Uma Introdução ao Pensamento Xi Jinping: Tradição e Modernidade

A China contemporânea ainda é pouco compreendida por comentaristas políticos e jornalistas. Dos que defendem que a China é simplesmente marxista, aos que defendem que a China é ultraliberal, a China segue sendo vista a partir de uma ótica do pensamento e dos valores ocidentais. Mas para compreender a China contemporânea é necessário entender a doutrina oficial do país, o chamado Pensamento Xi Jinping, onde maoísmo e confucionismo se unem em uma síntese inusitada, perfeitamente adaptada à realidade chinesa.

I. Considerações Preliminares

Em 24 de outubro de 2017, foi acordado adotar o “Pensamento Xi Jinping” como parte da Constituição do Partido Comunista Chinês. Desta forma, o Pensamento de Xi Jinping tornou-se parte da doutrina política do partido ao lado do Pensamento Mao Tsé Tung, da Teoria de Deng Xiaoping, da “Teoria da Tríplice Representatividade” de Jiang Zemin e da “Teoria do Desenvolvimento Científico” de Hu Jintao. É importante apreciar que esta doutrina política tem o status de “Pensamento”, ou seja, é considerada de maior importância do que as contribuições de líderes como Jiang Zemin ou Hu Jintao e do mesmo nível de importância que o corpus teórico de Mao.

Quando se trata de investigar o pensamento de um determinado autor, a postura materialista exige que qualquer tipo de explicação baseada em “gênio” individual seja abandonada. Pelo contrário, cada figura histórica deve ser situada como parte de uma tradição de pensamento e contextualizada em uma determinada cultura. Afirmamos que o pensamento de Xi Jinping não é exclusivamente a emanação intelectual do conhecido líder chinês, mas sim a confluência de várias tradições de pensamento e, sobretudo, a expressão no discurso dos principais desafios enfrentados pela sociedade chinesa, vistos através do prisma de sua elite governante. Em última análise, o Pensamento Xi Jinping seria um produto das condições materiais da realidade específica da China.

A política não é redutível à linguagem, mas a linguagem é um dos muitos meios pelos quais a política se materializa. Quando queremos entender a política externa americana após a Segunda Guerra Mundial, não podemos nos limitar a estudar o comparecimento de Harry Truman perante o Congresso dos EUA em 12 de março de 1947 (Doutrina Truman), mas o estudo desta política externa requer atenção para os documentos políticos nos quais ela está incorporada, incluindo o discurso mencionado. Graças a esta analogia, pode-se afirmar que o estudo da política atual da China não se esgota no conjunto de documentos agrupados sob o rótulo “Pensamento Xi Jinping”, mas sua análise é essencial para se ter uma visão geral da política do país asiático e de seu lugar no mundo. Em uma interpretação ortodoxa da teoria marxista, diríamos que a superestrutura, neste caso no terreno da teoria, não é exclusivamente um “reflexo” da base econômica, pois ela é objetivada, a cada passo, em todos os âmbitos do ser social.

O objetivo deste artigo é, portanto, duplo. Por um lado, é apresentar uma visão introdutória do Pensamento Xi Jinping, no nível discursivo, que identifique as principais linhas de ação política. A realização deste discurso na prática exigiria uma análise mais profunda que contemplasse outros campos, tais como as esferas econômica, política e cultural. Por outro lado, o objetivo principal é entender como as contribuições mais inovadoras à doutrina oficial do Partido Comunista Chinês envolvem uma síntese entre alguns elementos do pensamento tradicional chinês (especialmente das raízes confucionistas) e a interpretação particular do marxismo chinês, renovando a tradição aos olhos da modernidade.

