O Brasil foi fundado em uma sequência de estupros por parte dos portugueses? Um enfrentamento da nova narrativa antinacional.


O último impropério a ser proferido por um “intelectual” de terrae brasilis vem Lilia Katri Moritz Schwarcz, uma historiadora e antropóloga de origem judia, que como muitos dos sumo-apedeutas que compõem o clero de nossa nova (des)ordem imbecilizada é membro da Academia Brasileira de Letras.
Segundo a respeitabilíssima intelectual, uma recente pesquisa genética demonstraria que o povo brasileiro teria sido gerado a partir de um estupro fundacional generalizado praticado pelos portugueses contra as índias nativas e negras escravas.
O raciocínio segue da seguinte forma:
A pesquisa em questão (que, pontuo, tem um espaço amostral exíguo) ao tratar especificamente da transmissão da linhagem paterna e da transmissão da linhagem materna (o que é diferente do DNA autossômico) chegou a conclusão de que a maior parte esmagadora dos brasileiros possui como ancestral masculino mais remoto (até o séc. XV) um português, enquanto o ancestral feminino mais remoto (até o séc. XV) seria – dividido de maneira mais ou menos igual – uma mulher branca, uma mulher negra ou uma mulher indígena. O resultado da pesquisa foi tomado como mais uma demonstração das origens mestiças do povo brasileiro em geral.
A Schwarcz simplificou o resultado como significando “o Brasil foi fundado por homens portugueses e mulheres índias e negras”.
Dessa disparidade racial, a Schwarcz deduziu sob forma de conclusão: a fundação do povo brasileiro deu-se por um estupro primordial praticado pelos portugueses. Ora, afinal – segue o raciocínio – como os portugueses foram “invasores” e “escravagistas”, as mulheres índias e negras jamais poderiam ter tido qualquer relação de caráter consensual com eles; portanto, estupro!
Existem aí duas categorias de erros: um erro é histórico, o outro erro é psicossocial.
O erro histórico se baseia na construção de um dualismo artificial entre “português” e “índio”, um como algoz e opressor universal, o outro como vítima e oprimido universal. O índio, nessa leitura, é mero sujeito passivo no processo de construção do Brasil. Ele apenas padece dos fatos que se desdobram ao seu redor, sem sua participação, sem sua voz. O português tudo faz sozinho em uma guerra geral e sem trégua contra todos os índios pelo mero fato de serem índios.
Isso é, obviamente, falso. Uma historiadora como a Schwarcz deveria saber, mas todos os fatos históricos narram o fato de que os portugueses eram muito pouco numerosos para ocupar a terra, contando, portanto, com alianças com os índios para garantir a posse da terra. Essas alianças davam-se, quase sempre, por meio de casamentos entre os portugueses e jovens mulheres indígenas, como nos casos de Caramuru e de João Ramalho, mas os exemplos são abundantes. Essa estratégia se origina dos próprios indígenas e não dos portugueses e não é nada além daquilo que ficou consagrado na historiografia brasileira como o “cunhadismo”.
Os próprios indígenas queriam a aliança com os portugueses, recém-chegados mas visivelmente muito poderosos, contra os seus inimigos, como no caso das guerras contra os tupinambás na região Sudeste.
O caso das mulheres escravas é obviamente mais complexo, mas recai bem na refutação do segundo erro. Não obstante, é necessário levar em consideração que muitas vezes são os mestiços (por exemplo, os brasilíndios caboclos com DNA Y português) que terão relações com as mulheres negras, por causa do próprio caráter liminar (e, portanto, mais livre) do brasilíndio nos primeiros 150 anos da história brasileira.
O erro psicossocial se baseia numa falsificação ou incompreensão das relações homem-mulher na história. A essa falsificação/incompreensão se atrela uma leitura “anarco-freudiana” do amor, a qual coloca o amor nas antípodas do poder. Para essa leitura, onde há relação de poder não pode haver amor, o amor só pode ser “livre”; toda relação de poder é intrinsecamente violenta. Assim, todo romance em que há um diferencial de poder e, portanto, uma hipotética relação de poder é estupro.
Essa é uma tomada de posição ideológica de antemão. Se a adotarmos irrefletidamente teremos que concluir inevitavelmente que nem o amor pais/filhos é real, por haver nele um diferencial de poder. Trata-se de opressão. O “amor a Deus”? Também é falso. Não há a menor necessidade de abraçar esse tipo de posicionamento.
Assumamos uma posição mais realista:
Lendo o ato da Descoberta e as primeiras décadas da colonização de uma perspectiva exclusivamente sociobiológica, temos a introdução – em um sistema outrora fechado e sexualmente equilibrado – de uma população de machos. De imediato, o aumento da oferta de machos gera um desequilíbrio que necessariamente aumenta a seletividade sexual na direção mulher -> homem. Mesmo que as índias individualmente não sejam “livres para escolher”, os seus pais se tornarão mais seletivos na hora de escolher os maridos de suas filhas.
E o que os portugueses trazem à mesa? Eles estão bem armados, são bons guerreiros, são aparentemente poderosos (a aliança com eles praticamente garante a vitória sobre outros inimigos indígenas), etc.
Desse modo, é óbvio que entra aí em jogo uma hipergamia feminina básica, bem como o próprio interesse dos chefes, pais e tribos indígenas de cerrar alianças por casamento com esses novos homens que trazem consigo um impacto revolucionário apto a transmutar toda a realidade circundante.
O fenômeno se repete no mito e na história.
Mencionei em outra ocasião o evento do rapto das sabinas, quando os romanos de Rômulo em uma Roma formada exclusivamente por homens (reforçando o tese da fundação civilizacional por bandos guerreiros – a teoria do Männerbund) convidaram os sabinos para uma festividade e raptaram as suas filhas e irmãs. Os sabinos, evidentemente, se armaram e foram à guerra contra os romanos e apesar de algumas vitórias iniciais eventualmente os romanos assumem a vantagem. Segundo a narrativa de Tito Lívio, então, as sabinas entram em cena para pedir paz, convencendo a seus pais e irmãos que elas querem ficar com os romanos como maridos.
No âmbito histórico, por exemplo, encontramos de maneira muito semelhante na genética europeia uma disparidade nas linhagens masculinas e femininas, em que é comum uma preponderância genética indo-europeia na linhagem masculina e uma preponderância genética paleoeuropeia na linhagem feminina. É claro que sabemos da realidade das invasões indo-europeias, mas essas invasões não se basearam simplesmente em assassinato dos homens paleoeuropeus e estupro das mulheres paleoeuropeias.
Esse processo que se deu ao longo de gerações envolvem períodos de rapto efetivo, bem como – após o assentamento definitivo dos indo-europeus na Europa – a seletividade hipergâmica. Os conquistadores a cavalo, naturalmente, passaram a aparecer como mais “atraentes” e parceiros melhores do que os homens nativos, que haviam sido subjugados.
Em alguma medida, no caso das mulheres negras que se juntaram com homens brancos, é óbvio que certamente houve casos de estupro, mas é muito mais provável que as próprias escravas vissem o interesse de um homem branco como oportunidade para conquistar alforria, ou de ter um filho mulato em condições melhores que as próprias, ou de passar da senzala à casa grande, ou de adquirir outras vantagens.
Em conclusão, a tese do estupro primordial é insustentável.
Ela é uma tese político-ideológica cuja finalidade é macular as raízes do Brasil de forma a bloquear qualquer possibilidade de um orgulho mobilizador de uma identidade nacional. É uma tese voltada para a desintegração do tecido social brasileiro, fragmentado em vários microgrupos disputando posições de poder e interesses uns contra os outros.