Muitas pessoas acreditam ser necessário perdoar indistintamente toda forma de inimigo, mas será que isso se sustenta filosoficamente?


Quando Margaret Thatcher morreu, multidões foram às ruas no Reino Unido e, mais ainda, na Irlanda. Sem papas na língua, os catolicíssimos irlandeses celebravam: “A puta está morta!” (os mais educados trocavam “puta” por “bruxa”).
Em situações assim, os apóstolos do bom mocismo (em sua maioria, gente hipócrita e infeliz) apareciam para simular indignação diante das comemorações. Afinal, onde está o “perdão”, o “amor cristão”, a “misericórdia” de comemorar a morte de alguém?
Usualmente vemos o mesmo tipo de fenômeno se repetir. Morre alguma figura política relevante, um certo número de pessoas comemora, e rapidamente correm os fiscais da moralidade para admoestar contra tamanho “absurdo”.
Esses pretensos porta-vozes de Jesus Cristo, porém, deveriam recuar alguns passos humildemente e estudar um pouco melhor o tema. O argumento utilizado por eles é a injunção de “amar o inimigo”, de modo que deve-se cultivar uma certa abertura para o Outro mesmo diante das mais graves ofensas e injúrias contra si. Na medida do possível, deve-se buscar perdoá-lo e, certamente, condoer-se por sua alma diante da morte.
O problema aí é que os modernos tomam como dado o significado do inimigo bíblico, e acham que o mandamento apontado possui validade universal para todo e qualquer tipo de desafeto. Não é assim, e isso fica mais claro quando retornamos ao grego e ao latim.
Nós tendemos, nos tempos atuais, a usar a palavra “inimigo” com uma abrangência maior do que a palavra possuía nesses idiomas (relevantes para a exegese bíblica correta) e nas palavras do Nazareno. Os romanos distinguiam entre inimicus e hostis, tal como os gregos distinguiam entre ἐχϑρός (ekthros) e πολέμιος (polemios).
Inimicus/Ekthros é o inimigo privado ou pessoal. Hostis/Polemios é o inimigo público ou político.
O inimicus é a figura com a qual se tem uma desavença por motivos ou incômodos pessoais, por desentendimentos fundamentalmente particulares que não transcendem a esfera privada. É o vizinho fofoqueiro, o parente caloteiro, o colega difamador, o torcedor de time adversário que te agrediu, etc.
O hostis é a figura com a qual se está em uma relação de oposição por motivos essencialmente públicos. É o estrangeiro de um país hostil com o qual se está em guerra, o adepto de uma ideologia que se considera ruinosa para o povo, o traidor de uma causa política que atende aos interesses públicos, o inimigo da fé, etc.
É evidente que o inimigo com o qual Cristo quer que seus seguidores se reconciliam e amem é o inimicus, o inimigo pessoal, o “próximo” que te ofendeu, prejudicou, caluniou, atrapalhou. E isso é orientado por Cristo – entre vários outros motivos – pela sabedoria fundamental em relação à corrosão da alma humana pelo rancor e pelo ressentimento (há, portanto, algo de “nietzscheano” nessa injunção, que nem Nietzsche percebeu claramente [apesar de haver 1-2 aforismos em que ele parece intuir isso]).
Cristo não quer que amemos o hostis, o inimigo público, o inimigo político, o traidor da causa, o inimigo da fé, porque – em geral – não existe a disposição rancorosa e ressentida em relação a este. Simplesmente se entende que ele é um adversário a ser destruído e ponto final, “não é nada pessoal”. Ademais, estaríamos diante de um mandamento impossível por causa da dimensão política (e, portanto, potencialmente conflituosa) que é intrínseca ao homem.
Isso é demonstrado com clareza nas elaborações de Santo Agostinho no seu Enchiridion, bem como por São Tomás de Aquino na Suma Teológica, Questões 25 e 40, no sentido de que o “inimigo” a ser “amado” é o “próximo”, aquele que te odeia ou te fez mal. Simultaneamente, é legítimo guerrear e confrontar um inimigo em um contexto adequado de natureza política e sob determinadas condições de legitimidade. Acrescente-se, ademais, que no grego comanda-se: “ἀγαπᾶτε τοὺς ἐχθροὺς” (agapate tous ekthrous), usando-se um termo grego para amor (agapan) que significa mais caridade e benevolência do que qualquer outra coisa.
Aqui é necessário pontuar que se a distinção na Antiguidade quase sempre acompanhava a linha de demarcação entre nacional/estrangeiro, na Modernidade liberal-democrática, em que as sociedades estão fundamentalmente fragmentadas e sempre potencialmente à beira de uma guerra civil, é perfeitamente natural ressaltar essa distinção política em uma esfera interna e tratar o adversário político pelas mesmas concepções que legitimam a hostilidade ao estrangeiro hostil.
Mas isso nem é tão novidade assim, os romanos do “partido popular” (os cesaristas) como Marco Antônio e, especialmente, Augusto, na contramão do modo romano usual, passaram a tratar os optimates como “hostes” (o plural de hostis, aliás) mesmo que eles fossem cidadãos romanos. Em outras palavras, existe legitimidade em dar um caráter público e total à inimizade entre partidos, ou à inimizade contra um traidor de seu partido.
Em suma, não falta com qualquer dever de caridade o homem que comemora a morte de um inimigo público ou político.