Por Juan Manuel de Prada
A filosofia quixotesca se resume em lutar contra o espírito de nossa época, ainda que sem esperança de vitória.
Antes de derrubar Dom Quixote sobre a areia da praia de Barcelona, o bacharel Sansão Carrasco (disfarçado à ocasião de Cavaleiro da Branca Lua) determina expressamente as regras do desafio. Se Dom Quixote for vencido, terá que retirar-se para sua aldeia durante um ano; mas antes terá que declarar que Dulcineia de Toboso não é a dama mais bonita do mundo. Fazendo-o abjurar da dama de seus pensamentos, Sansão Carrasco pretende, em realidade, que a retirada de Dom Quixote seja definitiva; pois um cavaleiro que desiste de sua causa se transforma num homem sem missão.
Mas, quando derrubado e à mercê de seu vencedor, com a lança apontada para sua garganta, Dom Quixote, “como se falasse de dentro de uma tumba, com a voz debilitada e enferma”, se nega a renegar sua amada: “Dulcineia de Toboso é a mulher mais bela do mundo – afirma -, e eu o mais desgraçado cavaleiro da terra, e não é correto que minha fraqueza conteste essa verdade. “Empurre, cavaleiro, a lança, e acabe com isso, pois já me desonrou”. Dom Quixote se entregou a Dulcineia sem condições, sem pedir nada em troca, sem exigir em troca de sua lealdade que Dulcineia lhe corresponda. Por que deveria depender, pois, a grandeza de Dulcineia, da fraqueza de seu braço? Não é a força de Dom Quixote que determinou que Dulcineia é a mulher mais bela do mundo, a opinião volúvel dos homens não muda a essência da verdade. A lealdade de Dom Quixote a Dulcineia não mudou nem mesmo quando a viu transformada numa fazendeira sem classe; assim, tampouco mudará quando a lança do Cavaleiro da Branca Lua lhe aperta a garganta. E é tão bela a determinação de Dom Quixote que até o malvado Sansão Carrasco se rende: “Viva, viva em sua totalidade a fama da beleza da dama Dulcineia de Toboso, que já me dou por contente se o grande Dom Quixote se retire para seu lugar por um ano.”
Unamuno afirmava com razão que essa cena resume a filosofia quixotesca. Não importa se, lutando em defesa da verdade, somos derrotados e humilhados; não importa que nosso eu caduco seja vencido, porque a verdade, onde vive nosso eu eterno, não pode ser vencida. E ocorre o paradoxo de que, através de nossa derrota, essa verdade resplandece com maior intensidade. Dom Quixote se lança a todos os empreendimentos sem importar-se com a derrota, sabe aceitar serenamente o fracasso porque está plenamente convencido da verdade que defende. Não possui outra aspiração além de atuar como valedor dessa verdade, por isso não admite negociá-la, não tem precauções e não faz cálculos, não hesita e não recua. Mesmo sabendo que essa verdade será atacada por todos os canalhas, mesmo sabendo que por sustentá-la contra o vento e a maré será vilipendiado e escarnecido, não está disposto a renegar sua defesa; porque a adesão a essa verdade que aninhou-se em seu eu eterno o despojou do amor próprio e dos temores humanos. Quem é guiado pelo amor próprio e pelos temores humanos acaba urdindo meias verdades, acaba temendo mais sua própria sorte – o rechaço de seus contemporâneos, a perda de prestígio, etc. – que o obscurecimento dessa verdade que ilumina os dias.
A filosofia quixotesca se resume em lutar contra o espírito de nossa época, ainda que sem esperança de vitória. E para isso temos que estar dispostos a levar muitos golpes e fazer papel de ridículo, não só diante dos homens moldados pela mentalidade da época, mas inclusive diante de nós mesmos. Unamuno afirma de maneira muito acertada que essa filosofia quixotesca é “filha da loucura da cruz”, onde, de fato, Cristo se expõem ao ridículo, não somente diante dos carrascos que o escarnecem, pedindo, em meio à gargalhadas, que desça da cruz, mas diante de si mesmo, que poderia ter atendido a esse pedido se apenas “recuperasse a razão”; isso é, desprendendo-se da natureza mortal que o mantém preso na cruz. Também Dom Quixote poderia ter evitado muitos problemas e aflições se apenas “recuperasse a razão”: pois, como muitas vezes percebemos ao longo da novela, é um homem que pondera de maneira muito sutil e prudente e, portanto, poderia ter feito planos para escapar dos perigos e tramoias, sem renegar plenamente de sua verdade, aceitando tão somente encobri-la com diversos subterfúgios. Mas não o faz. E, sendo vencido, Dom Quixote vence misteriosamente; transformando-se em motivo de riso para seus detratores, triunfa sobre eles.
É uma lição moral extraordinária, mas é preciso um valor heroico para assumi-la. Façamos à semelhança de Dom Quixote, ainda que com uma lança apontada para nossa garganta, mesmo que tenhamos de retornar derrotados para a aldeia.