O tema do niilismo segue sendo bastante debatido, mas a polissemia do termo confunde as reflexões sobre a crise da modernidade ocidental. O retorno à fonte nietzscheana, porém, permite compreender que todas as formas e interpretações do niilismo estão conectados por um mesmo sem sentido que assola o homem moderno.
O que é niilismo? O dicionário habitual designa o niilismo como uma doutrina segundo a qual nada existe em termos absolutos – um entendimento que é parcialmente fundado, pois sua raiz latina nihil significa “nada”. Entretanto, um olhar mais atento à história da palavra mostra que o termo tem sido usado para designar realidades extremamente diversas, dependendo da época e da área cultural.
Foi no século XIX que esta noção se desenvolveu como tal, mas com uma extensão tão ampla que veio a designar o todo e seu oposto: idealismo característico das filosofias pós-kantianas para uns (na forma de fazer o mundo e os absolutos emanar do sujeito); positivismo para outros (em seu processo de reduzir o superior ao inferior e usar o método científico em todos os níveis); ateísmo pela negação de Deus e de todos os valores que dele derivam; ele também é usado para designar uma tendência psicológica (“uma fadiga mortal de viver” como o psicólogo Paul Bourget a chama), uma doutrina revolucionária próxima ao anarquismo que usa o terrorismo para destruir a ordem existente (o movimento niilista russo), ou mesmo tendências artísticas contemporâneas que tendem a produzir obras que rompem com a tradicional busca da Beleza. Seus campos de aplicação são portanto variados: filosóficos, religiosos, políticos, artísticos… Mas será que tal polissemia não invalida o próprio uso desta noção?
Na realidade, esta pluralidade de significados é apenas aparentemente anárquica e mascara uma unidade original. Pois se este termo designa realidades tão variadas, é porque talvez estas realidades tenham características comuns. Em outras palavras, elas podem ser a expressão de uma realidade mais profunda que a linguagem se esforça para significar, porque ela ainda está muito dissimulada para ser expressa. Tal abordagem dinâmica foi desenvolvida em profundidade por Nietzsche. Vejamos sua definição de niilismo: O que significa niilismo? Que os valores superiores se desvalorizems. Falta o objetivo; falta a resposta para a questão do porquê[1].
De que forma esta desvalorização dos valores supremos constitui o foco original daquela “fadiga mortal de viver”, do positivismo, ou mesmo do terrorismo anarquista? E como se pode entender tal destituição?
Niilismo e morte de Deus
Nietzsche nos diz que o niilismo está ligado a um evento que ainda não foi levado ao conhecimento de todos: a morte de Deus.
“Acaso você ouviu falar daquele louco que acendeu uma lanterna nas claras horas da manhã e correu à praça do mercado gritando incessantemente, ‘Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!’ Como muitos dos que não acreditam em Deus estavam por lá naquele momento, ele provocou muito riso. ‘Por que, ele se perdeu?’, disse um. ‘Terá sido esquecido pelo caminho como uma criança?’, disse outro. ‘Quem sabe está se escondendo?’, ‘Será que tem medo de nós?’, ‘Talvez tenha ido viajar?’, ‘Ou emigrado?’ Assim eles gritavam e riam. O louco pulou no meio deles perfurando-os com seus olhos.
‘Aonde foi Deus’, gritou ele. ‘Eu lhes direi. Nós o matamos – vocês e eu. Todos nós somos seus assassinos. Mas como o fizemos? Como fomos capazes de beber o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? O que fizemos quando desacorrentamos esta terra do seu sol? Para onde ela estará se movendo? Para longe de todos os sóis? Não estaremos afundando continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Terá restado algum ‘acima’ ou ‘abaixo’? Não estaremos vagando como que por um infinito nada? Não sentimos o sopro do espaço vazio? Já não está mais frio? Não estará a noite e mais noite vindo com toda força? Não deveríamos acender lanternas pela manhã?”[2]
Do que se trata? Nietzsche está meramente retratando o processo de desencanto do mundo ligado ao progresso da ciência e resultando no desenvolvimento do ateísmo nas sociedades europeias secularizadas? Se este é o caso, por que esta morte é um evento tão terrível? Não precisávamos pôr um fim ao que o Iluminismo considerava “superstições”, para que a humanidade alcançasse maior autonomia?
