Quando se debate a China nos dias de hoje, uma das questões analisadas é se o país abraçou completamente a Modernidade ou se permanece apegado à Tradição.


Uma das principais discussões sobre a China hoje é se ela é “capitalista” ou “socialista”, com bons argumentos de ambos os lados (e, inclusive, bons argumentos que vão na direção do nem/nem).
Uma discussão menos popular, mas mais interessante é sobre se a China contemporânea corresponde a uma “sociedade tradicional” ou se ela está já plenamente inserida nos marcos da Modernidade.
Por “sociedade tradicional” aqui estamos nos referindo à adesão sociopolítica a princípios tidos como atemporais e incondicionais, os quais remeteriam a uma dimensão transcendente e sagrada e que irradiariam a totalidade social. O conteúdo dessa principiologia, naturalmente, dependeria da própria maneira pela qual um povo se estruturou historialmente (razão pela qual a “Tradição” possui natureza caleidoscópica – ela é uma Eternidade instanciada). Enquanto por Modernidade, naturalmente, estamos nos referindo fundamentalmente às crenças iluministas no primado da razão, no constitucionalismo, na separação entre Estado e religião, na concepção negativa de liberdade, no princípio da legalidade, etc.
De um modo geral, os argumentos em favor da categorização da China contemporânea como plenamente moderna apontam para a perseguição religiosa empreendida pelo maoísmo, para o controle das religiões pelo Estado, para o pragmatismo técnico e prático que os chineses demonstram em seus negócios e relações, além, é claro, naturalmente para o fato de que o PCCh oficialmente proíbe os seus membros de terem religião.
A realidade, porém, é infinitamente mais complexa.
Em primeiro lugar, porque a conceituação chinesa de “religião” é totalmente diferente da percepção ocidental a respeito. Para os chineses, “religião” (zongjiao) significa exclusivamente as seitas organizadas e institucionais dotadas de doutrina e dogma. De quebra, isso já exclui tanto a espiritualidade popular (chamada mais recentemente por nomes como “shenismo” ou “shenxianismo”), quanto o confucionismo. Para o PCCh (e para a maioria dos chineses), a adesão aos ritos tradicionais chineses e às práticas e crenças confucionistas não equivale a ter uma “religião”. É possível, portanto, participar no culto aos ancestrais, praticar feng shui, acender incenso para o Imperador Amarelo e participar nos ritos confucionistas, sem que se considere que você tem uma “religião”.
Guénon é, propriamente, um autor que classicamente rechaça a atribuição da palavra “religião” (tal como ela é entendida ao se falar em Cristianismo, Judaísmo e Islã) às tradições orientais, incluindo mesmo o Taoísmo e o Budismo (que são consideradas “religiões” na China), afirmando que elas carecem dos elementos sentimentais, morais e devocionais que são mais típicos dessas religiosidades médio-orientais.
É nesse sentido que se deve navegar pelas estatísticas religiosas da China, onde “identificação religiosa” e “prática religiosa” não se confundem. Em outras palavras, as estatísticas dizem que 90% da população chinesa não tem religião, mas que 80% da população chinesa adota regularmente práticas religiosas tradicionais. Isso inclui os membros do PCCh. Uma estatística do Pew Research Center, por exemplo, aponta que 79% dos membros do PCCh vão pelo menos uma vez ao ano ao cemitério para cultuar seus ancestrais. É um índice superior ao da população chinesa média.
Interessantemente, no que concerne outras práticas religiosas, os não-membros do PCCh tendem a ser mais religiosos do que os membros. Mas a explicação para isso é muito simples: os membros do PCCh em sua maioria não tem religião…mas são confucionistas. Celebram todos os ritos e festas confucionistas, cultuam os ancestrais, provavelmente vão aos templos confucionistas (os quais são, aliás, subsidiados pelo Estado), cultivam as virtudes confucionistas. Ou seja, o confucionismo “puro” parece ser bastante popular entre os membros do Partido, enquanto o resto da população é mais adepta tanto do shenismo misturado com elementos confucionistas, do budismo e do taoísmo. Não obstante, 40% dos membros do PCCh pratica o feng shui, e pelo menos 18% deles acende incensos várias vezes ao ano para Buda ou para os deuses.
