A Inteligência Artificial pode produzir arte?

A IA é capaz de fazer arte? Essa é uma das questões mais interessantes dos dias de hoje.

Nos últimos dias apareceu uma moda virtual de converter fotos pessoais e históricas em desenhos no estilo do Studio Ghibli de animação japonesa, um estilo notório pela qualidade de suas histórias e que tem como principal nome o artista Hayao Miyazaki. A moda gerou, porém, inúmeras discussões sobre o futuro dos artistas, da IA, da arte em geral e uma série de temas correlatos. Mas sinceramente não vi quase nenhum comentário inteligente sobre o tema.

Na verdade, ao contrário, tenho a impressão de que como o homem contemporâneo não sabe o que é arte, o que é o artista, o que é o homem, o que é uma máquina, bem como não sabe uma série de outras coisas, ele tem enorme dificuldade para lidar corretamente com essa questão de “artes” feitas por Inteligência Artificial. Por isso, aliás, talvez apenas os filósofos, como Aleksandr Dugin, tenham oferecido leituras interessantes do fenômeno.

Vamos começar cindindo a questão em algumas camadas:

A primeira diz respeito diretamente à possibilidade da IA produzir arte. Me parece que o problema fundamental aí é que a maioria das pessoas simplesmente não sabe o que é uma obra de arte. Que se uma máquina produz um “desenho bonito” então ela está “fazendo arte”, não? Na verdade, a arte não faz sentido senão em relação com o artista. E aqui, não tendo o interesse de fazer uma longa abordagem sobre o “sentido da obra de arte”, me basta fazer um apontamento bastante direto de que a obra de arte é o resultado de um esforço do artista por apreender um aspecto da verdade e desvelá-lo, pô-lo a descoberto, tirá-lo da ocultação. O artista revela um pedaço da verdade através da obra de arte.

Mas ele não o faz como um carpinteiro produzindo uma cadeira, ou como um tecelão produzindo uma camisa, ou como um ceramista produzindo um vaso. O artífice ou artesão produz objetos acabados para a utilidade humana. Mas a obra de arte não “termina” com a conclusão do quadro, com a última nota incluída na partitura ou com a última batida do cinzel no mármore, porque a obra de arte é algo que quando é desvelado, segue crescendo e florescendo como uma planta. A relação do artista com a obra de arte é como a do jardineiro com sementes ocultas sob a terra. A arte é “pastoreada” pelo artista e ela floresce aos olhos da comunidade historialmente enraizada, porque como disse Ezra Pound “o artista é a antena da raça”.

Uma escultura de Bernini se distingue fundamentalmente de uma cadeira precisamente por causa essa dimensão historial que é pertinente à arte, mas não à produção artesanal. A revelação de um vislumbre da verdade não é feita para um artista onanista, mas sempre para um povo que contempla a obra de arte e é capaz de apreender a verdade pela mediação da obra de arte e de, inclusive, apreender significados e nuances que nem o artista vê e que o artista nem mesmo intencionou. E por isso a arte é viva, como uma planta, e segue frutificando e florescendo mesmo depois que o artista já estiver morto.

Poderia a IA proporcionar esse tipo de experiência? Imediatamente podemos dizer que não. A Inteligência Artificial é um objeto entre objetos. É um objeto bem feito, mas nada além de um objeto. Ela é tão pouco capaz de apreender qualquer aspecto da verdade quanto capaz de situar-se historialmente em meio a um povo enquanto parte de uma comunidade enraizada. Ninguém estará, 500 anos depois, debatendo as nuances, as intenções, os mistérios e os simbolismos ocultos de uma pintura produzida pelo ChatGPT. Ninguém estará debatendo, se o ChatGPT, enquanto autor de textos, revela influências católicas, pagãs ou gnósticas (como, por exemplo, nos pegamos debatendo sobre Tolkien). Não há nada ali sendo revelado, não há nada que possa “florescer”. Ela é como uma fábrica automatizada, capaz de produzir coisas acabadas a partir de algoritmos e bancos de dados pré-programados e nada além. Mesmo que você de a ordem “Crise uma pintura no estilo de Da Vinci, mas retratando uma mulher moderna”, o resultado será meramente derivativo, superficial e não será uma obra de arte. Será um entretenimento divertido…que será esquecido em questão de dias (certamente há imagens belas produzidas por IA, mas há alguma que seja memorável, que tenha causado uma profunda impressão em alguém? ainda não vi nenhuma, e mexo em IA há uns anos já).