Na realidade, esta morte de Deus não é uma simples declaração de ateísmo, mas o eco de um evento universal e radical que afeta profundamente o relacionamento do homem com o mundo. A morte de Deus não deve ser entendida aqui apenas como a falência do Cristianismo; como o colapso dos dogmas a ele associados, do qual procedeu uma particular ontologia e moralidade que governou o Ocidente por quase dois milênios. Mais amplamente, a morte de Deus significa que nosso mundo sensível não pode mais ser compreendido em termos de um mundo suprassensível (ao qual o Cristianismo apenas acrescentou uma coloração reconhecidamente decisiva) do qual encontrou justificativa; que seus valores, normas e fins perderam o direito de governar a existência humana. A morte de Deus significa a perda do fundamento supremo deste mundo; aquela causa última da qual se justificava não só o fato de que a realidade é (que há algo em vez de nada), mas também que a realidade é como ela é (se um Deus bom e misericordioso o quisesse, o mal pode parecer aceitável, tanto mais que as recompensas são concedidas posteriormente para o sofrimento experimentado… ) Em outras palavras, aquele padrão final sobre o qual repousa o conhecimento da realidade, como nossa prática dentro dela, não existe mais.
A partir de então, o mundo parece sem sentido; o homem descobre com consternação, medo e tremor que o mundo em que ele vive é impiedoso, imoral, “desumano”, poderíamos dizer. Tudo o que resta é uma sensação do absurdo da existência, que é rapidamente seguida por uma desconfiança deste mundo sem Deus, que se tornou insuportável. Pois com a morte de Deus desaparece ao mesmo tempo o último estratagema que permite ao homem proteger-se contra as contradições do devir e a dor da existência, recorrendo a um mundo fabricado negando o mundo sensível (este mundo não era o mundo real, mas um mundo de aparência). Assim, todos os valores – o Bem, o Belo, o Verdadeiro – que encontraram seu supremo fiador em Deus (tanto o deus cristão como o deus dos filósofos, seja qual for sua forma) não podem mais ser mantidos.
Isso significa que era preferível que Deus permanecesse, ou que seria uma questão de retrocesso não sofrer os efeitos dessa vagabundagem? Na realidade, a morte de Deus não significa o surgimento do niilismo, mas sim a consciência de sua presença no próprio fundamento desses valores. Pois o niilismo não é o resultado direto da destituição destes valores; é somente no curso desta destituição que ele revela sua presença em campo aberto. O niilismo já está presente na construção de um mundo suprassensível. De fato, este estabelecimento de um mundo suprassensível, que tem origem nos ensinamentos de Sócrates e depois em sua formação na filosofia de Platão, constitui a primeira etapa de um trabalho que visa negar o mundo sensível em favor de outro mundo, mais estável, mais coerente, mais seguro. Esta negação do mundo sensível, que se concretiza no platonismo, o ponto de partida da metafísica ocidental que agora preside nossos destinos, provoca assim uma divisão do real, que ao mesmo tempo constitui sua destituição. Esta é a marca, diz Nietzsche, de uma certa atitude em relação à vida, já em certa medida em declínio, sinal de uma vontade reativa ou decadente de poder, tão incapaz de suportar este mundo caótico sujeito a incessantes transformações que desenvolverá estratégias destinadas a negar a própria vida para melhor se manter. O cristianismo, “platonismo para as massas”, como diz Nietzsche, só consolidou este trabalho de negação do mundo sensível.
Agora, através de uma lógica estranha, a vontade de verdade, presente tanto no platonismo como no Cristianismo, contribuiu paradoxalmente para a destituição desses “mundos atrasados”; o desenvolvimento científico, que repousa em última instância nos pressupostos metafísicos elaborados na filosofia de Platão (precedência da verdade, ontologia negando o mundo sensível, lugar das aparências e do devir, em nome de um mundo estável e inteligível… ) tendo invalidado todo um conjunto de preceitos que, no entanto, foram fundadores… (Daí a ambivalência de Nietzsche em relação à ciência: positivo porque é crítica; negativo porque não leva as críticas até sua conclusão…).
Mas entre as forças que a moralidade desenvolveu estava a veracidade: esta finalmente se volta contra a moralidade, descobre sua teleologia, seu ponto de vista egoísta; e agora age como um estimulante, a evidência desta longa mentira encarnada que se desespera de extrair de si mesma.
