Putin quer restaurar a URSS?

Alguns comentários recentes de figuras ligadas ao Kremlin fizeram os neocons passarem a divulgar que Putin quer o retorno da URSS. Faz sentido essa narrativa?

Os debates no âmbito do Fórum Jurídico Internacional de São Petersburgo lançaram liberais, neocons e olavetes em estado de tensão histérica. Segundo eles, Putin estaria realizando uma ofensiva visando “restaurar a URSS” por meio de “canetada”.

O âmago da questão jaz nos comentários feitos por Anton Kobyakov, assessor do Kremlin, no âmbito do Fórum supracitado. Segundo ele, a dissolução da URSS deu-se de maneira nebulosa e sem cumprir requisitos legais básicos, como a da legitimidade ativa. Para Kobyakov, como a URSS foi criada em 1922 pelo Congresso dos Sovietes (ou Congresso dos Deputados do Povo) – órgão em seguida dissolvido e suplantado – teria sido necessário recriar o órgão (por meio de eleições) para denunciar o tratado e dissolver a união.

Como isso não foi feito, Kobyakov diz que, enquanto tal, a URSS existe num limbo jurídico, nunca tendo realmente deixado de existir de jure. Nesse contexto específico, seria até possível interpretar a crise ucraniana como um assunto interno da URSS, e não como um evento do Direito Internacional.

A discussão é, evidentemente, formalista – tal como o são a maioria das discussões em congressos jurídicos. Kobyakov é, realmente, um intelectual e especialista relevante nos meios oficiais russos, mas naturalmente não “dita” política e tampouco pretendeu com sua declaração criar um “objetivo político”. Ao contrário, ele afirmou que era inegável que a URSS havia deixado de existir politicamente.

O jurista russo Vladimir Sinyukov concordou com Kobyakov e complementou afirmando que era necessário “legalizar” a dissolução da URSS, porque o modo como os eventos se deram no início dos anos 90 eram foram e seguiam sendo fonte de instabilidade política na Eurásia. E isso evidentemente também é inegável.

Em outras palavras, um debate jurídico formalista e abstrato (o que é perfeitamente normal), transformado em factoide político por oportunistas de sempre.

Primeiramente, é necessário distinguir entre o esforço de superação do Estado-nação pela construção de uma superestrutura geopolítica mais abrangente, e uma “restauração da União Soviética”, que é um projeto político-ideológico específico, pautado também em uma leitura específica da natureza humana, das relações econômicas, do fundamento da verdade, etc.

A busca pela superação do Estado-nação constitui um imperativo geopolítico que se impõe na medida do esgotamento do nomos vestfaliano da Terra. Nem mesmo a Federação Russa, absolutamente sozinha e nas fronteiras de 1991, pode lidar com os desafios fundamentais do século XXI. Em termos geopolíticos, a Rússia aos poucos passou a sentir a necessidade de construir caminhos de integração com alguns países vizinhos, como Belarus, Ucrânia e Cazaquistão – países que pertenciam à URSS, de fato, mas que eram apenas uma parte da União.

A construção da União Europeia, da UNASUL e a busca trumpista por anexar ou integrar o Canadá respondem a imperativos semelhantes que demarcam a passagem de uma ordem planetária fundada em Estados-nações para uma ordem planetária fundada em Estados-continentes ou Impérios.

De fato, a Rússia caminha nessa direção através de projetos como a União Eurasiática. Mas isso não é “restaurar a URSS”.

Para que se pudesse dizer que Putin quer restaurar a URSS teríamos que estar falando não apenas em uma retomada da integração com alguns países vizinhos, mas de uma retomada ideológica da forma soviética do marxismo-leninismo por parte do Estado russo.

Nessa seara, figuras como o olavete Paulo Henrique Araújo apelam, por exemplo, para “tanques com bandeiras soviéticas” na Ucrânia, restauração de monumentos soviéticos, etc. Entra no jogo até uma inexistente “deportação de crianças ucranianas” (ele está se referindo ao fato corretíssimo de que a Rússia está resgatando órfãos do Donbass e os colocando no sistema de adoção russo).

Desnecessário dizer que tudo isso é circunstancial e, no máximo, nos fala sobre a importância da recuperação do passado heroico para o imaginário russo, bem como sobre o papel da nostalgia soviética como tonalidade afetiva do russo contemporâneo (especialmente dos mais velhos).

Onde estão as expropriações em massa? A perseguição às religiões e o ateísmo militante? Ou a consagração de valores materialistas? E quanto à planificação total da economia? Poderíamos prosseguir questionando onde está o “sovietismo” de Putin. Os olavetes, de costume, apelariam ao mito da “falsa morte do comunismo”, em que o comunismo “finge” a própria morte para seguir vivo. Mas se o comunismo não se determina por materialismo histórico-dialético, luta de classes como motor da história, ateísmo militante e planificação econômica, ele é o que? Não há respostas razoáveis para esta pergunta.

Para dissolver essas conjecturas e despachá-las para o nada onde é seu lugar, nem precisamos apelar para a renovação da “sinfonia” tradicional entre Estado e Igreja, tampouco para o fato de que a economia russa é mista, com um forte papel do setor privado. Basta recordarmos o Decreto nº809, em que Putin consagra o sacrifício pela pátria, a caridade, a família tradicional e a supremacia do espírito sobre a matéria, entre outros pontos, como “valores oficiais” do país, nos quais todas as instituições e normas devem se inspirar – quase como se tivessem valor constitucional.

Estranho esse “comunismo” e essa “restauração da URSS”.

Imagem padrão
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 43

Deixar uma resposta