Desde os anos 60 o gênero Horror fez seu nome no cinema e até os dias atuais carrega elementos valiosos para a análise dissidente que foram praticamente esquecidos com a crítica mainstream. O texto a seguir é um esboço a fim de contribuir com uma nova crítica e desfazer os clichês linguísticos da mídia.
Em muitas ocasiões nos perguntamos o que a cultura do cinema mainstream pode nos fornecer, visto que a mesma se levanta como uma forma de propaganda, geralmente nos meios de Hollywood. Não é novidade que a crítica, seja ela literária ou cinematográfica, já está toda tomada pelos nichos liberais há muitas décadas. Não apenas em filmes onde a propaganda é explícita, mas com obras de imenso valor que a crítica faz questão de transformar em ponta de lança dos valores ocidentais. É importante termos em mente que o domínio da linguagem nos dias atuais está em disputa de maneira mais feroz que na antiga sociedade europeia. A questão é bem simples: transmutar a análise linguística hegemônica e implementar uma leitura dissidente para que a cultura seja nivelada e, por fim, transfigurada a uma compreensão mais elevada.
Logo na virada do século, o mundo do cinema se deparou com a decadência dos filmes de Horror Slasher, tanto este como o subgênero Found Footage, formam uma pequena mina onde podemos extrair muitas riquezas sem cair nos paradigmas da Modernidade. Em linhas gerais, a concepção do filme slasher está em uma moldura muito simples: jovens da cidade que se perdem na floresta, lugares isolados que guardam alguma peculiaridade obscura, famílias locais e um assassino que busca exterminar os jovens a qualquer custo. Há uma certa riqueza no subgênero que nos dá um repleto cardápio de vários ambientes e paradigmas, mas o quadro geral dos filmes é esse. E neles, há uma certa mensagem de cunho liberal nas entrelinhas que podemos dividir em duas categorias:
1) um desprezo à ideia de Tradição, colocando as regiões do interior como último refúgio de preservação da mesma;
2) a concepção de um obscurantismo puritano em destaque na figura do antagonista contra o espírito cosmopolita e livre dos protagonistas.
Um ponto de partida recomendado ao assunto é conectar nossa ideia de “interior” e “floresta” à compreensão de H.D. Thoreau e Ernst Jünger. A floresta ou o campo não como uma mera paisagem que nos encanta com sua paz e visão sublime, mas como um refúgio, um retorno às reflexões mais elementares da vida humana e um maior aprofundamento na Tradição — isto é, assim como as definições análogas da iniciação, os elementos da Tradição se tornam mais fortes e complexos conforme a floresta se fecha. É isso a que estamos nos referindo à vida no campo, sempre fugindo de qualquer romantismo bucólico.
É quase obrigatório que muitos filmes de horror slasher coloquem a zona rural coberta por uma aura misteriosa onde reside o mal, locais isolados onde o progresso ainda não tomou em seus domínios; isso tanto para o local como para os habitantes que ali residem. Por outro lado, tendo em vista essa concepção quase lovecraftiana do campo, temos os protagonistas que, no geral, são pessoas jovens que ignoram algum aviso de pessoas mais velhas e decidem entrar em um mundo desconhecido para se aventurar; cosmopolitas com um semblante de zombaria, heróis do hedonismo, homens livres do mundo globalizado ou repórteres buscando levar as peculiaridades de um mundo esquecido às pessoas ditas civilizadas. Este é o outro lado do tabuleiro.
Note que esse choque cultural é uma das características mais marcantes em todos os enredos, seja em filmes (The Blair Witch Project, Wrong Turn, Friday the 13th, Die Präsenz, The Texas Chain Saw Massacre, Evil Dead), seja em jogos (Resident Evil 4, Outlast 2, Until Dawn, Obscure 2, Mizzurna Falls), e sempre está explícito que as regiões em questão possuem uma atmosfera obscura e arcaica, o império dos ritos excêntricos e irracionais. É muito comum notar em nossas dublagens a forma como os protagonistas se espantam com os lugares desconhecidos e julgam os habitantes locais como “caipiras”. Nada de anormal, é apenas o novo mundo entrando em contato com o velho, onde muitos elementos de uma antiga ordem ainda permanecem, de certa forma, ativos. Não à toa os antagonistas são preconcebidos como pessoas sujas, de higiene escassa, deformados, canibais, analfabetos, agressivos, animalescos, entre outras características bizarras ou rituais tabus.
É claro que esse estranhamento leva qualquer um a pensar em como nossas vidas são boas dentro de uma cidade com mais de cem mil pessoas, sendo vigiados a cada instante, roubados por usurários e especuladores e entrando em colapso mental com a poluição e o lixo tóxico produzido pela sociedade civil amplamente dominada pela força das corporações. Com toda certeza é preferível isso a uma vida “no meio do nada” com meia-dúzia de pessoas dentro de uma cabana e rodeado por árvores e animais. Qual a necessidade de preservar o solo, as riquezas familiares, a tradição e os costumes locais se possuímos Starbucks, hamburguerias, pubs e celulares que podem nos mostrar um maravilhoso mundo através de nossas telas enquanto relaxamos no ar-condicionado ao conforto de uma poltrona em uma sala fechada de um apartamento? Toda rejeição da vida no campo se resume em deformá-la através da nossa alienação com os ideais de igualdade, progresso, tolerância e aceitação, demonizando quem está fora disso e rejeita o admirável mundo globalizado.
