A paciência de Putin e Xi Jinping está no fim. As provocações e ameaças estadunidenses levaram Rússia e China a, finalmente, falar de modo duro e enfático sobre seu compromisso com a multipolaridade. O alinhamento entre as duas potências eurasiáticas aumentou e agora elas parecem ter objetivos mais claros. Os EUA seguem metendo os pés pelas mãos.
A atual crise nas relações da Rússia com o Ocidente nada tem a ver com gás, petróleo, recursos energéticos ou com a economia em geral. As tentativas de explicar a política através do “botim”, no espírito de Daniel Yergin, são vãs e superficiais. Estamos lidando com processos civilizacionais e geopolíticos, onde as questões econômicas e energéticas são secundárias e são processadas de forma instrumental.
De um ponto de vista civilizacional, trata-se fundamentalmente de ideologia. E precisamente a dos democratas na administração Biden. A atual administração dos EUA consiste em uma aliança de ultraglobalistas misturados com neocons e falcões liberais. Eles observam que o mundo unipolar, a ideologia liberal global e a hegemonia do Ocidente estão em colapso e estão dispostos a fazer qualquer coisa – mesmo causar a Terceira Guerra Mundial – para de alguma forma impedir isso.
Os globalistas têm muitos inimigos – islamismo, populismo (incluindo Trump), conservadorismo, etc. Mas apenas duas potências têm o potencial real de desafiar verdadeiramente a hegemonia – a Rússia e a China. A Rússia é um gigante militar, a China um gigante econômico.
É aqui que entra a geopolítica. É importante para Biden separar a Rússia da Europa, que quer sua própria política autônoma. Daí o problema ucraniano e a escalada no Donbass. A Rússia e Putin são demonizadas e acusadas de estarem prontas para invadir o país vizinho. Embora não haja uma invasão real, Washington comporta-se como se já tivesse acontecido. Daí as sanções e até mesmo a provável ação militar preventiva no Donbass. Como todos no Ocidente estão convencidos da invasão da Rússia, qualquer operação militar dos ucranianos apoiada pela OTAN em Donbass parecerá uma “legítima defesa”. Ao mesmo tempo, presume-se que uma campanha da mídia desencadeada contra a Rússia impedirá qualquer resposta adequada e simétrica de Moscou. E se isso não impedir, as relações de Moscou com a Europa serão cortadas em qualquer caso.
As disputas sobre gás e Nord Stream-2 servem apenas como ferramentas técnicas para uma guerra posicional.
O mesmo é válido para a China. Biden criou uma aliança anti-China com os países anglo-saxões (Austrália, Grã-Bretanha) AUKUS e QUAD com os países asiáticos – Japão, Índia. O obstáculo desta vez é Taiwan (como a Ucrânia no caso da Rússia). E o objetivo final é interromper e impedir a expansão econômica da China no projeto Cinturão & Rota.
A aliança entre a Rússia e a China e a combinação das intenções russas de restaurar o “Grande Espaço” com o projeto chinês da Nova Rota da Seda no projeto integral da Grande Eurásia, como anunciado pelos líderes russos e chineses há vários anos, significa um fim irreversível para a hegemonia ocidental. As recentes reuniões de Putin e Xi Jinping não deixam dúvidas de que a Grande Eurásia é séria e a decisão já foi tomada. Daí o ataque feroz do Soros, ultraliberal e globalistas, à China.
Tudo isso é geopolítica clássica, repetindo literalmente os projetos atlantistas de Mackinder a Brzezinski. A potência marítima (liberais, globalistas) versus a potência terrestre (Eurásia).
Ao mesmo tempo, a Rússia e a China podem receber outros competidores pelo status do polo:
- América Latina (como ressaltado durante a visita de Alberto Fernandez, Presidente da Argentina, a Moscou e como certamente será discutido durante a esperada visita do Presidente Bolsonaro ao Brasil),
- Mundo islâmico (que está sonhando em se livrar do controle ocidental – Irã, Turquia e Paquistão estão na vanguarda aqui),
- África (onde a Rússia e a China começaram a limpar os regimes fantoches europeus),
- E a própria Europa continental (que está cada vez mais cansada do atlantismo e sonha em tornar-se um polo em si – estas ideias estão ganhando popularidade na França, Alemanha, Itália e Espanha, apesar das elites liberais atlantistas, que ainda estão no comando).