II. As Particularidades da Via Chinesa

“Zhongguo” é o nome dado pela população chinesa de vários grupos étnicos ao território que conhecemos hoje como China, que está dividido em dois Estados separados: a República Popular da China e a República da China (Taiwan). Zhongguo pode ser traduzido como “País do Centro”, porque, do ponto de vista chinês, seu império estava no centro, não apenas geograficamente, do mundo. Esta concepção acabou sendo confrontada com a realidade durante o último período da dinastia Qing, quando o contato comercial com os Estados ocidentais resultou na depredação sistemática do território chinês, causando grandes transformações em sua idiossincrasia. Através de duas guerras de ópio com a Grã-Bretanha e vários tratados desiguais com potências como França, Alemanha, Rússia e Japão, os Estados ocidentais corroeram seriamente a soberania da China e esta se tornou um Estado semicolonial. Diante desta situação, as tentativas de reforma viriam eventualmente no final do século. Algumas assumiram a forma da revolta popular, como a Revolução de Taiping, baseada em ideologias milenaristas que combinavam a doutrina cristã com as tradições chinesas. Em outros casos, a reforma foi tentada “de cima”, pelos últimos imperadores da dinastia, como durante a Reforma dos Cem Dias.

Em qualquer caso, um comportamento comum pode ser visto em alguns dos reformadores chineses do final dos séculos XIX e XX, pois todos eles apreciaram que a razão da prostração da China estava, em grande parte, em seu modelo político, ultrapassado na era da locomotiva, do barco a vapor e da Bolsa de Valores. Em vários momentos do século, o passado e a tradição foram repudiados e abertamente criticados no Movimento Quatro de Maio (1919) e apontados como resquícios de “feudalismo” durante a Revolução Cultural Proletária. Entretanto, a modernidade não foi adotada incondicionalmente e em todos esses movimentos é possível identificar uma combinação de tradição e inovação que se desdobra até os governantes da China atual.

A situação atual da China tem suas raízes no período que se inicia em 1978 e é sobre esta parte da história recente da China que concentraremos nossa atenção. Com a derrota do “Bando dos Quatro” e a chegada ao poder de Deng Xiaoping, a política de “reforma e abertura” começou. Após Mao era necessário “procurar a verdade nos fatos” e o fato é que a economia chinesa sofreu com o fraco desenvolvimento das forças produtivas. É importante ter isto em mente, pois este é o início do caminho que levará à situação atual e que se reflete no Pensamento Xi Jinping. Desde 1978, o Partido Comunista Chinês (PCCh) considera o país como estando na “primeira etapa do socialismo” e sua tarefa imediata é um processo de reforma que culmina no desenvolvimento das forças produtivas e na melhoria da qualidade de vida da população. A reforma foi centrada nas “Quatro Modernizações” (agricultura, indústria, defesa nacional e ciência e tecnologia), anunciadas no 11º Comitê Central do PCCh, que propôs uma série de soluções heterodoxas, pois elas implicavam na suposição de que alguma liberalização do estilo capitalista seria necessária para aumentar a produtividade per capita.

O PCCh manteve uma linha política particular muito distante da soviética durante os anos 80 e 90. Se olharmos para os líderes mais relevantes durante esses anos, podemos observar a manutenção de um projeto político claramente centrado no desenvolvimento econômico do país através da liberalização econômica e da hegemonia do PCCh na esfera política. E isto se refletiu nas teorias expressas por Jiang Zemin e Hu Jintao, das quais o Pensamento Xi Jinping é herdeiro.

Jiang Zemin, secretário geral do PCCh de 1989 a 2002, expôs em sua “Teoria da Tríplice Representatividade”, um compêndio de ideias pouco definidas que apontam que as tarefas do partido são promover o “desenvolvimento de forças produtivas avançadas, a orientação da cultura avançada da China e os interesses fundamentais da esmagadora maioria do povo chinês” (Zemin, 2017). Embora não muito explicitamente, Jiang Zemin tentava assinalar que a abertura da China dependia do impulso de novos agentes sociais, como a crescente burguesia, que, em combinação com o desenvolvimento técnico-científico e sua difusão, contribuiria para a melhoria das condições de vida da maioria do povo chinês.

