Joe Biden ofereceu ao Brasil a posição de parceiro não membro da OTAN, a aliança militar atlantista criada na Guerra Fria para enfrentar a URSS e que hoje serve para enfrentar Rússia e China. Mas quais são as condições? E será que isso serviria ao interesse nacional brasileiro?
Há poucos dias, o hemisfério ocidental foi surpreendido com um convite para que o Brasil se tornasse “parceiro global” da OTAN. O Brasil não é o primeiro parceiro militar ibero-americano da OTAN e dos EUA. Na prática, atualmente, há 3 países de nosso continente que estão na órbita da OTAN: Argentina, Colômbia e Brasil.
A título introdutório, as relações argentinas com a OTAN vêm de mais tempo. A Argentina participou ativamente na Guerra do Golfo, participou de operações militares na Bósnia e no Kosovo, bem como de inúmeros exercícios e acordos nos anos 90. Toda a geopolítica argentina do período Menem foi marcada por uma aproximação dos EUA, por uma subalternidade em relação às potências atlantistas e por um desejo de integrar a OTAN, eventualmente alcançando o status de aliado não membro. Curiosamente, o governo brasileiro, à época sob comando do liberal Fernando Henrique Cardoso, chegou a criticar a aproximação da Argentina com a OTAN, dizendo que essa aproximação introduzia elementos externos complexos no contexto da segurança regional e atrapalharia os debates sobre a construção um sistema de defesa comum para o Mercosul, o que de fato parece ter acontecido, já que esse é um tema que foi sendo esquecido até ser revivido pela UNASUL.
Já no início do governo Lula, o Brasil, porém, começou um processo de aproximação com a OTAN, inicialmente em âmbitos econômicos, logísticos e materiais, sob a justificativa de abrir mercados para a indústria brasileira. Algo que, em si mesmo, e se parasse por aí, não seria tão problemático. Mas o Brasil continuou a ser cortejado. Recordemos, inclusive, que o Brasil já era parte de um pacto militar atlantista, o Tratado do Rio, que prevê que os membros defenderão militarmente qualquer país, membro do pacto, que seja atacado por uma potência externa. À primeira vista, termos razoáveis, mas o único país americano provável de ser atacado por um Estado estrangeiro são os EUA, o mesmo que provoca a maioria das guerras, o que torna o Tratado do Rio duvidoso do ponto de vista do interesse nacional dos Estados ibero-americanos.
Como um adendo, em 2018 a Colômbia se tornou parceira global da OTAN, um nível de cooperação que está acima do de aliado não membro. Isso também veio após anos de aproximações e acordos entre os países. No caso colombiano, isso se deu no momento mais tenso das relações com a Venezuela, após manobras militares conjuntas entre Peru, Colômbia e Brasil com apoio do Pentágono.
Agora, o projeto de intensificação da aproximação entre Brasil e OTAN vem logo após a vitória eleitoral de Bolsonaro. O setor de relações internacionais do governo brasileiro possui diversos personagens de tendências milenaristas olavéticas, que acreditam em um caráter salvífico e moral da OTAN (como baluarte contra a “ameaça comunista”) e considera, portanto, fundamental que o Brasil se alinhe com a OTAN para lutar pela salvação da “civilização ocidental”.
É importante recordar que uma aliança militar é sempre voltada contra um inimigo específico. Não existe pacto militar em abstrato, mesmo que o inimigo não seja declarado abertamente, existe sempre um inimigo em mente em toda aliança militar. No caso das relações militares com países sul-americanos, o alvo regional é, obviamente, a Venezuela. É por isso que para além dos delírios milenaristas olavéticos, não há nenhuma vantagem nessa associação cada vez mais próxima com a OTAN. São os EUA que precisam de nós e querem nos instrumentalizar contra uma nação insubmissa. Nós não precisamos dos EUA para questões de segurança regional, porque o Brasil não possui grandes problemas emergenciais de segurança envolvendo ameaças de Estados estrangeiros, exceto pela própria ameaça estadunidense.