Assim, o desaparecimento deste mundo de fábulas torna o mundo aqui embaixo ainda mais insuportável, na medida em que a partir de agora os reconfortos se perdem e as esperanças se desfazem para sempre… A perda do ideal nos coloca frente a frente com um mundo hostil e propriamente intolerável, daí o sentimento difuso de mal-estar, náusea e enjoo que as consciências românticas expressam tão bem sem explicar a sua fonte profunda… Sentimentos que só podem aumentar com o tempo enquanto os homens não tiverem realizado uma verdadeira revolução existencial. Esta morte de Deus parece assim ambivalente em si mesma: pode ser a fonte de grandes amanhãs, já que uma interpretação negativa da vida entrou em colapso, bem como de tragédias terríveis, dependendo da forma como os homens podem reagir a ela….
“Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio. destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?”[3]
Uma revelação progressiva
Estranhamente, as pessoas ainda não entenderam como este evento foi inaugural dos tempos conturbados em que a Europa estava entrando.
“O que eu narro é a história dos próximos dois séculos […] descrevo aquilo que vem: a ascensão do niilismo. Posso descrevê-lo porque aqui se passa algo necessário – os sinais disso estão por toda parte; faltam apenas os olhos para tais sinais. Aqui, não louvo, nem censuro, que ela venha; creio numa das maiores crises, num instante da mais profunda autorreflexão do homem”[4]
As implicações da morte de Deus ainda não foram completamente compreendidas. Pelo contrário, é através de um conjunto de sintomas cada vez mais manifestos, revelando-se ao longo do tempo, que os homens compreenderão de forma existencial o que os visionários apenas imperfeitamente evocaram… Pois esta consciência do niilismo só pode surgir em plena luz do dia à medida que desdobra sua lógica; desde, é claro, que se saiba decifrar os sinais que se apresentam a um olhar perspicaz. Estes sinais manifestam-se em particular no espaço e no tempo sob diversas formas: social, política, psicológica – sendo o que acontece no mundo apenas a objetivação do espírito particular que rege uma coletividade humana. Nietzsche observa várias etapas a este respeito. Ele foi o contemporâneo de quatro deles; sendo o último apenas da ordem da profecia e, portanto, da evocação…
“Aquele que toma a palavra aqui, pelo contrário, não fez nada até agora, a não ser refletir: como um filósofo e eremita de instinto que encontrou sua vantagem na margem, na paciência, na temporização, na retirada; como um espírito que ousa e procura e que uma vez se desviou para cada labirinto do futuro; como um pássaro profeta que olha para trás quando relata o que virá; como o primeiro niilista realizado na Europa, mas que já viveu o próprio niilismo até o fim, que o tem atrás de si, debaixo de si, fora de si”.[5]
Na realidade, estes diferentes tipos não são de forma alguma puros; pelo contrário, interpenetram uns aos outros e podem coabitar juntos, mesmo que uma lógica de sucessão presida a sua aparência.
Mencionemos brevemente estes. A primeira forma é o que Nietzsche chama de pessimismo. Corresponde a esse sentimento particular do absurdo da vida, do mal-estar, que está presente nos lamentos dos poetas, escritores e artistas românticos, e que encontra sua plena expressão conceitual na obra de Schopenhauer.
“O que não foi compreendido é o que deve ser concretamente compreendido: que o pessimismo não é um problema, mas um sintoma; que seu nome deve ser substituído por niilismo; que a questão de saber se o não-ser é melhor do que ser é em si uma doença, um sinal de declínio, uma idiossincrasia. O movimento niilista é apenas a expressão de uma decadência fisiológica”.[6]
O segundo é chamado niilismo incompleto. A morte de Deus é reconhecida com alguma segurança; no entanto, esta morte não é completa. É a morte de uma figura, mas não de um sistema. Os ídolos antigos são substituídos por novos. Assim, o positivismo, como previsto por Comte, é significativo neste momento. Há uma consciência da crise, mas não da origem da crise, na medida em que a crise reside não apenas no fracasso do velho ídolo, mas na própria ereção do ídolo. O culto da ciência, da “humanidade”, da nação, é indicativo deste processo.
