Marxianos Sim, Marxistas Não

A crítica de Marx ao capitalismo e à sociedade burguesa guardam atualidade, mas os seus prognósticos e soluções estão longe de ser adequados.

No dia 5 de maio de 1818 nascia em Tréveris o brilhante, profundo, infatigável e febril pensador Karl Marx – um utópico a contragosto, politicamente autoritário e filosoficamente incontornável. Sua biografia e obra já preenchem incontáveis bibliotecas, e não é nossa intenção aqui propor uma nova interpretação fantasiosa (aliás, nem seríamos dignos de formular outra). Mas a oportunidade que se nos apresenta nos autoriza a encerrar, em nossa opinião, sua atualidade: o marxismo permanece um pensamento vivo e fértil como método analítico, mas encontra-se gangrenado por dentro e tornou-se inútil enquanto concepção palingenésica. Essa sempre foi uma ideia herética no campo marxista (o primeiro a teorizá-la formalmente foi o alemão Karl Korsch há cem anos – uma espécie de anti-Lukács que caiu no esquecimento justamente por ser um pestífero e réprobo). Mas a tese permanece válida. Sobretudo hoje, após os fracassos práticos do comunismo como foi aplicado, quando podemos – ou mesmo devemos, em minha opinião – nos declarar “marxianos”, mas não marxistas.

Marx, como se sabe, foi um discípulo rebelde de Hegel. O filósofo prussiano, em seu artigo de 1802 “A Constituição da Alemanha”, definia o espírito burguês como marcado por uma “preocupação constante” com a propriedade. O burguês é antes de tudo um indivíduo angustiado. Anos depois, em sua obra magna “A Fenomenologia do Espírito”, Hegel formula sua célebre concepção do trabalho como dever de emancipação – “disciplina de serviço e obediência” sem a qual o medo da morte, inerente ao ser humano, “permanece interno”, intoxicando a consciência que, assim, “não chega a se tornar consciência de si”. Para Hegel (e até as pedras sabem disso), a história humana consiste no processo dialético da autoconsciência progressiva do Espírito. Marx, ao buscar “colocar a dialética hegeliana de ponta-cabeças”, substituiu o Espírito pela matéria (eis o materialismo histórico), mantendo porém a aspiração ao progresso, ao aperfeiçoamento e à humanização – que, segundo ele, eram obstruídos pelas estruturas sociais opressivas, então dominadas pela burguesia. Ou seja, pelo burguês dedicado a seus negócios, em vez de se voltar, como o proletário, para a emancipação da humanidade – que um dia estaria inclusive liberta do trabalho em si, graças ao comunismo (“de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades”).

Como destacou Simone Weil em seus relâmpagos reflexivos sobre as causas da liberdade e da opressão social, Marx de fato atribuía ao sonho revolucionário a tarefa de libertar “não os homens, mas as forças produtivas”. O foco de Marx foi progressivamente deslocando-se do homem concreto para a produção: não por acaso, o conceito de alienação (a perda de humanidade do homem como escravo da máquina capitalista), tão central e significativo para a posteridade – ou seja, para nós – não é desenvolvido pelo Marx maduro, que deixou inacabada a imponente catedral teórica d’O Capital.

A imagem da sociedade comunista permanece vaga, essencialmente identificada com o desaparecimento do Estado – substituído por uma organização social modelada no regime hiper-racional da grande empresa, que Friedrich Engels resume assim: “do governo dos homens à administração das coisas”. Um imenso tecido de comunidades que tenderiam à pacificação na medida em que fossem regidas por princípios que hoje chamaríamos de racionalização de recursos, visando ao desenvolvimento máximo da produtividade. Digamos claramente: um pesadelo, mais que um sonho.

Com efeito, Weil sempre observou que o limite macroscópico de Marx residia no fato de que seu anticapitalismo “harmonizava-se profundamente com a corrente geral do capitalismo”. Ou seja: a mecanização, a concentração, a gerencialização – todo o sistema de sujeição que se veria em ação no fordismo-taylorismo americano. Em uma palavra: o produtivismo, que hoje se traduz no dogma do crescimento econômico infinito. Uma exigência puramente maquínica, um automatismo sistêmico, um artigo de fé racional, ansiogênico, disciplinar e alienante em tudo. Mas nada de razoável e humano, absolutamente nada, ali se manifesta.

A falácia do barbudo filósofo de Tréveris não está tanto na previsão equivocada da queda tendencial da taxa de lucro, mas sim na visão escatológica de um fim dos tempos sob um reinado futurista e saturnino, livre da penosidade do trabalho e da aspereza dos conflitos.

Por isso o marxismo, enquanto pensamento sistemático, tem pouco a nos dizer após o século XX – não porque o capitalismo tenha superado em eficácia as experiências comunistas concretizadas, mas principalmente pela desumanização que trazia em seu DNA, na qual desemboca invariavelmente qualquer tentativa de perseguir um ideal abstrato e redutivamente racionalista. É fato consumado: a busca cega pela felicidade coletiva conduz à perseguição cega e ao infortúnio crônico dos indivíduos, em suas interações, relações e vínculos sociais. Em sua vida, enfim. Desconfiemos, pois, dos que ainda imbuem os revolucionarismos de sabor messiânico, introduzindo em seu militantismo excesso de transcendência e atos de fé. A revolução é possível, mas para inverter o conflito a favor dos alienados segundo a justiça – não para suprimi-lo, o que é humanamente impossível e indesejável. Aqui, o republicano – que é também precisamente conflitualista, como Maquiavel – pode servir de excelente antídoto (não por acaso Maquiavel, esse marco que transcende em muito o maquiavelismo afetado, é um autor totalmente ignorado por Marx).

Em que aspectos Marx permanece não apenas útil, mas indispensável? No diagnóstico da doença capitalista (termo que ele certamente não usaria – nós o empregamos para indicar toda a deformidade e insalubridade que afeta a condição psicofísica e política do homem-animal: uma alienação que, a meu ver, em muitos aspectos se assemelha ao inevitável flagelo do niilismo diagnosticado por Nietzsche).

Na revelação da natureza do dinheiro, que provoca uma falta desumana de empatia ao asfixiar na raiz a necessidade natural de comunidade (“a indiferença”, nas palavras de Marx). No capítulo III da profecia d’O Capital – hoje plenamente realizada – está a “aristocracia financeira” que estenderá seu domínio sobre o mundo inteiro. Por fim, ainda que soe banal destacá-lo, na subordinação lúcida de qualquer juízo ao exame rigoroso das forças presentes em dado momento histórico, para vincular as superestruturas ideológicas às estruturas de poder subjacentes (sem recair, porém, num economicismo pueril – erro que Marx, ao contrário de alguns epígonos, jamais cometeu). Marx, portanto, segue vivo. O marxismo, muito menos. Aliás, apesar do tratamento despótico e ferozmente polêmico que caracterizava o Marx político ativo no movimento operário, foi ele mesmo quem teria dito, segundo testemunho de Engels: “o que sei é que não sou marxista”. Dois séculos depois, temos ainda mais direito de não sê-lo.

Fonte: Geopolitika.ru

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Alessio Mannino
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