A doutrina Putin: uma política externa de “destruição construtiva”

Uma análise rica da política externa russa, sua história e os caminhos que ela deve trilhar para que a nação possa prevalecer sobre a hostilidade ocidental e assegurar o seu lugar ao sol, no presente e no futuro.

Por Sergey Karaganov

Parece que a Rússia deu início a uma nova era de sua política externa — uma de “destruição construtiva” do seu modelo anterior de relações com o Ocidente. Estilhaços dessa forma de pensar o mundo têm sido observáveis ao longo dos últimos 15 anos — a começar pelo famoso discurso de Putin em Munique, 2007 — mas grande parte disso só está sendo esclarecida agora. Tentativas infrutíferas de integrar-se ao sistema ocidental aliadas a uma atitude defensiva constante permanecem sendo uma tendência geral da política e da retórica russas. Entenda o porquê:

A destruição construtiva não é agressiva. A Rússia mantém que não massacrará ou explodir ninguém. Ela simplesmente não precisa. O mundo externo, tal como é, já provém oportunidades geopolíticas mais que suficientes ao desenvolvimento a médio prazo da Rússia. Só há uma grande exceção: a expansão da OTAN e inclusão da Ucrânia em suas fileiras. Eis aí uma ameaça à segurança nacional que Moscou nunca aceitaria de bom grado.

Por ora, o Ocidente traça um caminho de vagarosa e inevitável decadência, tanto no tocante a questões internas quanto às externas. É precisamente por isso que ele deu início a esta nova Guerra Fria após cerca de quinhentos anos de hegemonia global na política, na economia e na cultura, coroados por uma vitória decisiva da qual gozou da década de 90 à metade dos anos 2000. Acredito que agora ele perderá, renunciando ao papel de líder global para tornar-se um parceiro mais razoável. Na hora certa, uma vez que caberá à Rússia equilibrar relações com uma China que, apesar de amigável, torna-se cada vez mais poderosa.

Presentemente, o Ocidente tenta desesperadamente defender-se com retórica agressiva. Tenta consolidar-se, apresentando as últimas cartas que tem guardadas na manga para virar o jogo. Uma dessas é tentar usar a Ucrânia para prejudicar e neutralizar a Rússia. É mister prevenir a transformação de tais tentativas convulsivas em um verdadeiro duelo, tal como contra-atacar as correntes políticas dos EUA e da OTAN. É contraproducente e perigoso, ainda que relativamente cômodo para os perpetuadores. O Ocidente ainda vai se dar conta de que só está machucando a si mesmo.

Outra carta na manga é o papel de domínio do Ocidente no sistema de segurança euro-atlântico que fora estabelecido em tempos subsequentes de séria fraqueza russa ao fim da Guerra Fria. Há mérito no varrimento gradual de tal sistema, primeiramente recusando-se a participar dele e jogar de acordo com suas regras obsoletas que, para nós, são completamente desvantajosas. Para a Rússia, a diplomacia eurasiana é preferível ao “caminho para o Ocidente.” Manter relações construtivas com os países do lado ocidental do continente poderia facilitar a integração à Eurásia Maior. O velho sistema está é um obstáculo, entretanto, e, por isso, deve ser desmanchado.

O próximo passo crítico para a criação de um novo sistema (que envolva não o desmanche do velho) é “unir as terras.” Longe de ser um luxo, é uma necessidade de Moscou.

Seria bom se tivéssemos mais tempo para fazê-lo. A história, porém, mostra que, desde o colapso da URSS há trinta anos, poucas nações pós-soviéticas lograram tornar-se verdadeiramente soberanas e muitas, por uma miríade de fatores, nunca lograrão. Mas este é um tópico para uma análise futura. Agora, só me cabe apontar o óbvio: a maioria das elites locais não tem as experiências histórico-culturais necessárias à construção de um estado e nunca foi capaz de acessar o núcleo da nação — não teve nem sequer tempo para isso. Quando os espaços intelectuais e culturais comuns evaporaram, os que mais sentiram foram os países menores. As novas oportunidades de criar laços com o Ocidente não se mostraram dignas substitutas. Aqueles que passaram a chefiar e seguem chefiando tais nações venderam-nas e ainda as vendem por benefício próprio, pois não têm quaisquer ideias nacionais pelas quais lutar.

A maioria desses países seguirá o exemplo dos bálticos, aceitando o controle estrangeiro, ou continuará a perder o controle de si mesma, o que, em alguns casos, pode ser extremamente perigoso.

A questão é: como “unir” essas nações da forma mais eficiente e benéfica à Rússia, levando em conta as experiências soviéticas e czaristas nas quais a esfera de influência foi estendida além de quaisquer limites racionais e mantida às custas do suor do povo russo “nuclear”?

