fosse comandada de modo direto e sem burocracias externas por seus próprios técnicos e trabalhadores e, por sua vez, criaria canais solidários de redistribuição dos benefícios gerais para apoiar aquelas cooperativas operárias associadas que, por diversas razões, estivessem sofrendo desvantagens objetivas alheias ao trabalho ou à gestão de seu coletivo de trabalho (locação em províncias distantes do circulo comercial, desastres naturais, etc.).
Há de se destacar que, como detalha Perón em 13 de Outubro de 1952, em uma exposição ante representantes das cooperativas agropecuárias, estas Federações de Cooperativas não englobam só um ramo econômico, mas, ao contrário, participam de modo direto de todo o processo produtivo e de comercialização. No caso das próprias cooperativas agrárias, Perón propunha concretamente os seguintes campos de ação.
“O governo aspira a que as cooperativas agropecuárias constituam as unidades básicas da economia social agrária e que sejam participantes, primeiro, no processo desbravado, e na ação estatal que tenda a conseguir a redistribuição de terra em unidades econômicas sociais adequadas. Segundo: que participem no processo produtivo mediante a utilização racional dos elementos básicos do trabalho agropecuário: maquinaria agrícola; galpões ferroviários; silos; elevadores de grãos; sementes; etc. Terceiro: que participem também no processo interno de comercialização das colheitas de seus associados, para a qual o Estado auspiciará o acesso dos produtores organizados aos centros de consumo, mercados oficiais, etc. Quarto: que participem no processo de industrialização regional primária da produção agropecuária de seus associados. Quinto: que participem na ação estatal para suprimir toda intermediação comercial desnecessária. Sexto: que participem na fixação de preços básicos e preços diferenciais, que se fixarão a favor das cooperativas agropecuárias. Sétimo: que participem na redistribuição das margens de lucro que forem obtidas com a comercialização. Oitavo: que participem da ação social direta a cumprir-se integralmente em benefício dos produtores agropecuários e, por último, o Estado auspiciará a organização de um sistema nacional unitário de cooperativas de produtores agropecuários que representem todos os produtores do país e defenda seus interesses econômicos e sociais” [19].
Trata-se, portanto, de uma estruturação integral da economia que, partindo das cooperativas autônomas e descentralizas, engloba o processo de produção em seu conjunto, racionalizando este mesmo processo produtivo, abaixando custos e impedindo que cada setor da cadeia produtiva e da comercialização compita com outros. Como disse o Líder Justicialista:
“O Governo está disposto a prestar a ajuda mais extraordinária para que as cooperativas criem suas próprias fábricas de ferramentas e máquinas agrárias” [20].
Nada ficou de fora. Cada Federação de Cooperativas, ou “Sistema Nacional Unitário de Cooperativas”, além de englobar todas as cooperativas deste setor econômico, coordena o processo de produção em seu conjunto: desde a produção propriamente dita à comercialização, passando pelo transporte e até a fabricação de bens e elementos necessários.
Empresas Sindicais
As cooperativas federadas não são o único método de socialização impulsionado pelo peronismo. Na já citada entrevista concedida pelo General Perón a Carlos Maria Gutiérrez, o criador do peronismo menciona um tipo especial de cooperativas: a cooperativa de sindicatos. Nestas, a coordenação das distintas empresas cooperativadas se dá mediante uma organização sindical que, de modo natural, alcança a todo o ramo de produção. Alcança-se, assim, a velha tese do sindicalismo-revolucionário, que tanto influência tivera sobre o movimento operário pré-peronista e que, desde a Carta de Amiens (1916), havia proclamado que “o sindicato atualmente nada mais é que um grupo de resistência; será no futuro responsável pela produção e distribuição, bases da organização social” [21]. Como esse modelo de cooperativização sindicalista é mais fácil de ser aplicado na indústria, setor mais importante da economia argentina, e por isso, logicamente, tendendo a predominar como modelo no ideal peronista, de tal modo que Perón chega a definir o Estado Peronista futuro como um “Estado Sindicalista” [22].