No que concerne as relações Estado-Religião, aliás, em primeiro lugar, é importante apontar que o Estado chinês sempre atribuiu a si mesmo a prerrogativa de controlar, tutelar, influenciar e suprimir as várias seitas, escolas e doutrinas que tentaram se espalhar pela China. De modo que o fato do PCCh pretender exercer influência sobre o Cristianismo, o Taoísmo, o Budismo, etc., através de instituições alinhadas ao Estado, significa apenas que o PCCh é continuísta no que concerne a típica relação entre essas esferas na China. Ademais, muito se fala sobre o “controle negativo” imposto pela China, mas quase não se fala que a China visa limitar o crescimento de religiões especificamente estrangeiras, mas há vários anos subsidia e fomenta a abertura de novos templos e a educação de novos sacerdotes budistas, taoístas, confucionistas e shenistas. O resultado é um crescimento, por exemplo, de 300% na frequência a templos budistas desde 2023, com a maioria dos frequentadores sendo jovens.
Retornando, ainda, ao confucionismo, o Estado começou a restaurar recentemente os guoxue nas escolas, ou seja, o estudo dos Clássicos confucionistas, os quais no passado eram pré-requisito para a aprovação nos exames imperiais. Ademais, existe uma forte corrente intelectual que defende a institucionalização do confucionismo e sua transformação em religião civil oficial. Apesar de isso parecer distante, na prática, o Pensamento Xi Jinping já representa uma síntese entre maoísmo e confucionismo, o que fica bastante explicitado na maneira não-dualista pela qual a China hoje aborda a questão das classes sociais.
Deixando de lado a adesão e a prática religiosas, poderíamos nos desviar para a observação dos valores tradicionais chineses. O “comunismo” desenraizou ou desestruturou de forma fundamental os valores tradicionais da China?
Para isso temos que entender quais são esses valores. O intelectual russo Nikolai Mikhailov enumerou uma série de conceitos, princípios e afetos que compõem a cosmovisão tradicional chinesa, alguns dos quais podemos citar: “Mundo como harmonia inerentemente perfeita entre o Céu e o Homem, como um equilíbrio natural e harmonioso de opostos, cuja violação implica a deterioração da natureza e do homem”, “Presteza, responsabilidade, pragmatismo, religiosidade cotidiana”, “Percepção da sociedade como uma ‘grande família’, onde os interesses do indivíduo estão subordinados aos interesses da família, os interesses da família aos interesses do clã e os interesses do clã aos interesses do Estado”, “paternalismo e tutela dos mais velhos sobre os mais novos”, “hospitalidade”, “moderação”, “dignidade, humildade, obrigação, observância de tradições e cânones, respeito à hierarquia social, piedade filial, veneração aos antepassados, patriotismo, subserviência aos superiores, senso de dever e justiça social”.
Quando um anticomunista sinófobo, portanto, vem desqualificar a China contemporânea como “coletivista”, ou critica o chinês por ser “submisso à família e ao governo”, atribuindo tudo isso à “Revolução”, ele está apenas descrevendo características chinesas cultivadas há milênios. Mesmo aquela questão do “cobrar o preço da bala dos parentes do executado por pena de morte” é tipicamente chinesa. A tradição chinesa crê em punições coletivas para famílias pelos crimes de um membro, e considera essa uma questão óbvia e corriqueira.
Subindo dos costumes para uma dimensão mais metafísica, mesmo o Tianxia (ou seja, a ideia da China como centro do mundo, governada por um Mandato Celestial, imbuída da missão de trazer harmonia e equilíbrio às “terras bárbaras”) permanece vivo sob o Pensamento Xi Jinping no multipolarismo de Jiang Shigong, que visualiza a China ocupando o centro do cosmo em uma estrutura planetária harmônica, ainda que descentralizada. A Iniciativa Cinturão & Rota, assim, não é senão a aplicação pragmática e técnica da ideia metafísica do “Tudo sob o Céu”.
Não obstante, é inegável que os chineses padeceram os mesmos dilemas e ônus advindos da urbanização, do tecnocratismo, do consumismo e da sociedade do espetáculo – ainda que, talvez, de maneira diferente e em menor grau que os ocidentais, europeus, etc. A China claramente passou por uma “modernização”, muito rápida, ainda que talvez meramente parcial.
A melhor categoria para descrever a condição chinesa, portanto, é o conceito duginiano de “arqueomodernidade”. Segundo Dugin, o arqueomoderno é “um sistema no qual por fora tudo é bastante modernista, mas por dentro é tudo profundamente arcaico.” Em países arqueomodernos é como se houvesse dois níveis existenciais contraditórios e concomitantes: uma espécie de ordem oficial modernista, enquanto o substrato populacional permanece profundamente imerso no mundo tradicional.
Dugin usa o termo para explicar as contradições russas e, em minha opinião, ele se presta bem para descrever a China em que coexistem arranha-céus, megapontes, IA e drones, com o culto religioso a Mao (e aos deuses tradicionais), a prática quotidiana da medicina chinesa e o uso do feng shui para organizar os espaços públicos e privados.