Tenhamos numa outra ocasião a discussão sobre “unificação” que a história vem nos forçando a ter. Desta vez, foquemos na necessidade objetiva de ter feito a dura decisão em favor da política de “destruição construtiva.”

As metas que atingimos

Hoje presenciamos a concepção da quarta era da política externa russa. A primeira se deu no fim dos anos 80, um tempo de debilidade e ilusão. A nação havia perdido a vontade de lutar, o povo queria crer na democracia e o Ocidente faria questão de vir “salvá-lo.” Tudo acabou em 1999 após as primeiras ondas de expansão da OTAN, vistas pelos russos como uma facada nas costas, uma vez que o Ocidente simultaneamente desmantelara o que restara da Iugoslávia.

Então, a Rússia levantou-se e começou a sua reconstrução quieta e sorrateira, simultaneamente tentando mostrar-se humilde e amigável. A saída estadunidense do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos de 1972 sinalizou a intenção de recuperar dominância estratégica, o que levou uma Rússia ainda falida a desenvolver sistemas bélicos capazes de desafiar as ambições dos EUA. O discurso de Munique, a Guerra da Geórgia e a reforma militar, conduzidas em meio a uma crise econômica global que decretara o fim do imperialismo globalista liberal do Ocidente (termo popularizado por Richard Sakwa, um expert proeminente em questões internacionais), delinearam o novo objetivo da política externa russa; fazer do país novamente uma potência global que possa defender sua soberania e seus interesses. Isso foi seguido pelos eventos na Crimeia, na Síria, pelo fortalecimento militar e pelo bloqueio de interferência ocidental em questões domésticas russas, eliminação de servidores públicos cujos laços com o Ocidente não eram benéficos à pátria e utilização magistral das reações ocidentais a tais desdobramentos. À medida que as tensões cresceram, manter bens no Ocidente tornou-se algo cada vez menos lucrativo.

A incrível ascensão da China e o advento de uma aliança com Pequim no início da década passada, o “pivô para o Leste”, e a crise multidimensional que envolveu o Ocidente levou a uma grande guinada do equilíbrio político e geoeconômico em favor da Rússia. Isso é particularmente evidente na Europa. Há uma década, a União Europeia via a Rússia como a margem retrógrada e fraca do continente que tentava competir com os poderosos. Agora, ela desesperadamente tenta agarrar-se à independência política e geoeconômica que está escapando de suas mãos.

O período de “retorno à grandeza” começou em meados de 2017 para 2018. Depois dele, a Rússia estagnou. A modernização teve continuidade, mas a economia frágil ameaçava anular os feitos todos. As pessoas (incluindo a mim) estavam frustradas e temiam que a Rússia iria, mais uma vez, “morrer na praia.” Mas, no fim das contas, tratou-se de mais um período de fortalecimento, principalmente no que tange às capacidades defensivas.

A Rússia pensou adiante, assegurando que, ao longo da próxima década, seria relativamente invulnerável estrategicamente e capaz de “dominar um cenário de escalada” em casos de conflito em regiões que fazem parte da sua esfera de interesses.

O ultimato que a Rússia apresentou aos EUA e à OTAN no fim de 2021, urgindo que parassem de desenvolver estruturas militares perto de suas fronteiras e de expandirem-se em direção ao leste, marcou o início da “destruição construtiva.” O objetivo é não só dar um basta na pueril, embora perigosa, inércia do avanço geoestratégico do Ocidente, mas também construir os alicerces para um novo modelo de relações entre a Rússia e ele, muito diferente do que fora estabelecido nos anos 90.

As capacidades militares russas, o resgate do senso de retidão moral, lições aprendidas mediante erros passados e uma aliança estreita com a China podem fazer com que o Ocidente, que escolheu assumir o papel de inimigo, passe a ser mais razoável, mesmo que apenas ocasionalmente. Assim, em uma década ou menos, espero eu, um novo sistema de segurança internacional e cooperação será construído, incluindo, desta vez, a totalidade da Eurásia Maior e baseando-se verdadeiramente nos princípios do direito internacional em vez de “regras” unilaterais que o Ocidente tem tentado impor ao mundo em décadas recentes.

Corrigindo erros

Antes de continuar, quero dizer que tenho grande estima pela diplomacia russa — ela tem sido absolutamente brilhante nos últimos 25 anos. Moscou tinha cartas ruins, mas conseguiu fazer um tremendo jogo de qualquer forma. Primeiramente, ela não deixou o Ocidente “dar o bote final.” A Rússia manteve seu status formal de grande nação, retendo uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e não abrindo mão de seus arsenais nucleares. Depois, gradativamente ampliou sua influência no mundo ao se aproveitar das fraquezas dos seus rivais e das forças dos seus aliados. Construir uma forte amizade com a China foi um grande feito. A Rússia goza de algumas vantagens geopolíticas das quais a URSS carecia, mas pode perdê-las se voltar a ter ambições de ser um superpoder global, precisamente o que levou a URSS à ruína.