As cooperativas ou empresas sindicais têm sido às vezes denominadas também Empresas Comunitárias. Em Fundamentos da Doutrina Nacional Justicialista, texto da Escola Superior de Condução Política do Movimento Justicialista, define-se da seguinte forma a Empresa Comunitária:
“Considerada em seu aspecto funcional, a empresa é uma comunidade hierarquizada de produtores, diversamente especializados, que operamnno sentido de fabricar determinado artigo ou prestar determinado serviço, valendo-se para isso das ferramentas ou máquinas que impõe a técnica moderna. Considerada, pelo contrario, em seu aspecto legal, essa mesma empresa não passa, hoje em dia, de um mero capital que compra máquinas, matérias primas e trabalho. Pura ficção, pois, supor que se, por um passe de mágica se suprimirem os donos do capital, a empresa seguirá funcionando sem a menor perturbação, enquanto que ela pararia e desapareceria se fossem eliminados os produtores. Não basta, portanto, melhorar o nível de vida do proletariado. Não basta dar ao produtor o lugar que lhe corresponde na Comunidade. Não resolve nada mudar o sistema capitalista substituindo a oligarquia burguesa por uma oligarquia burocrática. O que é necessário é abolir o trabalho assalariado, devolvendo a empresa, apreendida em sua realidade orgânica, a possessão e, se possível, a propriedade de seu capital, assim como a livre disposição do fruto de seu trabalho. Qualquer ente social, pessoas, grupo ou comunidade tem o direito natural de possuir os bens que são imprescindíveis para subsistir e realizar-se plenamente. O município, por exemplo, tem naturalmente direito à propriedade da via pública ou da rede de iluminação. O município, em si, não é a soma de seus habitantes. Quando alguém vem instalar-se em uma cidade, não tem que comprar parte da rua ou da vizinhança, nem tem que vendê-la quando parte. A empresa é também um ente social independente de seus integrantes individuais momentâneos. É ela quem tem que ser dona de seu capital, o qual encontrará e usufrutuará o produtor ingressante e deixará para um sucessor, o produtor ingressante. Isso vale tanto para a empresa industrial como para a empresa agropecuária. Os reformistas pequeno-burgueses, que querem lotar as unidades orgânicas de nosso campo, fomentam o minifúndio e a miséria. A terra deve ser dos que trabalham nela, como as máquinas de quem trabalha com elas. Tal principio não supõe, em absoluto, a separação da propriedade dos instrumentos de produção, mas a supressão da propriedade individualista dos bens que outros, pessoas ou grupos, necessitam. Ou seja, a supressão do parasitismo em todas as suas formas. Eliminando o parasitismo capitalista, as classes desaparecerão ipso facto. Não haverá mais burgueses nem proletários, mas sim produtores funcionalmente organizados e hierarquizados em suas empresas. O grêmio irá, em seguida, perder o caráter classista que impôs uma luta necessária, cuja responsabilidade não porta, e voltará a se converter em uma federação de empresas comunitárias, com o patrimônio assistencial de que necessita e os poderes legislativo e judicial que definirão os seus foros. Em cada grêmio, um banco distribuirá o crédito entre empresas, no marco da planificação e da gestão econômica do Estado Nacional. A Revolução Justicialista não busca, pois, chegar a uma composição entre capitalismo individualista e o capitalismo de Estado, nem ‘melhorar as relações entre capital e trabalho’ . Repudia integralmente qualquer forma de exploração do homem pelo homem e quer voltar, em todos os campos, à ordem social natural. Esse é o sentido de nossa terceira posição [23].
As cooperativas sindicais, ou empresas comunitárias, portanto, coincidem com as cooperativas “tradicionais”, em que a propriedade não pertence a um capitalista individual burguês ou ao Estado-Patrão e, ao mesmo tempo, se diferencia destas mesmas cooperativas pelo fato de que propriedade não é divisível, porque ela pertence inteiramente à comunidade de trabalho de técnicos e trabalhadores que lhe dão forma.
Além disso, mais uma vez voltamos a enfatizar isso, a solução peronista não é só a nível microeconômico (socialização da empresa), mas também ao nível macroeconômico (socialização global da economia).
Condução Econômica da Nação
O que denominamos socialização “global” ou “integral” da economia é outro dos traços que diferenciam o peronismo, tanto do capitalismo como do comunismo. Para o General Perón:
“A doutrina econômica que sustentamos estabelece claramente que a condução econômica de um país não deve ser realizada individualmente, que isso conduz à ditadura econômica dos trustes e monopólios capitalistas. Tampouco deve ser realizada pelo Estado, que converte a atividade econômica em burocracia, paralisando o jogo de seus movimentos naturais. O Justicialismo, sempre, em sua terceira posição ideológica, sustenta que a condução econômica da Nação deve ser realizada conjuntamente pelo governo e pelos usuários, que são os produtores, comerciantes, industriais, os trabalhadores e, ainda, os consumidores. Vale dizer: pelo governo e pelo povo organizado!