Hu Jintao, secretário geral de 2002 a 2012, salientou mais uma vez que a China é uma nação na primeira etapa do socialismo e que a tarefa principal é, portanto, a “construção econômica”. Ao falar de “concepção científica”, a ênfase está na análise das condições materiais do presente, em um contexto no qual a China era (e ainda é em muitos aspectos) um país subdesenvolvido. Assim, a prioridade é o desenvolvimento das forças produtivas, um processo que promete ser conflituoso e deve ser abordado a partir “da consideração do ser humano como o primordial” (Jintao, 2017), buscando alcançar um “desenvolvimento harmonioso”, noção que será desenvolvida mais adiante.

O leitor pode achar surpreendente que na análise dos expoentes mais relevantes do PCCh haja um afastamento da terminologia do marxismo mais clássico e uma maior preocupação com as tarefas mais imediatas do governo. Como veremos, o Pensamento Xi Jinping tem uma clara continuidade com a de seus predecessores, e isso levanta várias questões: Qual é o lugar da teoria marxista na China de hoje? Qual é o papel da tradição? O socialismo chinês é apenas um desvio nacionalista? Para responder a estas perguntas, será necessário encontrar o equilíbrio entre o peso específico do pensamento tradicional chinês, com suas diferentes correntes, e a relevância da visão materialista da história.

III. Liberais, Nova Esquerda e Neoconfucianos

O cenário acadêmico na China hoje é composto por várias tendências políticas que se desenvolveram desde os anos 90 como uma alternativa à linha hegemônica teórica durante as primeiras décadas da revolução. Tanto na China continental quanto no exterior, os desenvolvimentos acadêmicos mais atuais são o resultado das reformas econômicas e do novo clima de abertura, com cada uma das correntes, a partir de sua própria perspectiva, tentando se posicionar como uma influência que pode condicionar futuras decisões no país. As três principais linhas de pensamento sobre a situação atual chinesa se posicionam de maneira diferente em relação ao regime.

Os liberais atribuem a prosperidade crescente à liberalização econômica e propõem que estas reformas sejam acompanhadas na arena política por um movimento em direção a um sistema multipartidário. O pensamento liberal dos anos 90 não foi precedido por uma forte tradição liberal ao longo do século XX, exceto pela influência de pensadores como Hu Shih, de modo que, em geral a visão estritamente liberal não parece ter muito impacto na sociedade chinesa, um país onde o crescimento econômico está ligado às reformas do PCCh.

Uma pesquisa realizada em 2008 pelo Barômetro Asiático constatou que 38,4% da população chinesa considera a democracia como o suprimento de necessidades básicas (alimentação, vestuário, moradia, etc.), em comparação com 28,4% que consideram a democracia como a oportunidade de mudar o governo através de eleições, e um magro 4,2% que considera a democracia como a liberdade de expressão. (Shaoguang, 2019).

Uma comparação com os países vizinhos revela semelhanças no valor ou significado dado a esta palavra. Para Wang Shaoguang (2019) há muitas maneiras de pensar o termo “democracia”. A “democracia representativa” não é recebida favoravelmente pela maioria da população, que, em vez disso, favorece o que Shaoguang chamou de “democracia representacional”. No Ocidente, a ênfase está nos mecanismos formais que permitem a um conjunto de indivíduos escolher seus representantes, enquanto na China a ênfase do termo “democracia” está no conteúdo; a democracia seria a capacidade de um sistema político de atender às necessidades básicas da população como um todo. A política do PCCh se alinha com esta concepção de democracia, afirmando o procedimento “seleção mais eleição”, no qual o princípio da meritocracia se sobrepõe ao da eleição formal. Estas razões explicam o impacto limitado do programa político liberal.

Por outro lado, a chamada Nova Esquerda é um grupo heterogêneo que, em linhas gerais, defende amplamente as políticas governamentais. É difícil estabelecer características gerais, pois muitos autores rejeitaram o termo, e às vezes os teóricos da Nova Esquerda tendem a tomar emprestadas noções do confucionismo. Por sua vez, eles se distinguem da Velha Esquerda por terem integrado o trabalho de autores como Immanuel Wallerstein, Samir Amin ou Edward Said (Youyu, 2003) junto com o legado do próprio pensamento do PCCh. Em geral, eles dão uma avaliação positiva da era Mao e se alinham claramente com as decisões do partido, enfatizando que a característica distintiva do socialismo chinês é a “falta de um modelo preconcebido” (Wang, 2010).