Não devemos esquecer dos erros que cometemos para que não os repitamos. Nossa preguiça, fraqueza e inércia burocrática ajudaram a criar e sustentar o sistema de segurança europeu injusto e instável que temos atualmente.

A eloquente Carta de Paris para uma Nova Europa, assinada em 1990, falava sobre liberdade de associação; países podendo escolher seus próprios aliados, algo impossível dentro dos confins da Declaração de Helsinki de 1975. Já que o Pacto de Varsóvia estava por um triz, a dita cláusula serviu como carta branca para a expansão da OTAN. Em 1990, contudo, a OTAN ao menos poderia ainda ser considerada um órgão “de defesa.” A maioria dos membros da aliança lançaram, desde então, uma série de ofensivas militares contra os remanescentes da Iugoslávia, tal como o Iraque e Líbia.

Após uma conversa franca com Lech Walesa em 1993, Boris Iéltsin assinou um documento que constatava que a Rússia “entendia o plano da Polônia de juntar-se à OTAN.” Quando Andrei Kozyrev, então Ministro das Relações Exteriores da Rússia, ficou sabendo das ambições expansionistas da OTAN em 1994, ele deu início a um processo de negociações em nome da nação, sem consultar Iéltsin. O outro lado interpretou isso como um sinal de que a Rússia estava em paz com a ideia geral, dado que buscava negociar termos aceitáveis. Em 1995, Moscou pisou no freio, mas já era tarde; a barragem fora rompida e varrera quaisquer restrições à expansão ocidental.

Em 1997, uma Rússia economicamente decrépita e dependente do Ocidente assinou a Ata Fundadora sobre as Relações Mútuas, a Cooperação e a Segurança junto à OTAN. Moscou conseguiu forçá-la a fazer certas concessões, como se comprometer a não mover grandes unidades militares aos territórios de seus novos membros. A OTAN, porém, violou e tem violado consistentemente tal comprometimento. Outro acordo dizia respeito à manutenção da neutralidade desses territórios no que tange às armas nucleares; os EUA não se importariam (na contramão do que desejavam seus aliados), dado que tentavam manter o mais distante possível a possibilidade de um conflito nuclear na Europa que inevitavelmente envolveria também a América. No fim das contas, o documento legitimou a expansão da OTAN.

Outros erros foram cometidos — não tão grandes, mas ainda significativos. A Rússia participou do programa Parceria para a Paz, cujo mero propósito era fazer aparentar que a OTAN estava disposta a ouvir Moscou, mas, em verdade, a aliança apenas se utilizou do projeto para justificar sua própria existência e seu direito de expansão. O envolvimento no Conselho OTAN-Rússia, após a agressão à Iugoslávia, também foi um frustrante passo em falso. Os tópicos lá abordados careciam completamente de substância. Deveria ter sido dada prioridade à questão verdadeiramente pertinente: a contenção do expansionismo da aliança e do fortalecimento de sua estrutura militar perto das fronteiras da Rússia. Infelizmente, isso nunca esteve na agenda. O Conselho continuou a operar mesmo depois da maioria dos membros da OTAN terem começado uma guerra no Iraque e, posteriormente, na Líbia, em 2011.

É uma pena nunca termos tido os culhões para dizê-lo abertamente: a OTAN havia se tornado uma agressora com numerosos crimes de guerra na sua conta. Isso teria sido uma afirmação elucidadora para muitos círculos políticos na Europa, principalmente na Finlândia e na Suécia, por exemplo, onde alguns consideram as vantagens de fazer parte da organização, mas também para que, de modo geral, fosse colocada em xeque a narrativa de que a OTAN era uma aliança de mera defesa que precisava se consolidar cada vez mais a fim de proteger-se contra inimigos imaginários.

Eu compreendo aqueles no Ocidente que se acostumaram com o sistema vigente que permite que os EUA comprem a obediência (não só militar) de seus “inferiores” enquanto esses últimos poupam gastos em segurança em troca de parte da sua soberania. Mas o que nós ganhamos com esse sistema? Especialmente agora que é óbvio que ele fomenta e escala confrontos na nossa fronteira ocidental e no mundo todo? A OTAN se alimenta de confrontos forçados, e quanto maior for, piores serão esses confrontos.

O bloco é uma ameaça também aos seus próprios membros, dado que provoca confrontos sem verdadeiramente garantir proteção. É falso que o Artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte implica em defesa coletiva no caso de um aliado ser atacado. O artigo não diz que a proteção é automática. Estou familiarizado com a história do bloco e com as discussões que o envolvem nos EUA. Tenho como fato que os EUA nunca disponibilizariam armas nucleares para “proteger” seus aliados em caso de conflito com uma nação que seja dotada das mesmas.