Enquanto isso não se realiza plenamente, o governo cometerá os erros próprios de toda condução unilateral e arbitrária, por maior que seja usa boa vontade” [24].
Tais indicações, que se referem à etapa de transição do peronismo, quando ainda existe um importante setor econômico privado, não pressupõem e nem poderia pressupor que o Líder da Revolução Final argentina oculte o objetivo final anticapitalista de seu projeto. Daí que, em continuação ao anterior, ele esclareça:
“Nós queremos compartilhar com os interesses privados a condução econômica da República, mas exigimos que estes interesses se coloquem na linha peronista, que aponta para nossos dois grandes objetivos econômicos: a economia social e a independência econômica, haja vista que tais são os imperativos soberanos que o povo nos impôs e que nós temos que cumprir de qualquer maneira: se possível, com a colaboração das forças econômicas, ou enfrentando-as, se elas não quiserem compartilhar conosco o imperativo do povo soberano. Nessa terra, não reconhecemos, senhores, mais do que uma só força soberana: a do povo. Todas as demais existem para servi-la. Qualquer um que tente inverter este valor fundamental está, só por isso, atentando contra o primeiro, básico e essencial princípio do peronismo – atenta, portanto, contra o povo e está, na outra parte, fora da Constituição Nacional que rege o rumo da República […].
É necessário que ninguém seja levado ao engano: a economia capitalista não tem nada a ver com nossa terra. Seus últimos redutos serão, para nós, objeto de implacável destruição” [25].
A conclusão é que, seja com a participação das organizações empresariais (na etapa de transição) ou sem elas (quando o peronismo tiver conquistado seu objetivo econômico de entregar os meios de produção aos próprios trabalhadores auto-organizados), existe uma planificação democrática e indicativa na qual participam o governo, os trabalhadores (mediante aos sindicatos, federações de cooperativas e empresas comunitárias), organizações de usuários de serviços, consumidores e todo tipo de organizações livres do Povo. Se evita, assim, os erros burocráticos de uma planificação burocrática e ultra centralizada, como a comunista, e, por outro lado, se dá uma margem de manobra relativamente grande para o mercado [26].
Estado Sindicalista
Mas não só o Estado Justicialista vai delegando gradualmente funções econômicas às organizações de trabalhadores. Em verdade, o peronismo aponta para a socialização da economia e do poder através do qual essas mesmas organizações de trabalhadores, federadas democraticamente, desde a empresa até subir ao nível nacional, acabem por assumir a representação e o controle político gradual do país:
“A representação política tem uma função essencial a cumprir no jogo da verdadeira democracia que nós defendemos. Mas também sustento, como um princípio indiscutível que emana da experiência política dos últimos tempos, entre nós e no mundo inteiro, que tão essenciais quanto às organizações políticas são no jogo da verdadeira democracia, o são igualmente as organizações sindicais. Não existe contradição em nossa doutrina quando afirmamos que este, indubitavelmente, é um momento de transição dos Estados políticos para os Estados de estrutura sindical […]. A afirmação do direito à cooperação com o governo do país, que nós reconhecemos, defendemos e realizamos para as organizações sindicais, não exclui o direito de nenhum outro argentino; mas na mesma medida em que todos os cidadãos do país vão integrando a única classe de argentinos que deve existir nessa terra – a classe dos homens que trabalham –, a representação política deixará de sê-la no antigo e desprestigiado sentido da palavra, para adquirir o novo sentido peronista em sua dignidade” [27].
