Da joia do deserto a um antro de caos, matança e escravagismo. O regime cesarista de Gaddafi, um modelo de democracia autoritária sob o nome de Jamahiriya, era duro, mas também a única garantia de paz e prosperidade para as etnias, tribos e clãs da região. Hoje, após o assassinato de Gaddafi, o que sobrou?
Antes da revolução de 2011, existiam 100.000 cristãos na Líbia, a maioria de origem subsaariana. Em 2015, não há mais de cinco mil, incluindo menos de mil em Trípoli, a capital.
Pior ainda, lemos em vários sites evangélicos, confiando na mídia local, que “em 4 de setembro, Dhiyaa ad-Din Ahmed Muftah Bala’ou, um jovem muçulmano convertido, foi alegadamente condenado à morte por apostasia pelo Tribunal de Apelação em Misrata (Líbia ocidental)”. Segundo o portal digital Portes ouvertes, o tribunal “baseou sua decisão em uma lei promulgada pelo Congresso Nacional Geral, o órgão legislativo eleito entre 2012 e 2014”, segundo a qual “um apóstata do Islã deve ser executado”.
Os cristãos não celebravam no tempo de Gaddafi, mas agora… a intervenção ocidental de 2011 terá definitivamente feito mais mal do que bem a este país.
Em 2011, os líbios queriam sua “Primavera Árabe”, para usar a terminologia da mídia da época. Em 13 de fevereiro, eclodiram os primeiros tumultos em Benghazi. Oito dias depois, os insurgentes avançaram, enquanto Trípoli, a capital, caiu gradualmente no caos. Em 17 de março, Alain Juppé, então Ministro das Relações Exteriores de Nicolas Sarkozy, convenceu o Conselho de Segurança da ONU a intervir militarmente. Esta seria a Operação Harmattan, realizada em conjunto com o Reino Unido, Itália e EUA. Como sempre, os objetivos são nobres: restaurar a democracia e salvar a população civil de um massacre anunciado. É claro que há petróleo líbio; mas isso é o de menos.
Estas são as grandes horas de Bernard-Henri Lévy, que mais uma vez se fez o André Malraux dos tempos modernos, não hesitando em apresentar seu filme, O Juramento de Tobruk, no Festival de Cannes do ano seguinte, ladeado pelos mascarados “democratas líbios” do Conselho Nacional de Transição. Com ele, a farsa nunca está longe do drama. Pois entretanto, este país está se afundando na guerra civil, permitindo que todos percebam que se o regime do Coronel Gaddafi tinha não apenas vantagens, mas também mais do que desvantagens. De volta ao passado.
Ainda hoje, a Líbia é um país jovem, tendo conquistado a independência em 1951, quando foi governado pelo rei Idris I, e tradicionalmente dividido em três províncias históricas e rivais: Tripolitânia no noroeste, Fezan no sudoeste e Cirenaica no leste. Existem mais de 140 tribos, três idiomas são falados (árabe, berbere e toubou) enquanto árabes, tuaregues, toubou da África subsaariana e berberes vivem lá. Há uma grande maioria de muçulmanos, mas também cristãos e judeus, embora estes últimos tenham emigrado desde as guerras árabe-israelenses. Basta dizer que a Líbia não está dividida entre democratas e antidemocratas, como se afirma no mundo dos sonhos de Bernard-Henri Lévy…
Em sua própria maneira, muitas vezes errática e bastante autocrática, Muammar Gaddafi havia conseguido transformar esta entidade vasta e vaga em uma nação mais ou menos estável. Jogando em rivalidades clânicas, étnicas e religiosas, desde 1 de setembro de 1969 (quando tomou posse após um golpe que levou o rei Idris ao exílio) até sua morte em 23 de agosto de 2011, ele conseguiu até mesmo proporcionar algum tipo de estabilidade; se não modernidade, em termos de direitos das mulheres e acesso à educação, mesmo para os mais humildes de seus constituintes. Tudo obviamente financiado por receitas extraordinárias do petróleo.
O outro lado desta política foi obviamente seu tropismo socialista, um artifício importado do Ocidente, ao qual, além disso, muitos de seus homólogos argelinos, sírios, iraquianos, tunisianos, egípcios, libaneses e palestinos não puderam resistir. As lutas do Terceiro Mundo, com o apoio do IRA irlandês, a Facção do Exército Vermelho alemão, antes de finalmente se alinhar com o colapso da União Europeia. Uma nova era começa para o coronel sulfuroso, que se aproxima dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido.
O preço a pagar por esta normalização? O abandono de seu financiamento de um terrorismo já sem derramamento de sangue. O mínimo que pode ser dito é que ele não foi totalmente pago de volta. E desde então, uma guerra civil que nunca termina, embora tenha se tornado de baixa intensidade desde os acordos informais de junho de 2020 que formalizaram a divisão de fato do país entre Oriente e Ocidente, um apoiado pelo Primeiro Ministro Abdul Hamid Dbeibah, apoiado pela Rússia, Turquia e reconhecido pela ONU; o outro pelo Marechal Khalifa Haftar, favorecido pelo Egito e pelos Emirados Árabes Unidos.
Fonte: Adaraga