Esquecido e execrado por uma postura ideológica da Grande Mãe, o bandeirante é o arquétipo civilizatório brasileiro por excelência, mais do que nunca necessário para resgatar nossa identidade.
Em continuação aos últimos textos que refletem sobre a supervalorização do arquétipo da mãe que se sacrifica pelos seus filhos, que contagia toda a mídia e os debates sobre o papel do Estado, elaboro este para tratar de uma figura histórica que, lamentavelmente, vem sendo pintada como a grande vilã da nossa história. No entanto, vejo justamente nessa figura o potencial paterno que o Brasil precisa para contrapor o constante lamúrio feminil maternal que vemos na mídia, quando exibe imagens de mães de criminosos chorando com camisetas de saudade; notícias atrás de notícias sobre mulheres em posição de vítima; e o quanto o Estado precisa adotar uma postura maternal de abraçar todos sem distinção e acreditar na recuperação de criminosos, como uma mãe que acredita que o filho criminoso se enjeitará algum dia.
Lembro-me que ano passado assisti a uma peça teatral no bairro do Bixiga que era um monólogo da pintora Tarsila do Amaral. Não era ruim, havia uma argumentação com algum sentido, mas era um sentido extremamente lunar e maternal, o mesmo que devemos superar. Havia um trecho da peça em que projetavam imagens de queimadas numa parede enquanto a atriz discursava ferozmente contra a racionalidade europeia e masculina, com suas colunas e formas geométricas, que queima as florestas e comete matanças, que quer desbravar tudo pelo seu caminho e criar civilização. Ou seja, era um ataque bastante franco à própria ideia da paternidade solar, da qual tanto precisamos na psique brasileira hoje.
A figura histórica à qual essa peça teatral provavelmente se referia era o bandeirante, que assume valores super masculinos e severos que serviriam como um contraponto interessante à ginecocracia do discurso progressista esquerdoide que pretende tirar qualquer racionalidade mais severa do papel do Estado.
Como fundamento a isso, cito uma autora mulher: Valentine de Saint-Point. Ela escreveu no começo do século XX o “Manifesto da Mulher Futurista”, inclusive para rebater a ideia de “desprezo pela mulher” do Marinetti em seu Manifesto Futurista. Mas, curiosamente, Valentine de Saint-Point descreve uma modernidade contaminada e paralisada por uma imagem de uma mulher delicada uma mãe super-protetora. Em vez disso, ela deseja uma mulher que apoia os anseios guerreiros e heroicos de seus homens e filhos. Mulheres ferozes! E como uma maneira de contrabalancear a supervalorização da fragilidade feminina e seus vícios maternais, ela propõe uma masculinização da sociedade, ainda que fale do ponto de vista da mulher.
Dessa forma, de modo a contrapor a supervalorização dessa feminilidade maternal que vemos no discurso político, artístico e midiático hoje, o bandeirante se apresenta como uma figura hiper-masculina, em todas suas virtudes e defeitos, que não só condiz com nossa formação cultural, mas também servirá como ponto de partida.
O bandeirante é descrito em diversas obras, tanto históricas quanto literárias, como um tipo de homem muito rústico e bruto, produto de sua era em que as guerras e conflitos eram a rotina. Em “Opera dos Mortos”, de Autran Dourado, recordo-me que ao início da obra há uma descrição de patriarcas de uma família que herdaram traços bandeirantes, ou seja, eram homens muito carrancudos, fechados e brutos. Em outra obra clássica, “Bandeirantes e Pioneiros”, Vianna Moog faz um diagnóstico das neuroses e vícios dos brasileiros em relação à figura do “pai” bandeirante. Descreve uma relação psicologicamente conflituosa, visto que como o pai bandeirante está com frequência ausente nos sertões, desenvolve um apego muito grande à mãe, normalmente uma índia ou mestiça. E quando o bandeirante volta à casa, produz violências contra a mãe, ou se gaba de ter se relacionado com diversas outras mulheres.