A socialização da economia e do poder, portanto, vão seguindo intimamente ligadas e, como sagazmente afirmará Perón em um texto de 1968, ambos os aspectos não se podem jamais desligar, já que, em última instância, os partidos demoliberais (instrumentos burgueses de deformação e de controle da vontade popular) são uma consequência do capitalismo e, portanto, sem acabar com o capitalismo, é impossível substitui-los por um novo e mais efetivo tipo de democracia dos trabalhadores:
“Os confusionistas e partidários da erradicação da política [parlamentar], querem tentar faze-lo via decreto, sem entenderem o quão difícil é ir ao cerne da questão através de decretos quando as causas seguem gerando seus efeitos — porque de nada importa a existência legal quando se está subjugado à existência real. Para que desapareçam as entidades demoliberais, é preciso que antes desapareça o demoliberalismo. No mundo de nossos dias, ao desaparecer paulatinamente o sistema capitalista, vão desaparecendo também os partidos demoliberais, que são sua consequência. Resulta o mais anacrônico quando se atenta contra essas formações políticas enquanto, por outro lado, afirma-se por todos os meios o sistema que os justifica. A intenção de deixar os povos sem nenhuma representação não é nova, nem é original, porque todas as ditaduras o tentam, mas a História demonstra eloquentemente que, quando isso se produz, as consequências acabam sendo funestas para as próprias ditaduras que o promovem” [28].
Ao contrário do demoliberalismo capitalista e burguês, o peronismo busca “uma democracia direta e expeditiva” [29]. No entanto, a ela não se chega por ditaduras totalitárias de tipo fascista ou marxista, senão pelo aprofundamento dessa mesma democracia política e por sua extensão ao terreno econômico, mediante a socialização direta (e não-estatista) dos meios de produção. Trata-se, evidentemente, de um processo longo, complexo e gradual, o qual, com sincera modéstia, Perón reconhece ter iniciado apenas os primeiros passos:
“Entre o político e o social, o mundo se encontra em um estado de transição. Temos a metade sobre o corpo social e a outra metade sobre o corpo político. O mundo se desloca do político ao social. Nós não estamos decididamente nem em um campo, nem no outro: estamos assistindo ao final da organização política e ao começo da organização social […]. Isso quer dizer que todo este processo vai se realizando aos poucos. Eu não posso abandonar o partido político para substituí-lo pelo movimento social. Tampouco posso substituir o movimento social pelo político. Os dois são indispensáveis. Se essa evolução continua, nós continuaremos ajudando-a. Quando se chegar o momento propício, faremos um belo enterro, com seis cavalos, para o partido político e chegaremos à outra organização. Contudo já estamos em marcha rumo ao Estado Sindicalista, não tenham a menor dúvida” [30].
A democracia fabril e a autogestão da economia irão, portanto, substituindo gradualmente os partidos políticos, que não tem porque ser proibidos ou ilegalizados já que, deixados de lado pelos cidadãos-produtores, fenecerão e desaparecerão como cascas vazias.
Utopia Peronista?
Até que ponto pode chegar semelhante socialização da economia e do poder defendida pelo peronismo? De fato, o General Perón, e com ele a maioria dos teóricos justicialistas, se sempre se negaram a elaborar as muito complexas elucubrações sobre serem revolucionários e não utopistas ou futurólogos, ademais:
“O apelo à utopia é, com frequência, um cômodo pretexto quando se quer fugir das tarefas concretas e se refugiar em um mundo imaginário — mas viver em um futuro hipotético significa abandonar as responsabilidades imediatas. Também é frequente que se apresentem situações utópicas para fazer fracassar autênticos processos revolucionários. Nosso modelo político propõe o ideal, não a utopia, de realizar duas tarefas permanentes: aproximar a realidade do ideal e revisar a validade deste ideal para mantê-lo aberto à realidade do futuro” [31].
Desde esta perspectiva, desde a visão de um modelo “ideal” que se aproxima da realidade e revisa a si mesmo sob a luz desta mesma realidade, pode ser relevante expor a descrição feita do socialismo nacional peronista na década de 70, pela hoje desaparecida Tendência Nacional e Popular do Peronismo:
“O socialismo nacional é o projeto dentro do qual o povo argentino exercerá um poder decisivo por si e diante de si nos níveis do Estado, da empresa e da universidade, através do controle operário dos meios de produção, da comunicação e da educação. É um socialismo de autogestão no qual cada fábrica, cada oficina, cada laboratório, sala ou biblioteca se transforma em uma célula política com poder de crítica e de controle sobre a planificação nacional, bem como sobre a ação política interior e exterior. O socialismo nacional é a democratização absoluta do aparato informativo e a abertura integral da capacitação técnica à massa operária. É a formação de um partido capaz de emitir todos os impulsos ideológicos necessários para que, em cada momento do processo, o povo esteja presente, real e intensamente, na elaboração das supremas decisões nacionais. É a Assembleia do Povo que transforma estes impulsos em leis populares. É o Estado técnico-planificador que concentra toda a atividade informativa e prospectiva desde e para as estruturas sociais e econômicas descentralizadas. Socialismo nacional significa plena vigência da opinião comunitária através de conselhos de produção, serviços e educação. É a empresa sob o controle do coletivo operário. É a universidade governada por professores revolucionários, investigadores e estudantes. É a aliança da universidade e da empresa socializada e submetida ao regime de autogestão. Socialismo nacional é, em suma, participação total, justiça para os trabalhadores e domínio do povo de todos os impulsos de ação política” [32].