A OSCE (Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa) também é obsoleta e dominada pela OTAN e pelos EUA, que a usam para prolongar confrontos e impor os padrões e valores políticos do Ocidente a todos. Felizmente, esta práxis está sendo cada vez menos efetiva. Na metade da década passada, tive a oportunidade de trabalhar com o Grupo de Personalidades Eminentes (que nome!) da OSCE, cujo objetivo era desenvolver um novo mandato para a organização. Se eu já tinha minhas dúvidas sobre a sua efetividade antes disso, a experiência serviu para deixar-me convencido de que se trata de uma instituição extremamente destrutiva. É um órgão antiquado com a missão de preservar coisas obsoletas. Nos anos 90, ela serviu como um instrumento para enterrar qualquer tentativa, russa ou não, de criar um sistema de segurança comum europeu; nos anos 2000, o chamado processo de Corfu abateu a nova iniciativa de segurança da Rússia.

Praticamente todas as instituições da ONU foram empurradas para fora do continente, incluindo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, o Conselho de Direitos Humanos e o Conselho de Segurança. Outrora, a OSCE era vista como um órgão útil que promoveria o sistema e os princípios das nações unidas num subcontinente-chave. Não foi o que se sucedeu.

No que tange à OTAN, já é claro o que devemos fazer. Precisamos minar a legitimidade política e moral do bloco, recusando participar de quaisquer parcerias institucionais, dado que sua contraprodutividade é óbvia. Apenas o exército deve manter certa comunicação, sendo apenas um canal auxiliar que acresceria diálogo com o Departamento de Defesa dos EUA e os demais ministérios de defesa de nações europeias de peso. Não é Bruxelas que faz as decisões estratégicas importantes, afinal.

A mesma política pode ser adotada em relação à OSCE. Sim, há diferença, porque, mesmo sendo destrutiva, ela nunca deu início a guerras, desestabilizações ou matanças. Assim, mantemos nosso envolvimento nesse atual formato reduzido ao mínimo. Alguns dizem que esse é o único contexto que proporciona ao Ministro de Relações Exteriores da Rússia uma chance de ver suas contrapartes. Não é verdade; a ONU proporciona um contexto ainda melhor. Conversas bilaterais são muito mais efetivas tendo em vista que, para o bloco, é muito mais fácil se apoderar da agenda quando há uma plateia. Enviar olheiros e pacificadores através da ONU também faria muito mais sentido.

O formato limitado de artigo não permite que eu toque em políticas específicas para todo e cada órgão europeu, como, por exemplo, o Conselho da Europa, mas eu definiria a ideia geral da seguinte forma: criamos parcerias onde vemos benefícios para nós mesmos ou, caso contrário, mantemos distância.

Trinta anos sob o sistema vigente de instituições europeias provaram que sua continuidade será prejudicial. A Rússia não tira benefício algum da disposição europeia para fomentar e escalar conflitos que ameaça militarmente o subcontinente e o mundo como um todo. Antigamente, podíamos sonhar que a Europa nos ajudaria a alavancar a segurança, tal como a modernização político-econômica. Ao revés, está nos tornando mais inseguros; por que, então, devemos imitar o sistema disfuncional e deteriorado do Ocidente? Precisamos mesmo de tais valores?

Teremos de limitar a expansão mediante recusa a colaborar com um sistema em erosão. Com sorte, sendo incisivos e deixando nossos vizinhos ao oeste entregues a si próprios, acabaremos ajudando-os. É possível que as elites retornem a uma postura menos suicida que seria mais segura a todos. Teremos de ser espertos, certamente, de modo que nos tiremos da equação e asseguremos que os danos colaterais que o sistema falho inevitavelmente causará sejam os mais amenos possíveis. Mantê-lo em sua forma atual é simplesmente ainda mais perigoso.

Diretrizes para a Rússia do amanhã

Como a ordem vigente está prestes a ruir, tudo parece indicar que o caminho mais prudente para a Rússia é sentar e esperar que tudo se desenrole, refugiando-se na “fortaleza neoisolacionista” que construiu para si e lidando com suas questões domésticas. Contudo, desta vez, a história urge-nos a tomar iniciativa. Muitas das minhas sugestões que dizem respeito à práxis de política externa que eu chamei de “destruição construtiva” surgem naturalmente da análise feita acima.