Mas estas são características defeituosas dos bandeirantes, que são sempre superestimadas, especialmente no debate hoje que repete um certo slogan de que o Brasil nasceu do “estupro”.
Por outro lado, o bandeirante possui qualidades que nos faltam imensamente neste atual momento de crise. A primeira delas é a autoridade. Uma bandeira era um empreendimento extremamente difícil e arriscado. O líder da bandeira devia ser um bandeirante de muito respeito e cuja palavra era lei. Era um aglutinador de tribos e famílias. Caso essa liderança viesse a ser questionada, a bandeira seria um desastre. Nesse sentido, vejo em Pedro Teixeira um exemplo excelente de autoridade e liderança: um bandeirante que reuniu uma expedição com mais de 2 mil índios, que desbravou todo o Rio Amazonas e consolidou os domínios portugueses contra holandeses, franceses e ingleses.
Os bandeirantes ganharam tanta experiência no combate e desbravamento dos sertões que foram, de fato, a primeira força militar genuinamente brasileira. Graças aos bandeirantes os domínios que hoje constituem o Brasil foram consolidados e as potências estrangeiras, como os holandeses no Nordeste, foram expulsas. Por isso, não é incomum ver bandeirantes desenhados em brasões militares, policiais e de prefeituras.
E justamente por estar em posição de autoridade e liderança, o bandeirante é um árbitro de conflitos, e precisa ser severo. E aqui vemos a radical diferença entre aquele amor materno incondicional e lamurioso em relação aos filhos criminosos, como vemos em todas as notícias de operações policiais quando as mães e mulheres acusam o Estado de terem assassinado seus filhos, e a severidade justa do bandeirante. Conta-se que Fernão Dias Paes Leme, em sua expedição pelas esmeraldas, foi traído pelo seu próprio filho, José Dias Paes Leme. Este conspirou contra seu pai, para lhe tomar a liderança da expedição. Descoberta a conspiração, Fernão Dias Paes Leme mandou enforcar o próprio filho não só como punição, mas como exemplo aos demais.
O conflito entre a família e o dever público não é uma novidade na história e na mitologia. Cabe recordar do drama de Arjuna no Bhagavad Gita. Além disso, mais tarde, veríamos outra figura histórica, tida como herói da Pátria, que passou por conflitos similares: Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias e patrono do Exército, que conflitou com seus familiares, em especial seu próprio pai, o qual decidiu apoiar a revolta separatista no Rio Grande do Sul, enquanto Luís permanecia fiel ao Imperador.
Ainda no caminho do bandeirante, recordo outro militar que também foi fundamental, e isso já no século XX, na consolidação das nossas fronteiras e na exploração dos cantos mais remotos do Brasil. Marechal Rondon fez uma expedição épica pelo Centro Oeste que descobriu diversas tribos, estabeleceu contatos e consolidou o domínio territorial do Estado brasileiro sobre aquela região. Diferente, porém, dos antigos bandeirantes, adotava uma filosofia de não-conflito e pacificação, que foi inclusive muito bem sucedida.
Há ainda um posterior debate a respeito de demais figuras políticas brasileiras que vieram mais tarde e tiveram um papel de bandeirante, marchando para o Oeste ou para a Amazônia, mas para não me alongar, vou deixar citadas apenas essas figuras.
Portanto, o bandeirante parece ser aquele pai severo e solar que o Brasil precisa para se livrar dessa prisão psicológica da mãe chorosa que lamenta o destino de seus filhos. Uma prisão paralisante, pois em vez de vestirmos o gibão, carregarmos o arcabuz e desembainharmos o facão para seguir à frente em nosso futuro, ficamos paralisados lamentando o que já aconteceu e esperando que alguém volte à casa. Talvez alguém argumente que o melhor caminho não seria nem tanto ao mar e nem tanto à terra, ou melhor, nem tanto ao sol e nem tanto a lua. Mas em vista da supervalorização de um só dos polos, acredito que o equilíbrio saudável deve insistir radicalmente em sentido oposto.