Peronismo dos Trabalhadores:
Críticas detalhistas à margem, o texto anterior pode ser considerado uma interessante aproximação a uma economia peronista plenamente realizada, ainda que, voltamos a repetir, se no peronismo não abundam descrições detalhadas desse tipo é porque, em imitação ao seu fundador, a tarefa essencial é impor na prática um modelo político, econômico e social que parta da realidade atual para criar essa nova realidade. Uma realidade que, em princípio, não é ainda socialista, mas sim nacional e popular, já que a Argentina pré-peronista (como reconhece o próprio Lênin em seu célebre O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo [33]) era uma virtual “colônia comercial” britânica. Por isso mesmo, e sem necessidade de se basear em textos estrangeiros, Perón afirma taxativamente que a tarefa prévia de qualquer revolucionário não era e não é outra que conseguir quebrar estas correntes imperialistas e recuperar a autodeterminação nacional, seja frente ao imperialismo inglês do passado ou ao imperialismo ianque atual, que recolonizou a Argentina precisamente a partir da derrocada militar do Governo Popular Peronista em 1955:
A felicidade de nosso Povo e a felicidade de todos os povos da terra exige que as nações, cuja vida constituam, sejam socialmente justas. E a justiça social exige, por sua vez, que o uso e a propriedade dos bens que formam o patrimônio da comunidade se distribuam com equidade. Mas mal pode distribuir equitativamente os bens da comunidade um país cujos interesses são manejados desde o exterior por empresas alheias à vida e ao espírito do Povo cuja exploração eles realizam. A felicidade do Povo exige, pois, a independência econômica do país como primeira e incontornável condição! [34].
Consequência lógica do caráter anti-imperialista da revolução argentina durante sua primeira etapa é que a contradição central não é “socialismo ou capitalismo”, mas “Pátria ou colônia”, “Nação ou Império”, “Liberação ou Dependência”. Setores patrióticos e anti-imperialistas, ainda que não necessariamente defensores de um socialismo nacional tal como o entendia o General Perón, podem e devem participar ativamente neste verdadeiro Movimento Nacional de Liberação que é o peronismo. Mais ainda, toda a história do peronismo pode se reduzir a um esforço duplo, genialmente exemplificado pela condução de Perón: de um lado, ampliar ao máximo o peronismo e seu campo político e social de influência; do outro lado, gerar os “anticorpos” organizativos e ideológicos de massas suficientes para que essa mesma amplitude não acabe gerando desvios de “direita” ou de “esquerda”, ou freando o impulso revolucionário do movimento das massas. E aqui vem como anel ao dedo recordar uma das mais reconhecidas cartas do General Perón à Juventude Peronista:
Não tentamos de nenhuma maneira substituir um homem por outro, mas um sistema por outro sistema. Não buscamos o triunfo de um homem ou de outro, mas o triunfo de uma classe majoritária, que conforma o Povo Argentino: a classe trabalhadora. E porque buscamos o poder para essa classe majoritária é que devemos nos prevenir contra o possível “espírito revolucionário” da burguesia. Para a burguesia, a tomada do poder significa o fim de sua revolução. Para o proletariado, a classe trabalhadora de todo o país, a tomada do poder é o princípio desta revolução que nós desejamos, para a mudança total das velhas e caducas estruturas demoliberais […]. Se realmente trabalhamos pela Liberação da Pátria, se realmente compreendemos a enorme responsabilidade que já pesa sobre nossa juventude, devemos insistir em tudo o assinalado. É fundamental que nossos jovens compreendam que devem ter sempre em mente, na luta e na preparação da organização, que: é impossível a coexistência pacífica entre as classes oprimidas e opressoras. Apresentamos-nos a tarefa fundamental de triunfar sobre os exploradores, ainda que eles estejam infiltrados em nosso próprio movimento político [35].