A IA é incapaz de criar. A criação não se dá pelo embaralhamento de fatores numéricos. Este é um caminho fechado, perpetuamente fechado, para a IA. Ela nunca poderá criar porque ela nunca poderá ser humana.

Nesse sentido, Dugin está certo quando aponta que a IA não possui Dasein – e eis aqui o fio para a próxima reflexão – mas é pouco distinguível do homem que vive inautenticamente (e que, portanto, se fechou para a plenitude existencial do Dasein), na pura cotidianeidade, quase já como uma máquina.

Eu tenho a impressão de que para a maioria das pessoas não faria diferença a substituição de artistas de verdade por IA (há pessoas que querem ver filmes “feitos por IA” já) porque a maioria das pessoas simplesmente não é realmente capaz de contemplar uma obra de arte – já viraram “NPCs”, são das Man, autômatos reproduzindo rotinas cotidianas que pouco se distinguem da IA (exceto pelo potencial de, algum dia, despertarem). O autômato de carne (um golem, portanto?) não vê realmente diferença entre uma obra de arte do cinema e a última gororoba vomitada serialmente por Hollywood. Para não colocar em um âmbito inacessível de “filmes chatos”, a maioria não veria muita diferença entre Era Uma Vez no Oeste, do Sergio Leone, e As Loucas Aventuras de James West.

Assim, é compreensível a normalização da aceitação da IA. A maioria já consome “arte” produzida em massa por computadores e por autômatos de carne para um menor denominador comum. É a “arte” produzida pela indústria musical ocidental, é a “arte” produzida pelos grandes estúdios de cinema. Esse é o normal, essa é a “arte” dominante com a qual estamos plenamente acostumados há pelo menos uns 50 anos. Não há nada aí a contemplar, tampouco um contemplador, já que o povo não existe enquanto tal, ele foi substituído pela massa.

Agora bem, em que âmbito tudo isso afeta o artista? Por um lado, dizem que apenas os artistas comerciais se verão ameaçados. Por outro lado, dizem que todos os artistas (ou a maioria) será substituída e que o futuro da arte é a Inteligência Artificial. A realidade me parece mais misturada. Se não há mais contemplador digno então ninguém mais sabe distinguir o que é um artista de verdade do que é um autômato de carne produtor de imagens e sons. Então tanto os compositores da Anitta quanto artistas de verdade serão, em alguma medida, afetados pela IA.

Um estúdio para o qual determinados tipos de arte sejam meio e não fim (pensemos o papel da concept art em um estúdio de videogame) pode simplesmente abrir mão dos artistas para terceirizar a função para a IA. Alguns, inclusive, arriscarão terceirizar elementos do produto final para a IA, enquanto torcem para que ninguém perceba. Uma denúncia diz que roteiros de filmes de cinema já são produzidos por IA. Bem, são tão ruins (ou um pouco piores) quanto os de filmes comerciais dos anos 90. É importante lembrar, porém, que nem só de “obras-primas” vive o verdadeiro artista. Todo artista produz, também, comercialmente (e quando ele é bom mesmo nem por isso deixa de ser obra de arte). Da Vinci trabalhava para a aristocracia italiana. Quadrinhistas avantgarde trabalham também na Marvel e DC. O estreitamento dos caminhos do artista profissional inevitavelmente terá impacto sobre a capacidade dos artistas produzirem obras de arte desinteressadas.

Finalmente, vou abordar o que me parece mais perturbador em toda a questão: o entusiasmo pela IA e os propagadores de sua “inevitabilidade”.

Não vou discutir sobre como as coisas serão, porque o mundo é absurdo e mesmo as coisas mais inadequadas, bizarras e equivocadas podem de fato acontecer, já que vivemos no pior dos mundos e Mordor venceu.