Não será preciso interferir ou tentar influenciar a dinâmica interna do Ocidente, cujas elites estão desesperadas a ponto de querer começar uma nova guerra fria contra a Rússia. O que devemos fazer é utilizar-nos de diversos instrumentos de política externa — incluindo os militares — para estabelecer certas linhas intransponíveis. Enquanto isso, à medida que o sistema ocidental for caindo cada vez mais em degradação moral, política e econômica, poderes não-Ocidentais (tendo a Rússia como jogadora-chave) inevitavelmente verão suas posições geopolíticas, geoeconômicas e geoideológicas ficarem mais fortes.

Nossos parceiros ocidentais, de forma previsível, tentam esmagar os apelos russos por garantias de segurança e tiram vantagem do processo diplomático corrente a fim de estender o prazo de validade das suas instituições. Não há necessidade de abrir mão do diálogo ou da cooperação, quando úteis, em matéria de comércio, política, cultura, educação e saúde. Entretanto, devemos também fazer bom uso do tempo que temos para efetivamente colocar pressão político-militar, psicológica e técnica não na Ucrânia, cujo povo foi transformado em bucha de canhão para uma nova guerra fria, mas no Ocidente como um todo, para que possamos forçar uma mudança de posição que o leve a abrir mão das políticas que tem favorecido nas últimas décadas. Não há nada a temer com a escalada do conflito; vimos tensões ser alavancadas até mesmo quando a Rússia tentava agradar o mundo ocidental. Devemos preparar-nos para um contra-ataque mais forte do Ocidente e, ademais, a Rússia deve ser capaz de mostrar e oferecer ao mundo uma alternativa a longo prazo; um novo quadro político baseado em paz e cooperação.

O Ocidente pode tentar intimidar-nos com sanções devastadoras, mas nós também somos capazes de detê-lo com nossa própria resposta assimétrica; uma que necrosaria economias ocidentais e quebraria sociedades inteiras.

Naturalmente, é útil fazer com que nossos parceiros lembrem que existe uma alternativa a isso que beneficia a todos.

Se a Rússia conduzir políticas razoáveis sem perder a assertividade (domesticamente também), ela superará de forma vitoriosa (e relativamente pacífica) a hostilidade ocidental. Como escrevi antes, temos grande chance de vencer esta guerra fria.

Outra coisa que inspira otimismo é próprio histórico russo: logramos diversas vezes domar as ambições imperiais de poderes estrangeiros, pelo nosso bem e pelo bem de toda a humanidade. A Rússia foi capaz de transformar aspirantes a impérios em vizinhos relativamente inofensivos; a Suécia após Poltava, a França após Borodino, a Alemanha após Stalingrado e Berlim.

Podemos encontrar um slogan da nova política russa para com o Ocidente em um verso de Os Citas, de Aleksandr Blok, um poema que parece especialmente relevante atualmente: “Venha até nós! Dos horrores da guerra / Venha para um abraço pacífico! / Antes que seja tarde demais — uma velha espada em uma bainha, / Camaradas! Nós nos tornaremos — irmãos!”

Enquanto tentamos sarar nossas relações com o Ocidente (mesmo que isso peça um remédio amargo), lembremos que, apesar de serem culturalmente próximos a nós, o mundo ocidental está com os dias contados — há duas décadas, aliás. Ele está, essencialmente, em modo de redução de danos, buscando cooperação sempre que possível. Os verdadeiros prospectos e desafios do nosso presente e do nosso futuro estão no Oriente e no Sul. A manutenção de uma linha mais dura para com as nações ocidentais não deve distrair a Rússia do seu “pivô para o Leste.” Temos visto o pivô desacelerar nos últimos dois ou três anos, especialmente no que tange ao desenvolvimento dos territórios que estão além dos Montes Urais.

Não devemos permitir que a Ucrânia se torne uma ameaça à segurança da Rússia. Tendo dito isso, seria contraproducente gastar nela muitos recursos político-administrativos (sem mencionar econômicos). A Rússia deve aprender a administrar ativamente esta volátil situação, mantendo-a dentro dos limites aceitáveis. A maior parte da Ucrânia foi neutralizada pela sua própria elite antinacional, corrompida pelo Ocidente e infectada pelo patógeno do neonazismo militante.

Seria muito mais efetivo investir no Leste, no desenvolvimento da Sibéria; criando uma conjuntura de vida e trabalho favorável, atrairemos, além de cidadãos russos, muitas pessoas de outras partes do antigo Império Russo, incluindo os ucranianos, que, historicamente, contribuíram grandemente para a região.

Deixem-me reiterar algo que apontei em meus outros artigos: foi a incorporação da Sibéria sob Ivan, o Terrível, que fez da Rússia um grande poder, e não a adesão da Ucrânia sob Aleksei Mikhailovich, conhecido como “o Pacífico.” Já passou da hora de pararmos de ecoar a afirmação tosca — e descaradamente “polaca” — de Zbigniew Brzezinski de que a Rússia não pode ser um grande poder sem a Ucrânia. O oposto está muito mais próximo da verdade: a Rússia não pode ser um grande poder enquanto carregar o fardo de uma Ucrânia — entidade política criada por Lenin e que se alargou em direção ao Oeste sob Stalin — cada vez mais desgarrada.