A Terceira Posição justicialista não é, portanto, um pálido capitalismo reformista “de rosto humano”, nem uma mistura arbitrária de capitalismo e marxismo. É uma solução revolucionária e integral: “O objetivo central da ‘Terceira Posição’ pode ser resumida assim: socializar sem dissolver a personalidade, socializar sem extinguir a independência da consciência individual frente ao Estado, socializar sem confundir totalmente indivíduo e sociedade, sociedade e Estado” [36].
O General Perón, com sua linguagem sempre mais simples e compreensível, saberá dizê-lo de outra forma: “Nem tudo é pão nessa vida. O trabalhador deve não só semear o trigo e produzir o pão, mas conquistar uma posição, desde a qual possa dirigir a plantação e a fabricação do pão” [37].
Vigência Revolucionária do Peronismo:
Em 1983, pouco após recupera-se a democracia política na Argentina, um estudioso do justicialismo assegurava com notável perspicácia sobre o Movimento Peronista:
No aspecto ideológico, se apresentam, em termos sintéticos, três grandes opções: a) a da diluição sob o modelo de um partido de inspiração social-cristã ou trabalhista – esta última com certa tradição no Movimento; b) a opção pelo partido de vanguarda, contida nas formulações do projeto foquista guerrilheiro; c) a orientação rumo a uma democracia autogestionária dos trabalhadores, que parta das experiências de luta do justicialismo para articular a democracia, a luta operária e questão nacional [38].
A essas opções, grosso modo, correspondem as três interpretações históricas diferentes sobre a Doutrina Peronista:
a) Aquelas que se conformam com uma reedição mais ou menos atualizada do período 1944-55, quer dizer: um capitalismo nacional autônomo, independente em relação ao imperialismo, com fortes traços democrático-populares e altamente distributivos. Nessa visão, que poderíamos chamar de “histórica” ou “tradicional” do peronismo, devem se situar não só às facções “social-cristã”, “socialdemocrata” ou “trabalhista”, mas também certas correntes “nacionalistas”, inclusive “fascistizantes” (que desdenham dos aspectos democráticos do pensamento de Perón) ou do autodenominado “nacionalismo popular revolucionário peronista”, formalmente mais “esquerdista” e, na prática, mais combativo, mas que, em relação a seus objetivos finais, não supera os limites de todo este recorte peronista.
b) O peronismo fortemente “heterodoxo”, continuador da pequena-burguesia peronizada na década de 60 e que, em diferentes graus e proporções, tenta misturar peronismo e elementos ideológicos estranhos à tradição justicialista: enfoque filo-castrista ou maoistizante; foquismo; “nova esquerda” dos anos 60; etc. Essa corrente, hoje muito enfraquecida após a derrota montonera, tenta ir mais além da experiência de 1945-55, mas o Socialismo Nacional que defende tem excessiva influência marxista, o que vem a se chocar com a “lógica” do grosso do peronismo, que, geralmente e com razão, tende a visualizá-lo como excessivamente nas fronteiras do peronismo, com um pé dentro e o outro em direção às seitas antiperonistas.
c) Os que entendem que o desenvolvimento natural do peronismo é uma “democracia autogestionária dos trabalhadores”, surgida não por introdução de uma ideologia ou construção teórica alheia ao peronismo, mas como desenvolvimento dos enfoques teóricos do próprio General Perón e da experiência e memória histórica do conjunto do Movimento (e não só de facções internas de vanguarda). Essa corrente, por seu próprio apego ao sentido comumdas bases e dos quadros históricos do peronismo e, ademais, diante da bancarrota histórica do marxismo (que salpica a “esquerda peronista”) neo ou pós-moderno, é a única que, hoje, pode hegemonizar a militância mais combativa e consequente do Movimento, impedindo a reedição de enfrentamentos fratricidas internos como os da década de 70. Mais ainda, com essa corrente revolucionária ortodoxaou revolucionária terceirista (por reivindicar explicitamente o anticapitalismo do peronismo, mas também seu antimarxismo), surge o “aprofundamento” do peronismo “tradicional” e não, como no caso do montonerismo, a sua negação; sua possibilidade de desenvolvimento é enorme – em especial porque, diante de uma camarilha liberal que usurpa a condução do justicialismo, mas que nega todos os seus postulados históricos (nos referimos, obviamente, ao menemismo), todos os setores do peronismo podem atuar em conjunto durante um longo tempo para além das suas matizes: trabalhistas; social-cristãos; socialdemocratas; nacionalistas; nacionalistas populares-revolucionários e terceiristas-revolucionários.