Finalmente, há os neoconfucionistas. O termo “confucionismo” é uma invenção dos missionários jesuítas que latinizaram o nome “Kǒng Fūzǐ” e o transformaram em um “ismo” para designar uma certa tradição de pensamento. Na China, o nome usado é “Rújiā” (escola de estudiosos) e inclui os escritos de Confúcio, mas também os de uma longa tradição bastante posterior ao mestre, incluindo outros pensadores como Mêncio e Xunzi, por isso é mais correto falar de “tradição confuciana”.

O pensamento do próprio Confúcio, que não escreveu seus ensinamentos enquanto estava vivo, foi posteriormente registrado em várias obras, entre as quais os Analectos são considerados como o documento mais fiel ao pensador. Esta longa tradição permeou a visão das instituições chinesas e da própria sociedade, e se caracteriza por uma menor preocupação com o pensamento religioso ou metafísico (que é tratado no Tao Te Ching) e uma ênfase nos campos da ética, da moral e da política. Por assim dizer, embora em Confúcio a honra pelos rituais sagrados ocupe um lugar central, as principais preocupações são encontradas na solução dos problemas deste mundo através do Estado e do bom governo; aquele que visa alcançar a felicidade dos súditos. Para Confúcio, é feita uma analogia entre o governo da família e o do Estado, onde o governo da família e o do Estado são inseparáveis. O próprio Confúcio mostra seu cansaço para com os governantes de seu tempo mas, em todo caso, assume que suas decisões devem ser obedecidas, como se tratasse de um pai.

Para um observador moderno, esta visão de ordem social pode ser vista como abertamente reacionária, mas é preciso ter em mente que Confúcio viveu em uma era de descentralização do poder após a decomposição da antiga Dinastia Zhou (1046-256 AC). Além disso, parte de suas suposições será transformada ao longo do tempo e se em Confúcio a soberania do rei vem do “Mandato Celestial”, em Mêncio, um dos mais proeminentes confucionistas, o monarca mantém seu poder graças ao consentimento de seus súditos:

“Tu deves governar e se conduzir na administração do Estado como pai e mãe do povo. Se tu não se dispensa de excitar os ferozes animais para devorar os homens, como poderias ser considerado o pai e a mãe do povo”? (Bergua, 2010: 125)

Tanto o discurso político chinês quanto a propaganda estão repletos de tais referências, às vezes abertamente, através de citações dos clássicos, e às vezes de forma mais velada. Voltando aos dias atuais, os chamados autores neoconfucianos podem ser distinguidos em dois grupos principais. Por um lado, temos o núcleo inicial, os neoconfucianos de Hong Kong, Taiwan e dos Estados Unidos, com uma postura política liberal. Por outro lado, os chamados “neoconfucianos continentais” (Maninland New Confucians) que recentemente romperam com os primeiros politicamente e aspiram a exercer uma influência ideológica sobre o partido, representados por três de suas figuras centrais: Chen Ming, Jiang Qing e Kang Xiaoguang. Alguns, como Chen Ming, pedem a unificação das “três tradições” do Império Qing, da República da China e da República Popular da China para “transcender a esquerda e a direita” (Ming, 2012). Ming argumenta que a razão de ser do PCCh foi a salvação da nação chinesa e que, uma vez realizada, o partido deve se renovar aspirando a que o “sonho chinês” de “Pai Xi” se torne um “sonho confucionista”. O confucionismo deve se tornar uma espécie de religião civil (Ming recaptura a terminologia de Robert Bellah) da forma como os valores do protestantismo foram historicamente incorporados na política americana através de ideias-força, como o “Destino Manifesto”. Jiang Quing, ao contrário, nega a tradição modernizadora representada pelo PCCh e chegou ao ponto de propor uma constituição confucionista estabelecendo um sistema parlamentar composto por supostos descendentes de confucionistas (Ming, 2010). As propostas dos autores neoconfucionistas diferem umas das outras e não constituem um corpo sólido e coerente.

