Nossas predisposições eurocêntricas fazem com que desprezemos processos interessantes que ocorrem nas periferias e margens do sistema-mundo contemporâneo. No fundo, ainda cremos que a Europa é o sentido da História.
Quando alguns entusiasmos “eurocéticos” e “nacionalistas” demonstram alguma simpatia por “ditaduras do terceiro mundo” é porque estão convencidos de que Velho Mundo já não tem nada a oferecer e que vale a pena acompanhar processos e experiências vigentes nesses outros cantos da Terra.
Ao menos no meu caso, não se trata de um pleno repúdio ao “Ocidente” e aderência ao que, de diferentes modos, contesta-o, mas uma percepção de seus limites e incompatibilidades com outros contextos históricos e culturais. É preciso deixar de lado o desprezo e a arrogância, sobretudo quando você mesmo não vem daquele lado do mundo e quando a aderência a ele é fruto de alienações (saber se por em seu lugar histórico).
I.
Recentemente, o João Eigen fez uma afirmação inusitada:
“A história já mostrou que o burguês gordo, hedonista, avarento, individualista, egoísta e dinheirista conseguiu criar e manter uma sociedade com índices de qualidade de vida muito mais altos e satisfatórios — e menos assassina — do que qualquer alternativa “antiburguesa” moderna.”
De fato, a qualidade de vida humana e estabilidade política proporcionada “pensamento liberal-burguês” tem sido almejadas por todos os projetos políticos dos últimos 150 anos. Mas essa experiência não é universalizável, surgiu e manteve-se num dado contexto até entrar em crise.
O auge do “estilo de vida ocidental”, seja ele manifesto nos “American Way of Life” ou a Social Democracia Europeia foram possíveis num mundo em que 1) a ameaça representada pelo socialismo exigia uma pacificação interna dos países centrais do capitalismo, o que incluía formas de melhorar a qualidade de vida das massas 2) boa parte da própria riqueza e complexidade econômica desses países era sustentada por uma relação de tipo neocolonial para com outras partes do mundo.
Chocamo-nos ao nos deparar com o grau de violência totalitária exercida por experiências socialistas contra suas próprias populações mas pouco nos damos de conta que o colonialismo possibilitou a transferência da violência para o além-mar. Ao longo dos anos 50 e 60, pensadores da descolonização refletiram porque o proletariado das metrópoles parecia indiferente ou até hostil aos processos de independência das colônias.
Esse sistema começou a desmoronar a partir de reconfigurações econômicas (como os choques do petróleo, o fim do padrão ouro e a globalização neoliberal). O fim do socialismo real e a abertura econômica do “sul global”, em vez de trazer uma duradoura era de paz, integração e prosperidade, aparentemente só conseguiu trazer riqueza às populações de países que conseguiram manter nas mãos do Estado a condução de seus processos de industrialização. É o caso da China, dos velhos e novos tigres asiáticos.
Desde então, a qualidade de vida das classes trabalhadoras dos antigos centros industriais (hoje centros financeiros antes de tudo), tem diminuído junto com a própria noção de democracia e liberdade.
O Ocidente desistiu de satisfazer as massas a partir da redistribuição de riqueza (o que se dava não apenas na forma de rendas e salários, mas no bom funcionamento dos serviços públicos), base material da “Democracia Liberal”, e partiu para a repressão direta como forma de manutenção das velhas formas de exploração e dominação, aproveitando a desorganização, atomização e hedonização da vida coletiva para impedir qualquer mínima chance de contestação, que nosso século tem vindo sobretudo na forma do “populismo de direita” -um homúnculo comparado às forças e projetos das décadas passadas, mas ainda assim uma força a ser considerada.
É preciso admitir (talvez eu esteja me recobrando disso agora): se o Bolsonarismo é desmontado com a violência que vemos hoje (com toda a série de abusos e violações de normas básicas do direito e da constitucionalidade vigentes), é porque naquele “projeto” havia alguma brecha para a ruptura não apenas do jogo de forças políticas do presente (uma eventual implosão da nova república à “extrema-direita”), mas quiçá algo mais profundo. Eu continuo desconfiado em relação a um governo que tinha Paulo Guedes como Ministro da Economia, mas quem manda no país certamente tem uma visão mais ampla que eu.
O ponto é que a “Democracia” está chegando ao fim enquanto experiência histórica.
Trump tenta “fazer a América grande novamente” forçando uma reconfiguração geoeconômica que possa recuperar a centralidade americana, perdida para a China por iniciativa das próprias elites “metacapitalistas” que governavam o país, mas, dentro de seu próprio movimento há figuras que pensam num aprofundamento da demolição do Estado Norte Americano a favor de uma “aceleração do capitalismo em detrimento da democracia”.
Na Europa, nem precisamos falar dos caminhos que têm seguido: a Inglaterra está retornando a velha prática dos progroms, enquanto a França consegue desprezar o resultado das eleições.
O projeto iluminista tem se autodevorado a largas bocadas.
II.
Fiz um post brincando com o que tem acontecido em El Salvador e Burkina Faso. Projetos bem diferentes, mas que valem a pena serem observados.
O Lucas Beza fez uma provocação bem comum, mas verdadeira, que é feita toda vez que alguém manifesta a mínima boa expectativa para com que o acontece no Sahel: desde que Ibrahim Traoré tomou o poder no país, o território dominado por grupos jihadistas aumentou, bem como o número de ataques e mortes. Ainda assim, notícias sobre pequenos passos tomados rumo à “soberania” são igualmente frequentes em portais de notícias voltados ao Sul Global.
Pois bem, o padrão histórico da dominação colonial sobre a África foi a de concentração de poder, instituições e riquezas nas capitais das colônias, enquanto frequentemente a metrópole reduzia o interior a mero campo de extração de recursos. A distinção entre cidade e campo (ou melhor, capital e interior) sempre foi brutal nesses países. Falei disso nos posts recentes sobre “Os Condenados da Terra”.
Em Burkina Fasso, é possível perceber um padrão de maior estabilidade nos arredores das maiores cidades: Uagadugu e Bobo Diulasso (esta tem sido cercada aos poucos), enquanto toda a periferia do país encontra-se sob dominação de grupos jihadistas ou ligados a particularismos étnico-tribais. Isso se repete no Mali e no Níger.
Parece ocorrer nesses três países processos semelhantes ao que ocorreu no Afeganistão e na Síria nos últimos anos: um “apodrecimento” do país, cujo poder central (que jamais conseguiu estabelecer um Estado-Nação em plenas funções) vai pouco a pouco desmoronando perante o avanço de insurgências e poderes sitiantes.
A diferença é que nesses três países têm ocorrido frágeis tentativas de reversão, atráves da derrubada dos antigos poderes mumificados, reconfiguração de parcerias a nível regional e global e um programa político-ideológico mínimo. A expulsão da França, cujo histórico de sabotagem é bem conhecido; a busca por apoio da Rússia e da China e a formação de uma cooperação regional mais profunda são sinais notáveis de resiliência daqueles grupos que tentam salvar seus sub-países.
Se e quando aquelas juntas caírem, veremos uma versão maior e mais bárbara do Estado Islâmico, fora dos holofotes da mídia ocidental, até puderem “saltar” para um nível de projeção maior. Isso se não forem, como o exemplo da Síria mostra, eles próprios próceres do imperialismo ocidental.