“O niilismo incompleto, suas formas: vivemos bem no meio. Tentativas de se opor ao niilismo sem derrubar os valores estabelecidos: produzem o oposto, agravam o problema”.[7]
A terceira forma é o niilismo passivo. A “fadiga mortal de viver” torna-se mais presente. A necessidade de narcóticos espirituais para aliviar o desconforto torna-se generalizada. No século XIX, a moda do budismo, ou a multiplicação de várias seitas, reflete essa consciência no aperto do desconforto e na busca do conforto…
Sua forma mais famosa é o budismo: como niilismo passivo, como sinal de fraqueza: a força do espírito pode estar cansada, exausta ao ponto de os valores e objetivos atuais perseguidos até agora serem inapropriados e não encontrarem mais nenhuma credibilidade…
A quarta forma é chamada niilismo e corresponde ao niilismo ativo. Os narcóticos não são mais suficientes. O mundo que é tão insuportável deve agora perecer. Neste sentido, a onda de terrorismo que sacudiu a Europa no final do século XIX, particularmente através dos niilistas russos, ilustra esta necessidade de destruir a ordem existente, mesmo que para alguns niilistas russos a destruição seja feita em benefício de uma ordem mais luminosa (daí a presença do positivismo entre alguns). Pense-se, por exemplo, em Nechayev que, em seu catecismo revolucionário, afirma: “o objetivo é sempre o mesmo, destruir o mais rápido possível e tanto quanto possível a ignomínia que é a ordem universal”, sendo seu único pensamento a inexorável destruição por meio da ciência, que ele estuda para este único propósito, o reinado do caos original. De agora em diante, é uma questão de nos tornarmos Deus por nossa vez; tudo é permitido e devemos ir até o fim. Nietzsche compreendeu bem os riscos de tal mobilização de forças descontroladas, e aqui novamente o perigo é grande para a cultura europeia, porque este tipo humano mais insalubre na Europa buscará: “não se extinguir passivamente, mas fazer tudo se extinguir, tudo o que é tão desprovido de sentido e propósito: mesmo que seja apenas uma convulsão, uma fúria cega na evidência de que tudo existe desde toda a eternidade, mesmo neste momento de niilismo e ardor subversivo”.[8]
Finalmente, a quinta e última forma é descrita como niilismo extático; a forma mais realizada consiste em ir além do niilismo para alcançar uma nova forma de humanidade. Este “super-homem”, a elite de uma humanidade defunta, capaz por si só, por meio de uma vontade ativa de poder superar a morte de Deus (e assumir o desafio do eterno retorno), respirando significado neste mundo por meio de novos valores de afirmação de vida… As várias tentativas de voluntarismo nietzschiano, como nos lembra Heidegger (fascismo, nacional-socialismo), não conseguiram concretizar esta fase.
Superar o niilismo hoje?
Além dos acessos proféticos de Nietzsche, sua relevância permanece total, desde que saibamos atualizá-lo para melhor superá-lo, pois é bem possível, como nos lembra Heidegger, que a própria filosofia de Nietzsche constitua um momento chave no aprofundamento do niilismo, mas não seu remédio.
A primeira confirmação do diagnóstico de Nietzsche é a necessidade de estabelecer novos ídolos com um tempo de vida cada vez mais curto. O desenvolvimento dessas “religiões seculares”, como Raymond Aron as chamou, mostra claramente que o lugar do Deus falecido ainda está muito presente na forma de uma falta a ser preenchida. O nacionalismo, o comunismo, o nacional-socialismo e a religião atual dos direitos humanos, portanto, parecem ser substitutos incapazes de se sustentarem, formas bastardas de niilismo incompletas devido à estratégia de substituição e niilismo ativo na necessidade de destruir para se estabelecer. O fracasso dos totalitarismos e a retirada para uma forma suave, encarnada em nossas democracias atuais, não deve nos fazer esquecer que o niilismo continua seu trabalho em formas constantemente renovadas. A Razão, isolada de seu supremo fiador, persegue sua crítica dissolvente, a ponto de apagar suas próprias obras e invalidar-se no reinado dos fins, levando assim a este relativismo ambiente, a esta miséria do pensamento onde tudo vale tudo e, portanto, nada vale nada… De agora em diante, ela só exerce seu poder em sua forma instrumental, um puro instrumento de cálculo que permite alcançar qualquer fim, desde que seja reconhecido como bom. Esta racionalidade instrumental, que corresponde ao reinado da tecnologia como Heidegger a via tão bem, continua seu trabalho de devastação da terra por trás da face do capitalismo de mercado através do qual, para retomar a ideia do filósofo italiano Vattimo, os valores de uso são destituídos em favor dos valores de troca.