Como veremos, neste estado de coisas, o desenvolvimento do Pensamento Xi Jinping oferece um caminho particular no qual ele evita a imitação de modelos políticos ocidentais (liberalismo) e revisa a tradição de um ponto de vista pragmático e moderno. A tradição particular do pensamento marxista chinês aparece como um filtro que peneira através dessas correntes para desenvolver um produto de pensamento inovador.

IV. O Pensamento Xi Jinping como Síntese – Tradição e Modernidade

O Pensamento Xi Jinping é o resultado, no campo do discurso político, da síntese entre o pensamento tradicional chinês (especialmente o confucionista) e a modernidade representada pelo marxismo. Isto se reflete em vários documentos, sendo os mais relevantes os vários discursos feitos no XVIIIº Congresso do PCCh (2012) e o Relatório do XIXº Congresso do PCCh (2017), além disso, muitos de seus discursos são compilados na antologia Xi Jinping; A Governança da China, publicada em 2014.

Como já mencionamos, a definição atual do sistema político chinês é a de “socialismo com características chinesas”. De acordo com os documentos mencionados acima, a China é considerada como estando na primeira fase do socialismo, ou seja, o período de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista, e como tal, dado que o poder está concentrado nas mãos do PCCh, a tarefa principal é o desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, a visão de Xi Jinping a este respeito é clara; o partido deve manter as rédeas da economia e, como ele afirma:

“Todo o partido deve fortalecer mais consistentemente sua convicção no caminho, na teoria, no sistema e na cultura [doravante as “quatro convicções”] e não seguir nem o velho caminho da clausura e da estultificação, nem o mau caminho da troca de sua bandeira por outra, mas manter a força na política” (Jinping, 2017).

As fases de desenvolvimento da China parecem ser abordadas de um ponto de vista flexível, adaptado a cada situação histórica específica. A posição do partido é que entre 2020 e 2035 o processo de construção de uma “sociedade modestamente próspera” culminará, e entre 2035 e 2050 (com o centenário do PCCh chegando ao poder) o partido aumentará sua influência, posicionando a China como uma potência chave no cenário internacional. Jiang Shigong, um dos expoentes mais relevantes da “Nova Esquerda” chinesa, explica que as peculiaridades do modo chinês, sua heterodoxia, derivam da necessidade de:

“Resolver a tensão entre a verdade filosófica e a prática histórica, para unir a verdade filosófica universal do marxismo com a realidade histórica concreta da vida política chinesa” (Shigong, 2018).

Poder-se-ia argumentar que a interpretação de Jiang Shigong do Relatório do XIXº Congresso não passa de propaganda, mas se prestamos atenção nos discursos de Xi Jinping este não parece ser o caso. Pelo contrário, o novo período aberto por sua chegada como Secretário Geral coincide com uma nova ênfase no estudo do marxismo, não apenas no campo da teoria, mas também no campo da prática. A linha de massas do período maoísta tem sido objeto de interesse renovado desde 2012 (seguindo a nova liderança após o XVIIIº Congresso) e implementada institucionalmente através de cursos de treinamento para quadros do partido ou da publicação de diretrizes (Oito Diretrizes Relativas à Conexão com as Massas e Reformar os Métodos de Trabalho) pelo Politburo (Shaoguang, 2019). Esta linha de trabalho envolve a aproximação dos quadros do partido à realidade social chinesa através de sucessivas pesquisas sociais centradas no trabalho de campo com um duplo objetivo: compilar e sistematizar os problemas da realidade chinesa e implementar estas transformações com a participação da população.

As atividades do partido também receberam mais atenção na mídia do que em períodos anteriores. O “índice Baidu” é um indicador que mede o nível de atenção da mídia dada a certas palavras-chave durante um determinado período de tempo. Houve um aumento na atenção, tanto da própria mídia quanto dos usuários, ao termo “linha de massas”, especialmente desde 2013 (Shaoguang, 2019).