O caminho mais promissor à Rússia está no desenvolvimento e fortalecimento de laços com a China. Uma parceria com Pequim alavancaria o potencial de ambos os países substancialmente. Se o Ocidente der continuidade à sua política amargamente hostil, não será impensável considerar um pacto de defensa quinquenal com a China. Naturalmente, é mister não deixar “subir à cabeça” o sucesso que traria o caminho chinês, de modo que não caiamos no modelo de relações do antigo Império do Meio, cujo crescimento se deu através da vassalagem de seus vizinhos. Devemos ajudar Pequim onde pudermos para impedi-la de sofrer qualquer derrota momentânea na nova guerra fria iniciado pelo Ocidente. Qualquer derrota nos enfraqueceria por tabela. Ademais, sabemos todos em que se transforma o Ocidente quando ele acredita vencer. Foram necessárias fortes “medicações” para tratar a ressaca estadunidense que resultou da sua embriaguez de poder nos anos 90.

Claramente, uma política de viés oriental não pode ter foco somente na China. Tanto o Oriente quanto o Sul estão em ascensão política, econômica e cultural no cenário global, o que se deve em parte à nossa contestação da superioridade militar ocidental, fonte primária de sua hegemonia quincentenária.

Quando chegar a hora de estabelecer um novo sistema de segurança europeu que substituirá o atual, perigosamente obsoleto, o primeiro deverá ser elaborado dentro da lógica de um grande projeto eurasiano. Nada de valor poderá sair da velha lógica euro-atlântica.

É evidente que o sucesso requererá o desenvolvimento do potencial econômico, técnico e científico da nação; pilares do seu poderio militar, que permanece sendo o sustentáculo da soberania e da segurança de qualquer estado. A Rússia não será bem-sucedida sem melhorar a qualidade de vida da maioria de sua população, e isso inclui prosperidade geral, saúde, educação e meio ambiente.

A limitação de liberdades civis, algo inevitável quando se está em confronto com o Ocidente coletivo, não deve se estender à esfera intelectual. Isso é difícil, mas alcançável. Devemos preservar o máximo possível de liberdade intelectual em prol das mentes mais criativas e talentosas que estão dispostas a servir à nação. Desenvolvimento científico à lasharashkas” (laboratórios de pesquisa e desenvolvimento que operavam dentro do sistema soviético de campos de trabalho) não funcionaria no mundo contemporâneo. A liberdade aprimora os talentos do povo russo e a inventividade está no nosso sangue, estendendo-se até ao campo da política externa: estarmos livres de entraves ideológicos oferece-nos diversas vantagens substanciais que não são possíveis aos nossos vizinhos de mente mais fechada.

Se queremos crescer e triunfar como sociedade, é absolutamente vital que desenvolvamos um cerne espiritual; uma ideia nacional, uma ideologia que nos una e que jogue luz no caminho a ser seguido. Que uma grande nação não poderá ser verdadeiramente grande sem tal coisa é uma verdade fundamental. Isso é parte da tragédia que se sucedeu conosco nos anos 70 e 80. Com sorte, a resistência das elites dominantes, cujas raízes são dores da era soviética, ao avanço de uma nova ideologia enfraquecerá. O discurso de Vladimir Putin no encontro anual de 2021 do Clube de Discussões de Valdai foi um sinal extremamente encorajador em relação a isso.

Tal como o crescente número de autores e filósofos russos, eu também expus minha visão de uma “ideia para a Rússia.” Peço desculpas por fazer referências às minhas próprias publicações, mas é um efeito inevitável que se ater ao formato surte.

Questões para o futuro

Discutamos agora um aspecto significante e frequentemente negligenciado da nova política que precisa ser abordado: precisamos dispensar e reformar a fundação ideológica, muitas vezes prejudicial, de nossas ciências sociais e da vida pública para que tal política seja sequer implementada.

Isso não significa rejeitar novamente os avanços em ciência política, economia e relações internacionais pelos quais foram responsáveis os nossos antecessores. Os bolcheviques tentaram varrer as ideias sociais da Rússia czarista e todo mundo sabe qual foi o resultado. Rejeitamos o marxismo exultantes; agora, fartos da conjuntura atual, percebemos que fomos muito impacientes com ele. Marx, Engels e Lenin tinham, em suas teorias do imperialismo, ideias lúcidas que podemos adotar.

As ciências sociais que estudam as nuances da vida pública e privada devem levar em conta o contexto nacional, independentes do quão inclusivas desejam parecer. Isso tem precedentes históricos e auxilia nações, seus governos e suas elites. A tentativa de aplicação mecânica de soluções válidas para um país a outro distinto é infrutífera e faz surgir somente abominações.