Somente a Índia (devido aos conflitos com a China e o Paquistão) e o Japão (ainda sob o apertado controle dos EUA), bem como uma série de marionetes globalistas, estão do lado de evidentes frouxos. Ficar lá agora está se tornando uma verdadeira vergonha.
Isto também afeta a ideologia. Todos aqueles que se opõem à hegemonia americana e à tentativa desajeitada de Biden de salvar o modelo unipolar (no espírito da “Liga das Democracias”) também estão começando a se distanciar do dogma liberal – especialmente em sua forma atual totalmente repulsiva e patológica (com a legalização e até mesmo a imposição totalitária agressiva de LGBT+, casamento gay e outras perversões, bem como a ameaça direta de entregar o poder à Inteligência Artificial, que é a que os projetos pós-humanistas que estão sendo ativamente promovidos pela Big Tech se reduzem). Se a isto acrescentarmos o fracasso das políticas anti-Covid, a vacinação questionável (já invalidada pela variante Omicron), os lockdowns injustificados e mal organizados, os passaportes sanitários orwellianos e um sistema de vigilância total, fica claro que o colapso do liberalismo está mais próximo do que nunca. Os sucessos dos caminhoneiros rebeldes do Freedom Convoy no Canadá, que forçaram o globalista liberal Trudeau a se esconder, e o aumento da popularidade dos candidatos anti-Macron na França (todos, desde Zemmour e Marine Le Pen até Melanchon, se posicionam em posições antiliberais e anti-OTAN) são apenas alguns sintomas do processo global – o fim da hegemonia atlantista.
A Rússia é agora desafiada pelo atlantismo agonizante simetricamente:
- do ponto de vista da geopolítica eurasianista, opondo ao globalismo à multipolaridade
- e liberalismo a valores alternativos e tradicionais da civilização; em vez de LGBT, a família tradicional (consagrada na Constituição); em vez de individualismo – a nação e sua identidade histórica, etc.
A China geralmente apoia esta abordagem de Moscou. Pequim também se opõe ao globalismo e à hegemonia ocidental e defende seus valores – desta vez, chineses – tradicionais.
Tudo isso pode ser visto claramente nas teses da última reunião de Putin com Xi Jinping:
- Moscou e Pequim pretendem se opor a qualquer atentado contra sua soberania (leia-se: combater a hegemonia e o globalismo até o fim amargo);
- Rússia e China levaram em conta a criação de blocos antichineses por Biden e a ativação da OTAN na Europa Oriental e pretendem se opor a tudo isso (juntos!);
- os líderes dos dois países acusaram indiretamente os EUA de terrorismo biológico (a ameaça é chamada de “atividades militares-biológicas americanas”); na verdade, isto significa afirmar que foi o Ocidente (os EUA e a Grã-Bretanha) que desencadeou a covid-19 sobre o mundo;
- Pequim apoia Moscou na Europa Oriental, e Moscou apoia Pequim no Oceano Índico e Pacífico, e Putin proclamou explicitamente “Taiwan é sua” (Xi Jianping murmurou baixinho: “Nesse caso, a Ucrânia é sua”);
- Ambos os países amaldiçoam a Liga das Democracias (unipolaridade) e prometem preservar o modelo policêntrico da ordem mundial (isto deve ser entendido como uma declaração de lealdade aos princípios da Paz de Yalta e da ONU).
O bloco russo-chinês – eurasiático! – se concretizou. Todos os outros países têm que tomar uma decisão – com quem ficam:
- com a hegemonia americana agressiva e completamente insana, já colapsando,
- ou com esse bloco de países (incluindo Rússia, China, Irã, Paquistão, Belarus, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba, Nicarágua, Síria, Mali, RCA, Burkina Faso, Guiné, e em parte Turquia, Argentina e Brasil), que se opõem em nome da preservação da soberania do Estado e da identidade civilizacional?
O futuro certamente está do lado da multipolaridade, daí a Eurásia. Os liberais foram decepcionados por seus próprios sucessos, que não conseguiram consolidar e manter após a queda da URSS. O último esforço para construir um império mundial fracassou. O Novo Mundo começou.
Fonte: Geopolitica.ru