O marxismo, de raiz maoísta e adaptado à realidade da China, continua atuando como o principal guia teórico do partido e se reflete no Pensamento Xi Jinping. Em seu discurso de 17 de novembro de 2012 (Estudar, Divulgar e Implementar os Princípios Orientadores do XVIIIº Congresso Nacional do PCCh) Xi Jinping postula que os ideais do comunismo são o núcleo desta instituição e que com a falta disso o partido sofreria de uma doença grave:

“Figurativamente falando, os ideais e convicções dos comunistas são a chave de sua fé. Sem ideais, ou com ideais e convicções fracas, eles não teriam medula e sofreriam de falta de caráter” (Jinping, 2014: 40).

Deste ponto de vista, o comunismo é antes uma ideia-força, um guia, em um sentido ético, para cada membro do partido. Para Jiang Shigong (2018), esta ética partidária se liga ao ditado tradicional chinês “aqueles que não esquecem sua intenção original prevalecerão”, transferindo o ideal comunista da tradição ocidental para a filosofia tradicional chinesa uma vez que, como é evidente no Pensamento Xi Jinping, somente fundindo a cultura chinesa e o sistema filosófico marxista é que este último pode triunfar (Shigong, 2018).

Chegamos a um dos pontos mais inovadores do Pensamento Xi Jinping. O objetivo é manter as intenções originais do partido enquanto busca a felicidade do povo e a “renovação da nação chinesa”, que Xi chamou de “o sonho chinês”. Em teoria, isso envolve delinear dois princípios complementares que se misturam sem se dissolverem um no outro; o comunismo só pode ser alcançado e implementado através da cultura chinesa, e somente o comunismo pode realizar os valores mais positivos da cultura chinesa. Dois princípios, comunismo e nação, que não são vistos de forma dogmática ou antagônica, pois no caso de Xi, a nação não é uma essência, mas uma tradição em constante mudança que, como tantas vezes em seu passado, precisa ser renovada, nas palavras de Xi Jinping:

“Devemos contar ao resto do mundo sobre as conquistas da cultura moderna chinesa que se caracteriza por uma excelente tradição e um espírito moderno, tanto nacional como internacionalmente” (Jinping, 2014: 193).

Isto é interpretado por Jiang Shigong da seguinte forma:

“É precisamente por causa da fé nos ideais do comunismo que o grande renascimento da nação chinesa não significa de forma alguma um retorno ao passado chinês, sendo, ao invés disso, a renovação de um país antigo” (Shigong, 2018).

Desta forma, o Pensamento Xi Jinping toma como base elementos do confucionismo, mas se desvia do neoconfucionismo mais reacionário, na medida em que não aspira a voltar atrás no tempo, mas a modernizar o país, tomando como base a tradição do pensamento marxista e complementando-a com os valores e o pensamento tradicional chinês, explorando os vários pontos em comum entre as duas tradições. O renascimento da nação chinesa não é entendido de um ponto de vista étnico que leva em conta apenas o grupo étnico majoritário (Han), mas pretende reunir e liderar todo o povo chinês, “de todos os grupos étnicos” (Jinping, 2014:41), em um conjunto comum de objetivos.

Com relação às noções básicas do marxismo, como “luta de classes”, elas estão reconhecidamente ausentes do discurso. Embora o termo “luta” apareça 23 vezes no Relatório ao XIXº Congresso, geralmente é entendido num sentido metafórico, como uma luta pelo progresso ou a luta contra a corrupção, um dos principais objetivos do governo de Xi. Entretanto, não se ignora que existe uma luta de classes na sociedade chinesa de hoje, uma vez que, como enfatizado na Constituição do Partido Comunista Chinês (revisada pela última vez em 27 de outubro de 2017), ela “persistirá por muito tempo em certas áreas”, mas “não é mais a principal contradição”. Em vez disso, a principal contradição será “entre a crescente demanda do povo por uma vida melhor e um desenvolvimento desequilibrado e insuficiente”.