O crescimento desta última tendência depende, portanto, mais que da pregação diferencial e ideologista, da condução prática de todas e de cada uma das lutas e de seu prospecto organizativo.
Notas:
- Este Preâmbulo se pode consultar em Julio Godio. El Movimiento Obrero Argentino (1943-1955). Ed. Legasa, Bs. As., 1990, pp. 211 y ss.
- Juan Domingo Perón, Mensagem do Presidente da Nação Argentina. General Juan Domingo Perón ao inaugurar o 86º Período Ordinário de Sessões do Honorável Congresso Nacional. Subsecretaria de Informações da Presidencia da Nação, 1952, pp. 125-126.
- Julio Meinville, Política Argentina 1949-1956, p. 284 (artigo de 29 de junho de 1951).
- Juan Domingo Perón, op. cit., p. 47.
- O termo “autogestão” foi introduzido na França no fim dos anos 60 para designar um modo de socialismo não-estatista, caracterizado pela “gestão direta” da empresa por seus próprios trabalhadores e não pelos capitalistas privados ou pelo Estado. Junto a essa concepção “restrita” da autogestão (econômica e redutível ao nível de empresa), existe outra concepção mais ampla e também mais próxima do pensamento do General Perón, que entende a autogestão não só no plano econômico, mas também e ao mesmo tempo no terreno político: socialização da economia e do poder. A autogestão “integral” tem entre seus antecedentes diversas expressões não-marxistas do Movimento Operário europeu (associacionismo de Proudhon; socialismo utópico de Fourier; anarco-sindicalismo e sindicalismo revolucionário espanhol, italiano e francês; guildismo inglês), correntes marxistas diferenciadas do stalinismo e do trotskismo (conselhistas, “titoismo” iugoslavo), pensadores revolucionários cristãos (Mounier, Lebret) e certos Movimentos de Liberação do Terceiro Mundo (a Frente de Liberação Nacional argelina durante a etapa de Ben Bella; a “Ujamaa” de Nyerere na Tanzânia; a Revolução Nacional de Velasco Alvarado no Peru; determinados enfoques do General Torrijos no Panamá; etc.). Tratam-se, em todo caso, de diversos modelos nacionais que, até o momento, não se consolidaram por razões de ordem política: a correlação de forças nacional e internacional, etc.
- Cristián Buchrucker, Nacionalismo y Peronismo. Ed. Sudamericana, Bs. As., 1987, p. 318.
- J. D. Perón, La Fuerza es el Derecho de las Bestias, 1958, p. 14.
- Eva Perón, Historia del Peronismo (curso de 1951). In: Clases y Escritos Completos (1946-1955). Ed. Megafón, Bs. As., 1987, Tomo III, p. 98.
- Juan Domingo Perón, Breve Historia de la Problemática Argentina. Ed. Claridad, Bs. As., 1989, p. 151 (transcrição de uma série de entrevistas concedidas a Eugenio P. Rom em 1967).
- Juan Domingo Perón. In Carlos María Gutiérrez, Reportaje a Perón: diálogo sobre la Argentina Ocupada. Schapire Editor, Bs. As., 1974, p. 79.
- Juan Domingo Perón, Mensaje del Presidente…, op. cit., p. 83.
- Ibid., pp. 82-83.
- Ibid., p. 57.
- Ibid., p. 38.
- Juan Domingo Perón, Discurso ante horticultores bonaerenses en la Casa de Gobierno, 21 de septiembre de 1951.
- Juan Domingo Perón, Los Vendepatria: las pruebas de una Traición. Ed. Freeland, Bs. As., 1974, p. 166 (a primeira edição é de 1957).
- 2º Plan Quinquenal. Subsecretaría de Informaciones de la Presidencia de la Nación, Bs. As., 1953, p. 89.
- Juan Domingo Perón, Discurso ante representantes de cooperativas agrarias, 13 de octubre de 1952. Reproduzido integralmente em Mundo Peronista, Bs. As., n. 33, 15 de noviembre de 1952, p. 44.
- Ibid., pp. 44-45.
- Ibid., p. 45.
- A progressiva “nacionalização” do Movimento Operário Argentino no período da “Década Infame”, e sua posterior influência no Peronismo nascente, pode se comprovada em: Hiroshi Matsushita, Movimiento Obrero Argentino (1930- 1945). Hyspamérica, Bs. As., 1983.