Naqueles que creem que a IA pode substituir os artistas, além de uma incompreensão fundamental sobre o sentido da arte e sobre o papel do artista, existe um delírio que os cega para a impossibilidade de quantificar a qualidade. A IA é um objeto que não faz nada além de embaralhar dados com base em algoritmos a partir de determinados impulsos externos (os “prompts”). A IA produz “arte” como o autômato de carne embaralha ingredientes para “personalizar” um sanduíche do Subway. Não é isso que o artista faz. Primeiro, porque o artista é homem e enquanto homem ele não pode ser reduzido a número, a conjuntos de dados, a banco de dados, a algoritmos e equações. Apesar da pós-modernidade apontar nessa direção, não é isso que o homem é. O processo criativo não é como uma máquina caça-níqueis que você aciona com uma alavanca e ela embaralha informações para produzir algo original.

O artista como desvelador de um vislumbre da verdade exerce um opus que se dá na dimensão da qualidade. Você não pode reproduzir Thomas Mann por uma decodificação do vocabulário, intervalos entre determinadas expressões, tamanhos médios de parágrafos ou preferência por determinados temas. Não existe um algoritmo para as estátuas anônimas dos Deuses gregos, por trás de cujos olhos se consegue entrever a função divina específica. Não existe “desenvolvimento técnico” que possa dar conta da qualidade em qualquer âmbito da experiência humana. O mundo dos autômatos é fundamentalmente horizontal (mais dados, processamento mais rápido, hardware mais potente, etc.), e não vertical. Não existe transferência possível de um âmbito para o outro porque a qualidade jamais pode ser quantificada.

Por que vocês acham que apesar de séculos de “evolução técnica” ainda não temos um novo Mozart? Por que não há, nesses prodígios musicais asiáticos, um Mozart chinês? Porque não se trata de domínio aperfeiçoado de uma técnica quando estamos falando de Mozart, Beethoven ou Wagner, mas de uma potência demiúrgica à qual os artistas têm acesso…e as máquinas não têm, e jamais terão.

Aos entusiastas da tecnologia, portanto, incluindo aí os marxistas, lamento dizer: vocês estão errados. Errados, em primeiro lugar, porque não há inevitabilidade na tecnologia (e apenas NPCs e autômatos de carne pensam nesses termos). A técnica vai e vem. O homem já esqueceu inúmeras tecnologias e mesmo hoje esquece progressivamente uma série de conhecimentos de que ele dispunha há poucas décadas. Retornando à animação – onde a discussão começou – temos há quase 30 anos de “animação 3D” e qual é a grande conclusão dessa saga? A maioria das pessoas preferiria o retorno à animação tradicional. O “mais evoluído” não é o “melhor”. Toda animação tradicional ocidental nova que aparece faz sucesso (mesmo quando ela é cheia de defeitos, como Invencível) por um profundo cansaço que a animação 3D nos inspira. Hoje reconhecemos com tranquilidade que sim, Ralph Bakshi e Don Bluth são infinitamente superiores aos designers gráficos 3D nerds produzidos no Vale do Silício. E que, não, Miyazaki não vai ser superado pela IA.

A tecnologia, ao contrário do que dizem os marxistas, não vai emancipar o homem. Ela até hoje não o fez. O homem nunca foi tão limitado e prisioneiro em sua história mesmo com 300 anos de sociedade industrial. Não será a IA que vai libertar o homem quando a TV, o automóvel ou o caixa eletrônico não o fizeram. O avanço da IA, especialmente se, sob os aplausos dos autômatos de carne, ela substituir a maioria dos artistas, vai trazer apenas o empobrecimento da experiência humana. Para termos acesso a arte de verdade, feita por artistas, teremos muito menos opções, teremos que buscar muito mais – teremos talvez até que pagar muito mais. Afinal, tudo tende ao menor denominador comum e o mundo jaz no Maligno.

No Mundo da Quantidade será muito mais barato simplesmente pagar 3-4 especialistas em prompt para produzirem uma animação do que pagar toda uma equipe de artistas excêntricos. Agora bem, é por esse mundo que deveríamos ansiar? Por que e para quê?

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 42

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