A encarnação da questão das classes sociais no reino discursivo está mais uma vez em consonância com a tradição de pensamento confucionista. Jiang Shigong argumenta que o dualismo filosófico, que opõe dois termos antagônicos (sujeito/objeto ou senhor/escravo), é difícil de entender na China. Assim, o pensamento confucionista fala da “unidade do céu e do homem” como uma harmonia (um termo amplamente usado no discurso) e um dos livros canônicos da cultura chinesa é o Livro das Mudanças que explica como o mundo se move através das contradições entre o antigo e o novo; mais uma vez, a visão materialista da história e o pensamento tradicional chinês se complementam de uma forma peculiar. A partir do pensamento confucionista, a forma correta de se chegar à solução de uma contradição é encontrada na Doutrina do Caminho do Meio (zhōng yōng) ou no “termo médio” confucionista que se afasta dos opostos polares para encontrar um “caminho reto”. Assim, o discurso oficial não ignora o fato de que existem contradições dentro da sociedade chinesa, mas como o CPC é o órgão governante da política, espera-se que a reforma ajude a superar as contradições em um processo gradual de transformação.

O Pensamento Xi Jinping também difere da tradição marxista clássica em termos de projeção internacional da China. Em outras palavras, ele retoma a noção tradicional de “tianxia” (“tudo sob o céu”), cujas origens podem ser traçadas até a dinastia Zhou. Tianxia refere-se a um sistema político que não está confinado aos Estados, mas é universal no seu escopo. O termo também foi usado por Sun Yat Sen sob o slogan “Tianxia wei gong” (o mundo é para todos) e foi recentemente reinterpretado pelo filósofo chinês Zhao Tingyang.

A China pretende exercer influência no mundo, evitando a substituição violenta de uma potência hegemônica por outra e estabelecendo um sistema internacional superior, de uma ordem diferente. No discurso oficial da China de Xi Jinping, várias alusões literais são feitas à noção de “soft power”, cunhada por Joseph Nye em 1990, que consiste no exercício de influência geopolítica através da disseminação de um certo modelo político, econômico e cultural, neste caso o da China (Jinping, 2014:192).

Em outras palavras, é a velha idéia da Sun-Tzu de que a melhor vitória é aquela em que o inimigo é subjugado sem ter que se envolver em batalha.

Neste ponto, o Pensamento Xi Jinping aparentemente se afasta do marxismo; embora admitindo que os conflitos entre Estados são uma realidade, ele tenta encontrar soluções pacíficas que representam um meio termo entre a mansidão e o conflito aberto, pelo menos dado o atual equilíbrio de poder. Também aqui trata-se de um afastamento da política internacional iniciada sob Deng Xiaoping, que se concentrava em manter um perfil discreto nas relações internacionais. A China, por outro lado, está tentando exercer uma grande influência internacional, mas abandonando os antigos métodos que tinham sido característicos da Terceira Internacional ou da Kominform. Mais uma vez, vemos como a ideia de harmonia é central, tanto em termos da luta de classes quanto da luta dos Estados.

Nas próprias palavras de Xi: “A China se levantou. Ela nunca mais tolerará abusos por parte de nenhuma nação. Nem seguirá as pegadas das grandes superpotências, que buscam hegemonia uma vez que se fortalecem. Nosso país segue um caminho de desenvolvimento pacífico” (Jinping, 2014:202).

Neste ponto, podemos identificar que a doutrina oficial do PCCh está revestida de uma aspiração harmonizadora com respeito à luta de classes em nível nacional e de um certo cosmopolitismo em nível internacional. Desde a era maoísta, ela tem visto o povo como uma unidade composta por partes (classes sociais) que apresentam contradições secundárias, superáveis através de reformas, aspecto que, como vimos, está presente em outros líderes como Hu Jintao e também está subjacente à tradição intelectual chinesa.