- Sobre a influência da doutrina sindicalista-revolucionária no Peronismo e sobre o conceito de Estado Sindicalista no General Perón, ver a segunda parte do presente estudo: Sindicalismo Revolucionario Peronista. Ed. Guerra Gaucha, Bs. As.
- Escuela Superior de Conducción Política del Movimiento Nacional Justicialista, Fundamentos de Doctrina Nacional Justicialista, Eds. Realidad Política, Bs. As., 1985, pp. 103-104.
- Juan Domingo Perón, Mensaje del Presidente…, op. cit., p. 67.
- Ibid. pp. 68-69.
- Não se trata, obviamente, do deliria liberal-menemista sobre a “economía popular de mercado”, versão disfarçada da “economia social (?) de mercado”do infame Alsogaray. Não obstante, nas experiências socialistas autogestionárias mais desenvolvidas, como é o caso da Iugoslávia de Tito, a prática demonstrou a impossibilidade de uma planificação total e a necessidade, dentro de uma planificação indicativa, de certas formas de marcado livre que, por não existirem grandes monopólios e nem grandes diferenças econômicas, é realmente isso: livre. Ver D. Bilandzic y S. Tokovic, Autogestión (1950-1976). El Cid Editor, Bs. As., 1976.
- Juan Domingo Perón, Mensaje al Presidente…, op. cit.. pp. 122-123.
- Juan Domingo Perón, La Hora de los Pueblos. Ed. Distribuidora Baires, Bs. As., 1974, p. 130 (a primeira edição é de 1968).
- “Por otra parte, la democracia de nuestro tiempo no puede ser estática, desarrollada en grupos cerrados de dominadores por herencia o por fortuna, sino dinámica y en expansión para dar cabida y sentido a las crecientes multitudes que van igualando sus condiciones y posibilidades a las de los grupos privilegiados. Esas masas ascendentes reclaman una democracia directa y expeditiva que las viejas ya no pueden ofrecerles”, Ibid., p. 14.
- Juan Domingo Perón, discurso ante escritores asociados a la Confederación Argentina de Intelectuales, reproducido por Hechos e Ideas, Bs. As. n. 77, agosto de 1950.
- Juan Domingo Perón, Modelo Argentino para el Proyecto Nacional, Ediciones Realidad Política, Bs. Aires, 1986, p. 88 (esta obra es el discurso pronunciado el 1º de mayo de 1974 por el General Perón ante la Asamblea Legislativa al inaugurar el 99º periodo de sesiones ordinarias del Congreso, así como el proyecto que presentó al mismo).
- Este manifiesto, de junio de 1972, se encuentra reproducido como anexo en varios autores, Peronismo: de la Reforma a la Revolución, A. Peña Lillo Editor, Bs. As., 1972, pp. 187 y ss.
- “No sólo existen los dos grupos fundamentales de países -los que poseen colonias y las colonias-, sino también, es característico de la época, las formas variadas de países dependientes que desde un punto de vista formal, son políticamente independientes, pero que en realidad se hallan envueltos en las redes de la dependencia financiera y diplomática. A una de estas formas de dependencia, la semicolonia, ya nos hemos referido. Un ejemplo de otra forma lo proporciona la Argentina.”, V. I. Lenin, El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Ed. Anteo, Bs. As., 1975, pp. 105-106. La edición original es de 1916.
- Juan Domingo Perón, Mensaje del Presidente…, op. cit., p. 31.
- Carta de Juan Domingo Perón a la Juventud Peronista, octubre de 1965. Reproducida en Roberto Baschetti, Documentos de la Resistencia Peronista (1955-1970), Puntosur Eds., Bs. As., 1988, pp. 222-223.
- Salvador Ferla, La Tercera Posición Ideológica y Apreciaciones Sobre el Retorno de Perón, Ed. Meridiano, Bs. As., 1974, p. 23.
- Juan Domingo Perón, discurso ante representantes obreros, 24 de febrero de 1949. Citado en Habla Perón (selección de textos), Ed. Realidad Política, Bs. As., 1984, p. 106.
- Jorge Luis Bernetti, El Peronismo de la Victoria, Ed. Legasa, Bs. As., 1983, pp. 210-211. Por “alverización” se entiende un proceso de “domesticación” e integración al Sistema, similar al que Alvear realizará con la Unión Cívica Radical a la muerte de Hipólito Yrigoyen.