A segunda relevância do diagnóstico, consecutiva à primeira, é o tipo de vontade de poder em ação. Enquanto uma vontade ativa de poder teria sido necessária para superar este desafio (e para dar um novo significado a este mundo que agora pode ser interpretado ad infinitum…) faltam as forças. Além disso, as pessoas parecem se divertir neste mundo de ruínas, do qual não podemos mais reconstruir nada, exceto para aumentar um pouco mais o campo de devastação. A figura desenvolvida por Nietzsche do “último homem”, conjurando sua angústia existencial através do consumismo, ilustra bem este fenômeno. Para o homem, a morte de Deus é apenas uma oportunidade de satisfazer plenamente o menor de seus desejos, sem impedimentos, com o objetivo de alcançar uma pequena e mensurável felicidade através da quantidade de prazeres obtidos. Esta forma moderna de entretenimento, no sentido pascaliano da palavra, é particularmente reveladora do mal-estar de nossa cultura, onde a busca de “pão e circo” é agora nosso único horizonte de expectativa. O mais grave é que esses mesmos narcóticos, quando não são mais suficientes, facilitam o acesso ou mesmo a conversão das consciências ao “encanto” do exotismo, o que, no âmbito desse relativismo deplorável que atormenta a Europa, favorece a implantação de concepções extraeuropeias (como o salafismo, que se alimenta do ressentimento sentido contra nossa própria cultura).
Entretanto, sem necessariamente seguir a interpretação de Heidegger segundo a qual Nietzsche teria apenas prolongado um pouco mais o niilismo, pois ele representa a face última da metafísica ocidental através desta era da técnica onde se busca o poder (Nietzsche permanecendo, ao contrário do que ele acreditava, altamente determinado por Platão, ao ponto de ser “o mais desenfreado dos platonistas”…), é aconselhável não fazer de Nietzsche um mestre do pensamento que nos daria receitas para triunfar sobre este perigo supremo (recordemos esta frase: “se queres ir comigo, vai contigo”…) Por outro lado, o seu método genealógico para decifrar os sintomas de que sofre a nossa cultura continua a ser de grande acuidade. É aqui e agora, dada a nossa atual configuração espiritual, avaliar as possibilidades que se abrem para nós, enquanto o niilismo continua a perseguir sua lógica inexoravelmente através de formas às vezes inesperadas.
Então, o que fazer? Voltar para trás? Exigir a restauração de uma tradição? Mas qual? Como Heidegger apontou, todas as tentativas de restaurar os bons velhos tempos, sejam idênticas (ilusões reacionárias dos contrarrevolucionários) ou sob um disfarce diferente, mantendo o mesmo fundo (mitologia do iluminismo, progresso, etc.) estão condenadas ao fracasso. Seguir em frente, mas aonde? O construtivismo puramente revolucionário só pode gerar o caos. Tentar um reinício, mas será que podemos, quando um conjunto de determinantes históricos pesa sobre nós?
É meditando sobre a essência de nossa cultura que poderemos compreender sua evolução espiritual, assim como as possibilidades de ação que ela nos oferece, dado seu estágio de desenvolvimento. Talvez, como diz Spengler, o niilismo seja simplesmente o “começo do fim”; nossa cultura, como muitas outras antes dela, tendo esgotado suas possibilidades criativas e afundado na civilização, um conteúdo inerte remanescente para administrar o legado material do espírito do passado. No entanto, existe uma grande diferença: a evolução espiritual de nossa cultura nos permitiu desenvolver esta “consciência histórica” que não tem contrapartida em nenhum outro lugar. Esta consciência histórica é uma espada de dois gumes para nós, pode-se dizer. Por um lado, ela relativiza, pois ao contextualizar todos os valores ela os desabsolutiza; mas por outro lado, ao colocar a evolução de nossa cultura em perspectiva com as outros, ela pode nos dar uma acuidade particular em ação, mesmo que a história não se repita duas vezes e as leis não possam ser encontradas (se não certas regularidades).
Em outras palavras, é usando as ferramentas que nossa configuração intelectual nos oferece que seremos capazes de superar esta situação. Assim, uma meditação sobre a essência de nossa cultura, através de seu desenvolvimento histórico, é a única maneira de nos fornecer alguns pontos de referência nesta perambulação sem fim; um questionamento que deve levar a uma consciência da identidade (o que nos torna o que somos e não outra coisa?), uma construção dinâmica através do tempo e, portanto, uma realidade aberta, que será uma questão não tanto de preservar o que foi, mas de garantir o que será. A ideia do super-homem talvez pudesse ser atualizada neste nível: uma elite vanguardista com um sentido histórico aguçado, capaz não só de identificar a configuração espiritual que é nossa, mas também de agir dentro dela, inspirando-se, em vez de reproduzir de forma idêntica, os gestos criativos daqueles heróis que construíram nossa cultura.
Fonte: Rébellion