Internacionalmente, o mundo é visto como uma “comunidade com um destino compartilhado” (Jinping, 2014:284) na qual cada civilização contribui, com suas luzes e sombras, para uma obra comum. Por sua vez, e apesar de não ser claramente declarado, esta linha geopolítica tem semelhanças com a já delineada por líderes como Stálin, focalizada em preservar as conquistas da revolução a todo custo para evitar conflitos diretos, com o objetivo de construir o socialismo em um único país.

As aspirações universalistas da China contrastam com a retirada da administração Trump da política de liderança global que os presidentes americanos haviam projetado desde a Doutrina Truman e, exceto no interlúdio das administrações de Gerald Ford e Jimmy Carter, posteriormente. Em vez disso, a República Popular da China vende uma imagem altamente focada em enfatizar aspectos como desenvolvimento econômico, respeito à ordem internacional e a difusão de sua cultura milenar – em outras palavras, evita se apresentar como uma ameaça.

Naturalmente, o Pensamento Xi Jinping estabelece como novos objetivos nesta etapa de desenvolvimento uma série de pontos relacionados à reforma política, ao sistema judicial, à luta contra a corrupção e à questão ecológica. Do ponto de vista do PCCh, é essencial concentrar seus esforços na solução dos problemas do presente, pois esta é a única maneira de manter seu prestígio aos olhos da sociedade chinesa, sociedade para a qual prevalece o princípio do mérito sobre o da eleição: desde o processo de seleção para integrar o partido até os órgãos mais altos da administração. Também aqui, a China está mais uma vez reproduzindo o antigo sistema de exame imperial baseado na tradição confuciana.

V. Conclusões

No geral, há muito mais elementos do pensamento tradicional chinês no discurso oficial da República Popular da China. Assim como para Mêncio, que acreditava que o governante encontrava sua legitimidade no consentimento de seus súditos, para o Partido Comunista Chinês a base de sua legitimidade está em se manter como uma instituição eficaz, que resolve os problemas do presente no interesse do povo chinês. Determinar se a estratégia do Partido Comunista Chinês tem como objetivo estabelecer um modo de produção comunista não é uma tarefa simples. Se recorrermos aos Estatutos do PCCh, descobriremos que ele tem “como ideal supremo e objetivo final a materialização do comunismo”, mas esta é uma resposta fácil que deve ser contrastada com a análise da política concreta do governo chinês nas condições do atual desenvolvimento do capitalismo, tanto nacional como internacional.

As construções teóricas encontram sua validade em sua adaptação à realidade prática, especialmente no campo da política. No pensamento marxista, estas projeções tomaram a forma de novas formas de governo e instituições, mudanças nas relações de produção e até mesmo transformações culturais de longo alcance. A construção de um Estado socialista não é a simples tradução da teoria em prática e está sujeita a inúmeras condições objetivas, com o resultado de que cada Estado socialista é uma forma particular e irrepetível de desenvolvimento histórico. É necessário olhar para a China, seja para fazer uma crítica ou para tomar um exemplo. A posição a ser adotada pelos marxistas espanhóis não deve ser uma posição de sinofilia sem reservas, mas também não deve ser uma posição de crítica cega. Para muitos, a posição do Partido Comunista Chinês representa uma clara restauração capitalista através da manutenção do capitalismo de Estado e, para outros, significa a adoção de um caminho peculiar para o comunismo. Não é possível dizer se a China está ou não caminhando para o comunismo (seria absurdo colocá-lo nesses termos) mas, em qualquer caso, podemos dizer que na China a visão materialista da história está realizando um trabalho de renovação crítica do pensamento tradicional chinês, atuando como um guia teórico-prático para uma nação que contém 1.393 milhões de habitantes.

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  • Sobre la triple representatividad, importante aporte teórico del camarada Jiang Zemin. (29 de septiembre de 2017). Recuperado de: http://manosfueradechina.blogspot.com/2017/09/sobre-la-triple-representatividad.html
  • Xu Youyu (2003) The Debates Between Liberalism and the New Left in China Since the 1990s, Contemporary Chinese Thought, 34:3, 6-17, Doi: 10.2753/CSP1097-146734036

Fonte: La Razón Comunista

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Rodrigo Cueto García
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