O que é viver? Quem – ou o quê – vive? Para a ideologia pós-moderna, o que vale é sobreviver, como prisioneiros de um campo de concentração temendo a morte, dando tudo e tornando-se qualquer coisa para sobreviver. A pandemia nos coloca diante do mesmo dilema: Viver ou sobreviver? Alexander Dugin nos atira diante da cruel dúvida: vale a pena ser simplesmente uma “vida nua”?
A sobrevivência é o conceito mais importante para Spinoza. Para ele, sobreviver está associado à duração e vida, como a habilidade de preservar a própria identidade por um dado período; habilidade = força. Para Deleuze, ecoando Nietzsche, força = vida; sobreviver é persistir em durabilidade, perseverar. A vontade de durar. O sobrevivencialismo é um estilo de vida focado em uma única missão – sobreviver, que quer dizer, vida pela própria vida, força pela própria força.
Agamben, ao analisar o conceito schmittiano de “estado de exceção” (Ernstfall), chega ao conceito de vida nua. Este é objeto sobre o qual a dominação completa é estabelecida pela vontade de poder absoluta, que atingiu a máxima pureza de sua soberania. Agamben vê um exemplo primaz disso na população dos campos de concentração. Lá, todos perseguem o mesmo objetivo – sobreviver. Isso é a vida nua – sem ambições verticais, completamente sobrepujadas pelo cristal da soberania. Vida pela própria vida, viver para viver, durar com o objetivo de durar. Isso é tudo? Sim.
Mas aqui está o mais interessante: A vida nua – em um campo de concentração? Mais suave. Em um estado totalitário? Ainda mais suave. Em qualquer sociedade – é pura duração. Mas o que deve durar? Se a vida não fosse “nua”, então essa vontade seria coberta com vestes e máscaras de valor – serei isto e aquilo, viverei por isto e aqui, farei isto e aquilo… Mas quando estamos em Mauthausen ou numa GULAG (ou Abu Ghraib, Guantanamo), valores são abolidos, laços são quebrados, pessoas são apagadas; não há mais vida. Há apenas uma vida em si com oportunidades diárias de perdê-la. Não há uma pessoa que viva diante da morte, pois a pessoa não está mais ali. Há apenas vida nua, como algo – não um “homem” – que só quer sobreviver.
Neste caso, a vida busca por maneiras de persistir, a pessoa não toma mais decisões; nada mais depende dela. Aqui está o mais importante: e se você tivesse de mudar, para sobreviver? Deixar de ser você, tornar-se uma pessoa diferente ou pessoa nenhuma. Para o conceito clássico de identidade, isso equivale à própria morte – morrer como “Eu” significa deixar de viver como pessoa, como alguém. Mas para a “vida nua”, esse não é o caso. O que importa não é quem vive, mas viver ou não viver – e não é mais importante quem vive ou como vive. Se a essência de viver é sobreviver, então o estado ontológico do sujeito – do homem – é de estratégias para sobreviver.
Para sobreviver, a vida nua será capaz de abandonar a velha identidade humana e rastejar como uma cobra.
Por isso, Spinoza é valiosíssimo para os pós-modernos – sua metafísica naturalista não abre a modernidade, mas a fecha, porque deliberadamente designa o horizonte de mutações pós-humanas.
A teoria da evolução é o de uma “vida nua”. Adaptação, seleção natural e mutação de espécie são exemplos dessa dinâmica. Para escapar ou simplesmente adquirir maior conforto, o peixe está pronto para deixar de ser um peixe, rastejar até a margem e tornar-se um lagarto. O pássaro está pronto para se afogar e tornar-se um polvo, e o macaco pode escolher ferramentas, o riso e o risco, para tornar-se humano, ou talvez não. Essa é a arbitrariedade da “vida nua”. É pura e simples lógica da duração.
Não há nada mais desumano que a sobrevivência.
Assim que nos viramos para esse argumento, não estamos mais acostumados ao ser, ao menos não humanos, não mais… Nós imediatamente desaparecemos enquanto pessoas, nos tornando meros portadores de “vida nua”. Uma pessoa de verdade, mesmo num campo de concentração e na mais crítica situação, é capaz de escolher entre a vida e a morte – a vida ou morte de si como pessoa. A vida nua já fez essa escolha. Viver por viver, a qualquer – QUALQUER – preço. E é desejável viver bem, mas viver como quem o que se pode ser, com apenas uma condição, viver.
Com a pandemia, vacinações, controle médico e policial total, vigilância eletrônica onipresente e o armazenamento de toda informação sobre nós em centros de informação unificados, adentramos a prisão translúcida da “vida nua” (panóptico de Michel Foucault/Jeremy Bentham). Isso quer dizer que neste momento – nesta situação radical e severa – nós ainda possuímos escolha – de ser ou não ser alguém, ser ou não ser humano.
Assim que escolhemos apenas sobreviver, estamos acabados. Não simplesmente porque alguém irá governar sobre nós – já estamos sendo governados por alguém que comanda e nos humilha – até pelo simples fato de grandeza ou superioridade de poder. Mas se vivermos, podemos lutar e defender nosso ser como ser uma pessoa, um humano, um homem. Qualquer resistência é um risco, mas viver é viver em risco.
Ser humano é um risco terrível. Escolher uma vida nua libera essa tensão.
Fonte: Katehon
Tradução: Augusto Fleck