Precisamos começar a trabalhar rumo à independência intelectual logo após alcançarmos segurança militar e soberania econômica. No novo mundo, é compulsório desenvolver-se e exercer influência. Mikhail Remizov, um proeminente cientista político russo, foi, até onde sei, o primeiro a chamar isso de “descolonização intelectual.”

Mesmo tendo já passado décadas na sombra do marxismo importado, escolhemos aderir a mais uma ideologia estrangeira; iniciamos uma transição para a democracia liberal que afetou as ciências políticas e econômicas e, até certo ponto, até a política externa e de defesa. Essa fascinação não nos serviu bem; perdemos território, tecnologia e cidadãos. Na metade dos anos 2000, passamos a exercer nossa soberania, mas o fizemos apoiados em mero instinto por carecermos de princípios científicos e ideológicos.

Ainda não temos a coragem para reconhecer que a cosmovisão científica e ideológica que sustentamos ao longo dos últimos quarenta ou cinquenta anos é ultrapassada e/ou foi nutrida a fim de servir às elites estrangeiras.

Para ilustrar esse ponto, trarei aqui algumas questões aleatoriamente escolhidas de minha longa lista.

Começarei com as existenciais, puramente filosóficas. O que importa mais no ser humano; o espírito ou a carne? Em palavras mais mundanas e políticas; o que “move” as pessoas e os estados no mundo moderno? Para os liberais e marxistas médios, a resposta é “a economia.” Lembremos que, até pouco tempo, a famosa frase “It’s the economy, stupid!”, proferida em 1992 por James Carville, então estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton, era percebida como um axioma. As pessoas, entretanto, buscam algo maior quando a barriga está cheia. Amor por sua pátria e suas famílias, anseios por dignidade nacional, liberdades individuais, poder, fama… A pirâmide de necessidades de Maslow é muito bem conhecida desde a sua introdução em 1943; o capitalismo moderno, porém, a subverteu, forçando cada vez mais consumo através, primeiro, da mídia tradicional e, posteriormente, de redes digitais, tanto para ricos quando para pobres — de cada qual, segundo sua capacidade.

O que podemos então fazer quando o sistema capitalista, desprovidos de fundação moral e religiosa, incita o consumo desenfreado e quebra limites morais e geográficos, entrando em conflito com a natureza e ameaçando nossa existência como espécie? Nós, russos, entendemos melhor que ninguém que tentativas de se livrar de empreendedores e capitalistas que são movidos por desejo de acumular capital terão também desastrosas consequências — o modelo econômico socialista não era o mais “verde.”

O que fazemos das tendências recentes que envolvem a rejeição da história, da pátria, do gênero, das crenças? E dos agressivos movimentos ultrafeministas e LGBT? Respeito o direito de aderir a tais coisas, mas acho que se trata de pós-humanismo. Devemos tratar isso tudo como apenas mais um estágio de evolução social? Creio que não. Devemos tentar ocultar, limitar e esperar que a sociedade supere essa epidemia moral? Devemos lutar ativamente, guiando a maioria da humanidade que ainda adere à valores “conservadores,” ou, em termos mais simples, valores humanos normais? Devemos entrar nessa briga, escalando ainda mais um já perigoso confronto com as elites ocidentais?

O desenvolvimento tecnológico e a maior produtividade do trabalho ajudaram a alimentar mais pessoas, mas o mundo em si está mergulhado na anarquia e muitos dos princípios mais básicos foram perdidos a nível global. Preocupações com segurança podem muito bem superar as que dizem respeito à economia. Instrumentos militares e vontade política podem prevalecer a partir de agora.

O que é a dissuasão militar no mundo moderno? É uma forma de ameaçar causar danos a patrimônios nacionais e individuais ou a patrimônios estrangeiros e infraestruturas de informação às quais as elites ocidentais são ligadas? O que seria do Ocidente sem tal infraestrutura?

Mais uma questão parecida: o que é a tal paridade estratégica, tão discutida até hoje? Uma baboseira estrangeira acolhida por líderes soviéticos que, guiados pelo seu complexo de inferioridade e pela “síndrome de Barbarossa”, jogaram o povo em uma exaustiva corrida armamentista? Parece que já temos a resposta dessa pergunta, ainda que ainda disparemos discursos sobre igualdade e simetria.

E o que é esse controle de armamentos, que muitos acreditam ser fundamental? É uma tentativa de restringir a custosa corrida armamentista, benéfica à econômica mais rica, limitando hostilidades? Ou será uma ferramenta para legitimar a corrida, o desenvolvimento de armas e o e forçar no oponente o processo de programas desnecessários? Não há resposta óbvia para isso.