Uma das grandes características das florestas é o silêncio, a contemplação; algo de suma importância para a formação do homem integral. No entanto, isso também é uma das coisas demonizadas pela mentalidade cosmopolita. O isolamento e a solidão, tão essenciais para uma vida contemplativa, é barrado pelas pessoas que não conseguem nem conviver consigo mesmo. A pandemia do COVID-19 e a situação de quarentena provou o quão frágil é a estrutura psicológica do homem moderno perante a qualquer situação onde ele descobre as coisas como realmente são.
O homem moderno odeia a solidão porque odeia a si mesmo, geralmente pela concepção de que sua própria personalidade é formação externa a ele mesmo (opinião alheia, status). E o que preenche esse sentimento de solidão? No mundo moderno, é a carência que toma o lugar das formas mais puras de companheirismo e amor. Sem dúvidas é um problema bem grande o fato de que maior parte da população se sente vazio e deprimido na natureza enquanto aspira sua liberdade dentro de um apartamento na cidade. Toda organicidade do homem foi trocada pelo modo de vida artificial do novo homem iluminista.
Agora chegamos ao ponto crucial da análise, onde finalmente conseguimos enxergar com facilidade os símbolos que norteiam as tramas dos filmes slasher. Afinal, o que representaria os canibais deformados de Wrong Turn senão os medos da civilização cosmopolita que explicamos acima? Para o homem desenraizado é importante que qualquer coisa que esteja além de suas redes de fastfoods seja disforme e horripilante, por isso as coisas mais elementares da vida humana são, para ele, a pura definição de eventos traumáticos.
No conto “O Modelo de Pickman” de H.P. Lovecraft, as imagens horrendas de Pickman estavam ali como a mais pura representação do mundo moderno e seu colapso, relacionado ao que é mais feio, absurdo e inconcebível. Nos filmes de Terror essa imagem da feiura se torna a Tradição, uma inversão de como as coisas funcionam.
Observando tal cenário, é muito simples conceber a linguagem dos filmes de Horror como símbolos metapolíticos, apesar de que colocar isso na prática é algo bem trabalhoso. Já que estamos tratando de algo moderno a fim de simbolizar o próprio mundo moderno, é de grande valia que nossas análises sejam feitas aceitando parte das premissas e moldando a linguagem de acordo com uma leitura mais lúcida.
Sim, realmente, dá para aceitarmos que a visão do mundo da Tradição a partir de monstros e assassinos é verdadeira; como disse acima, a Tradição assusta quem está totalmente dominado pelo espírito verborrágico, por uma existência sem sentido e um mundo em que o niilismo é a filosofia dominante por trás das lutas sociais. De fato, a floresta faz parte da Tradição, e com ela vem os seus elementos mais nítidos: a aversão irracional à Modernidade, a destruição de qualquer resquício cosmopolita e a rejeição de quaisquer princípios liberais que julgam ter o direito de firmar sua supremacia.
É muito comum vermos o estereótipo de filmes de Terror: jovens se perdem na floresta e são perseguidos por um velho. O espírito aventureiro da juventude ignorante contra a sabedoria em anos acumulados, a floresta engolindo a cidade, os ritos destruindo a usura, o machado quebrando o celular e o absoluto dominando o relativo. Muitos filmes da atualidade, especialmente dentro do subgênero Found Footage vêm colocando jovens youtubers em seus enredos para que possam morrer em contato com algo desconhecido (seja um assassino, monstro ou até um sasquatch!); é um tanto curioso como isso encaixa muito bem no que acabei de dizer: a imagem do jovem moderno consumista, soberbo e debochado demonstra como a Tradição é implacável em eliminá-lo de seus domínios. Em suma: é o jovem da cidade que mexe com o que não deve ou não conhece e acaba se dando mal. O legítimo final feliz!
A chave para compreendermos as obras do Horror no cinema é exatamente a análise oposta, encaixando as analogias e símbolo com a matriz do pensamento dissidente aos detalhes das filmagens que chegam até nós. Quem domina a linguagem domina tudo, e já passou da hora de tomar a linguagem como uma das principais armas políticas no que diz respeito à mídia, buscando ampliar a crítica ao pensamento profundo de que realmente deve fazer parte. Só assim o que é profundo continuará vivo sem perder sua verdadeira essência.
Ótima reflexão. E gostaria de chamar atenção para o seguinte trecho que bem poderia render um longo parêntese.
[“A floresta ou o campo não como uma mera paisagem que nos encanta com sua paz e visão sublime, mas como um refúgio, um retorno às reflexões mais elementares da vida humana e um maior aprofundamento na Tradição — isto é, assim como as definições análogas da iniciação, os elementos da Tradição se tornam mais fortes e complexos conforme a floresta se fecha. É A ISSO A QUE ESTAMOS NOS REFEREINDO à VIDA NO CAMPO, SEMPRE FUGINDO DE QUALQUER ROMANTISMO BUCÓLICO.”]
Vejamos que interessante. Na realidade, o que nos referimos como ‘campo’ é o ambiente antes florestal domado pela agricultura e pecuária, as “fazendas”. E o romantismo bucólico é o campo organizado, civilizado, que nos remete ao período medieval, pré-industrial.
O campo é, então, um meio termo entre a cidade e a floresta, e a relação entre a civilização campestre e a floresta já é repleta de simbolismos, inclusive dessa ameaça de “caos” pré-civilizacional. A totalidade dos contos de fadas e “cautionary tales” catalogados pelos irmãos Grimm se dão nessa relação entre o ambiente rural civilizado e o ambiente selvagem florestal.
Assim. a relação Cidade X Floresta, ao escamotear o Campo, é ainda mais contrastante, pois ao menos os campestres estão mais próximos da floresta, que lhe é menos estranha que para os urbanos.