Portanto, é nesse contexto que vem a decisão do Trump de designar o Brasil como aliado não membro da OTAN em 2019. Observe-se que a lista de países com esse status é precisamente a lista de países não europeus classicamente reconhecidos como vassalos dos EUA. Há quem tente ler essa aproximação como tendo importância meramente comercial, mas não poderíamos concordar. Essa designação abriu a possibilidade de parcerias que podem tornar o Brasil dependente de sistemas de defesa dos EUA. E essa é uma questão fundamental que transcende o mero comércio, porque quem vende tecnologia militar também possui os meios de enfrentar essa tecnologia militar, então em um cenário em que boa parte das armas e sistemas de defesa do Brasil viesse dos EUA, eles seriam praticamente inúteis contra os EUA, precisamente o país, no mundo, mais provável de nos invadir ou bombardear (como já ameaçou de fazer algumas vezes no passado).
Como exemplo do desvio em relação à tradição diplomática brasileira, há poucos meses o Brasil participou de um exercício militar no Mar Negro ucraniano, exercício esse dirigido contra a Rússia, obviamente. De que maneira a participação nesse exercício teria servido aos interesses brasileiros? A inclusão do Brasil na OTAN vai na contramão, inclusive, da Política Nacional de Defesa do Brasil, que destaca a importância do Atlântico Sul (o conceito de “Amazônia Azul”) e a construção de parcerias militares com outras nações do Atlântico Sul, especialmente as africanas, para proteção dos recursos da região. Ocorre, porém, que essa política vai na contramão, precisamente, dos interesses de países do Atlântico Norte que possuem ainda possessões no Atlântico Sul ou cobiçam recursos regionais.
Chegamos portanto, ao desenvolvimento mais recente, com o convite de Joe Biden. A ideia é elevar o status do Brasil a parceiro global, mesmo status da Colômbia. Isso implicaria, inclusive, a possibilidade de participação ativa do Brasil em ações militares da OTAN ao redor do mundo. Em troca, os EUA querem que o Brasil impeça o ingresso da Huawei no mercado de 5G no Brasil.
Agora, nem bloquear a Huawei interessa ao Brasil, nem entrar na OTAN nos interessa. Os EUA usam o argumento de que a China pode usar essa tecnologia para espionar os países, mas o Brasil tem sido vítima da espionagem estadunidense há décadas, com escândalos recentes ainda frescos na memória. Para Bolsonaro, agradar os EUA nesse momento é importante para conquistar um muito necessário respaldo internacional em um momento de máxima crise interna. Por outro lado, a China é atualmente o principal parceiro econômico do Brasil. Ou seja, na prática, o Brasil perde com essa aproximação, mas Bolsonaro pode ter uma pequena vitória e os EUA uma grande vitória.
No contexto geral, portanto, trata-se, por parte dos EUA, de enfrentar a expansão do projeto Cinturão & Rota (e da China de modo geral) pelo Atlântico Sul, o que em um momento de recuo em várias outras áreas geoestratégicas do planeta é fundamental para os EUA. Afinal, somos seu “quintal”, como ficou consagrado popularmente.
Mas a OTAN, relíquia da Guerra Fria e incompatível com um mundo que caminha rumo à multipolaridade, é uma aliança que possui prestígio cada vez menor. O recuo inesperado dos EUA do Afeganistão, inclusive carente de coordenação com seus aliados, abandonando aliados para se virarem sozinhos, derrubou o prestígio militar dos EUA e manchou a imagem de Biden. Atualmente, os líderes europeus voltam a pensar em autonomia estratégica-militar, mas tudo dependerá dos resultados das eleições na Alemanha e França.
A conclusão, portanto, é que não interessa ao Brasil se aproximar ainda mais da OTAN. Perderíamos mais do que ganharíamos. São os EUA que precisam de nós. O mesmo vale para Argentina e Colômbia. O que nos interessa é voltar a discutir, entre vizinhos, os temas fundamentais da defesa e segurança ibero-americanas, e como solucioná-los de forma coordenada.
Fonte: Diario La Verdad
Essa matéria envelheceu muito mal…. 5 meses depois eis aí a prova de que mais uma vez O Olavo tinha Razão kkkkk