Mas voltemos às questões mais existenciais.

Será a democracia o pico do desenvolvimento político ou só mais um meio para as elites controlarem a sociedade, se não estamos falando da democracia pura de Aristóteles (que também tinha suas limitações)? Existem muitos instrumentos que vêm e vão de acordo com as condições da sociedade. Às vezes, abandonamo-los só para os trazermos de volta quando a hora é certa e há demanda, seja ela interna ou externa. Não estou propondo autoritarismo sem limites ou monarquia; acho que já exageramos em centralização, especialmente a nível municipal. Mas se ela é só um instrumento, não deveríamos então parar de fingir que desejamos democracia e sermos mais claros? Dizer que queremos liberdade individual, uma sociedade próspera, segurança e dignidade nacional? Como justificaríamos o poder às pessoas?

Está o estado está fadado a padecer, como costumavam acreditar os marxistas e globalistas? Será ele superado mediante alianças entre corporações transnacionais, ONGs internacionais e órgãos políticos supranacionais? Veremos quanto tempo aguenta a UE em sua forma atual. Vale notar que não quero dizer que não há razão para unir esforços nacionais distintos em prol de um bem maior como, por exemplo, derrubar barreiras econômicas caras ou introduzir políticas de parceria pelo meio ambiente. Mas não seria melhor focar no desenvolvimento do próprio estado e apenas apoiar os vizinhos, ignorando os problemas globais criados pelos outros? Não mexeriam conosco agindo dessa forma?

Qual é a função da terra e dos territórios? Não são bens decrescentes? Fardos, como acreditavam cientistas políticas até pouco tempo atrás? Ou será que são o maior tesouro nacional, especialmente em tempos de crise ambiental, mudança climática e crescente déficit d’água e comida em certas regiões?

O que devemos fazer com centenas de milhões de paquistaneses, indianos, árabes et al. cujas terras podem se tornar inabitáveis em breve? Devemos convidá-los agora, como fizeram os EUA e a Europa nos anos 60, recebendo-os como imigrantes para reduzir o custo do trabalho e minar os sindicatos? Ou devemos preparar-nos para defender nossos territórios dos estrangeiros? Se sim, devemos abrir mão da esperança de “desenvolver a democracia”, como mostra a experiência de Israel com a população árabe.

Desenvolver a robótica, que atualmente está em estado decrépito, ajudaria a compensar a falta de força de trabalho e a fazer daqueles territórios lugares habitáveis novamente? Qual é o papel dos russos de sangue no país, considerando que o número deles inevitavelmente continuará a cair? Levando em conta que os russos são um povo historicamente aberto, os prospectos podem ser otimistas, mas, até agora, não há clareza.

Posso me estender muito, principalmente no que tange à economia. Essas perguntas precisam ser feitas e é vital encontrar respostas o mais rápido possível para que se possa crescer e prevalecer. A Rússia precisa de uma nova economia política, livre de dogma marxista ou liberal, mas que também vá além do mero pragmatismo que baseia nossa política externa. Ela deverá incluir um idealismo voltado para o futuro, uma nova ideologia russa que incorpora nossa tradição histórica e filosófica. Isso ecoa as ideias do acadêmico Pavel Tsygankov.

Acredito que seja esse o objetivo final de nossa pesquisa em relações internacionais, ciência política e filosofia. É uma tarefa mais que difícil. Só podemos continuar contribuindo à sociedade quebrando nossos velhos padrões de pensamento. Mas, para finalizar de modo otimista, segue um pensamento bem-humorado: não é hora de reconhecer que os nossos objetos de estudo — relações internacionais, política doméstica e economia — são frutos de um processo criativo que envolve massas e líderes igualmente? Se sim, isso não os torna, de certa forma, arte? Muitas vezes eles não têm explicação e têm raízes no intelecto e no talento. Isso também faz de nós críticos de arte; falamos sobre ela, identificamos as tendências e ensinamos aos artistas — as massas e os líderes — a sua história, o que lhes é útil. Frequentemente perdemo-nos no teórico, parindo ideias que são divorciadas da realidade ou fazendo distorções ao focar em fragmentos soltos.

Às vezes realmente fazemos história; vide Evgeny Primakov e Henry Kissinger. Acho que esses, contudo, não se importavam com o “movimento” que representaram na história dessa arte, mas que simplesmente utilizaram-se dos seus conhecimentos, experiências pessoais, princípios morais e intuições. Gosto da ideia de que somos experts nessa arte e acredito que ela pode tornar a intimidadora tarefa de examinar os seus dogmas um pouco mais leve.

Fonte: GreatGameIndia

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Sergey Karaganov

Professor e cientista político, diretor honorário do Conselho de Políticas Externas e de Defesa da Rússia.

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