A Abolição da Escravatura e seus Heróis

A escravidão no Brasil acabou simplesmente por causa de pressão britânica e ameaça de revoltas ou entraram também outros fatores?

De celebrada, hoje a Princesa Isabel está quase esquecida. No lugar da sua memória jaz um vácuo ocupado por uma mistura confusa de constrangimento e ressentimento que embaralha o nosso entendimento sobre o fim da escravidão no Brasil.

O esquecimento da centralidade da Princesa Isabel na abolição da escravatura é, em primeiro lugar, fruto de um revisionismo ideologizado que considera vergonhosa a verdade histórica de que o fim da escravidão no Brasil foi protagonizado, em boa parte, por brancos, com destaque especial de Isabel.

Para afagar a autoestima e construir uma mitologia de protagonismo na libertação de si mesmo por parte dos negros brasileiros enquanto coletividade, apaga-se o papel da Princesa Isabel, considerado politicamente incorreto e até mesmo racista.

Nessa narrativa, a abolição da escravatura teria se dado por algum medo por parte das elites oligárquicas do Brasil em relação a revoltas de escravos. Os oligarcas estariam apavorados com a possibilidade de uma Revolução Haitiana no Brasil, e para evitar o “holocausto revolucionário” (sonho molhado da facção racista do “movimento negro” [hoje a mais midiatizada, financiada e posicionada]) teriam libertado os escravos brasileiros.

A realidade, porém, é que no século XIX houve um pequeno punhado de revoltas de escravos, todas elas rapidamente sufocadas e nenhuma nem mesmo perto de ameaçar as estruturas do poder no Brasil. O Brasil, afinal, não era o Haiti. Diferentemente do Haiti, em que havia uma estratificação social-racial mais rígidas, o Brasil, apesar de sempre ter sido hierárquico, quase não ergueu barreiras especificamente raciais. A escravidão no Brasil era generalizada e estava entranhada a ponto de haver escravos donos de escravos, bem como negros retintos donos de mestiços de pele mais clara (escravos brancos, até onde se sabe, não houve no Brasil).

Por mais atroz que fosse a escravidão em si mesma, pela redução do homem a propriedade e commodity, o Brasil jamais foi o Haiti.

Apesar, portanto, da falta de evidências empíricas ou de argumentações razoáveis, essa tese politicamente correta é uma das mais populares, inclusive nos meios acadêmicos, que consideram estar assim empreendendo uma “reparação histórica”. É uma “mentira nobre”, consideram os historiadores brancos e mestiços cheios de “amor pela humanidade” em seus corações.

Menos aberrante, mas não menos atentatória contra os verdadeiros heróis da história, é a tese materialista-economicista que reduz todo evento histórico a uma rede de relações de poder, fatores socioeconômicos e interesses de classe, reduzindo os agentes humanos quase a “médiuns” de forças históricas impessoais.

O problema desse tipo de narrativa é que ela também é ideológica e se baseia em uma petição de princípio. Ela é circular. Ora, é óbvio que sempre há uma dimensão econômica em todo evento histórico – mas raramente se consegue demonstrar a causação econômica de um evento histórico de grande importância. Sincronicidade não é causalidade (verdade tão simples, mas tão esquecida).

A realidade é que a tese do “interesse classista pela abolição”, para se sustentar, dependeria da existência no Brasil de uma forte burguesia industrial nascente, já dotada de “consciência em si e para si” e capaz de se organizar e mobilizar por seus interesses classistas pressionando o Imperador. Isso simplesmente não existia no Brasil. Qualquer estamento que pudesse ser chamado de “classe burguesa” no Brasil do século XIX não era senão composto de uma classe média burocrática e de um pequeno-médio empresariado ainda engatinhando em qualquer concepção de produção industrial.

Tampouco se pode atribuir, aí, o protagonismo à Inglaterra, já que a sua pressão era tão somente pelo fim do tráfico escravagista, e o interesse pela escravidão brasileira desaparece entre os ingleses após a Lei Eusébio de Queirós. Após o fim da importação de escravos pelo Brasil, os ingleses deixam de pressionar o Brasil. A abolição viria quatro décadas depois.

A realidade é que, por um lado, trabalho dos críticos da escravidão entre os intelectuais (muitos deles mulatos), o clero, oficiais militares e a família real fez a diferença em mover, lentamente, a opinião pública contra a escravidão, até ser quase inevitável a sua abolição.

O trabalho foi, na prática, iniciado por José Bonifácio, que pagou pela tentativa de abolir a escravidão já em 1823 com os seus cargos – mas a semente já havia sido plantada século antes com condenações eclesiásticas à escravidão.

(O abolicionismo de Bonifácio é, usualmente, atribuído a um iluminismo liberal, mas eu o leio como fruto, na verdade, de um nacionalismo romântico que via o povo como totalidade orgânica dos cidadãos, uma visão impossível de realização com o país fraturado entre não escravos e escravos).

Isso foi reforçado por uma bula papal de 1839 que condenava mais explicitamente a escravidão africana e orientava o clero católico a se posicionar nesse sentido.

O próprio Pedro II já pressionava na direção da abolição desde pouco após o golpe da maioridade, mas preocupado com a possibilidade de perder o trono, não se moveu decisivamente na direção da abolição até que a opinião pública já havia virado a favor da abolição. A partir de então, as elites oligárquicas aceitaram uma abolição gradual – mas ela, na verdade, esperava que o ato final da extinção da escravidão nunca chegasse, e que fosse possível simplesmente ir convertendo a escravidão em uma espécie de servidão neofeudal – o que, de fato, ela virou na República Velha.

Isabel era ainda mais radical no antiescravismo e várias vezes criticou seu próprio pai pela falta de avanços na abolição em cartas privadas reveladas apenas nos últimos anos, e nisso estava alinhada a toda a militância católica da época, que através de seus jornais e periódicos pressionava contra a escravidão.

A realidade é que especificamente Princesa Isabel foi decisiva, a nível pessoal e como liderança católica, no fim da escravidão no Brasil. E ela pagou por isso com o Trono – e sabia que pagaria por isso com o Trono.

É impressionante, por exemplo, que comemoremos simultaneamente a Abolição e a Proclamação da República, sem traçar a necessária conexão entre as duas coisas, quando o golpe da Proclamação não foi senão a revanche ressentida das elites oligárquicas indignadas com a abolição “repentina” e temerosas de uma possível reforma agrária que os Bragança estariam preparando.

Isso, inclusive, é tema comum nas obras escritas entre o final do século XIX e o início do século XX. Foi apenas recentemente que esquecemos de onde veio a nossa primeira República.

Isabel perdeu o Trono, mas recebeu do Papa uma rosa de ouro, símbolo que foi, inclusive, imortalizado no samba brasileiro (que, infelizmente, também esqueceu as próprias raízes, e hoje não faz senão repetir as teses caducas de um “de-colonialismo” importado).

Imagem padrão
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 43

Deixar uma resposta