A controvérsia filosófica entre marxismo e hegelianismo pode ser rastreada até uma contradição na interpretação de Platão? E de que forma o duginismo se situa em relação a Hegel?


Em um artigo recente [1], Alexander Dugin reflete sobre o “salto platônico” e as consequências metapolíticas que podemos deduzir nos dias de hoje. O salto platônico é aquele que vai dos fenômenos à Ideia, daquilo que vemos e sentimos para as coisas como elas realmente são. Ideia e fenômenos: é o que se chamou de dualismo de Platão, um dualismo relativizado pela participação (metaxu, um termo que significa “no meio de”, “no intervalo entre”). A participação é o fato de que os fenômenos participam da Ideia e só estão separados dela em aparência. Essa questão do suposto dualismo de Platão assombrará a filosofia ocidental.
Hegel, por sua vez, quer suprimir o dualismo entre o fenomênico e o objetivo (aquilo que é objetivamente, não subjetivamente, o real, o que é o real “em si”). Ele busca essa supressão do dualismo de uma forma diferente de Platão: pela dialética. O fenomênico é um “para si”, o objetivo é um “em si”. O “para si” é o que é subjetivo, o “em si” é o que é natureza e matéria. É a essa matéria, no sentido de quase equivalente à natureza (physis), que se refere quando se fala das filosofias materialistas[2]. Claro que não se trata, de forma alguma, de uma visão da vida centrada apenas nos interesses materiais, que é o materialismo no sentido vulgar.
Há, portanto, uma dialética entre espírito subjetivo e espírito objetivo. “Hegel”, explica Dugin, “sustenta que existe um espírito subjetivo que se revela através do espírito objetivo por meio da alienação dialética. A Tese é o Espírito subjetivo, e a Antítese é o Espírito objetivo, ou seja, a natureza. A natureza, portanto, não é a natureza, pois, segundo Hegel, nada é idêntico a si mesmo, mas tudo é alteridade do Outro, daí o termo ‘dialética’. Em outras palavras, há o Espírito subjetivo como tal que se projeta como Antítese. É assim que a história começa. Para Hegel, a filosofia da história é de importância fundamental, pois a história nada mais é do que o processo de desdobramento do Espírito objetivo, que adquire, a cada nova etapa, sua componente espiritual que constitui sua essência. Mas o primeiro ato do Espírito objetivo é ocultar seu caráter espiritual, encarnar-se na matéria ou na natureza, e depois, ao longo da história, essa alteridade do Espírito subjetivo retorna, por meio do homem e da história humana, à sua essência.”
A dialética é, portanto, o caminho de uma reconquista de si, mas de uma reconquista transformadora. Não de forma idêntica. Quando o espírito objetivo (o da natureza e das instituições humanas) se torna novamente espírito subjetivo, já não é mais o espírito subjetivo do ponto de partida. É um “em si – para si” (um objetivo subjetivizado) que é, ao mesmo tempo, um “para si – em si” (um subjetivo objetivizado). É um resumo pertinente feito por Alexander Dugin. Ele não é, propriamente falando, um hegeliano, mas, como todo praticante das filosofias da história, sabe que não se pode deixar de encontrar Hegel em seu caminho.
Alexander Dugin encontrou Hegel em sua trajetória. Dugin defende uma quarta teoria política. Ele rejeita o liberalismo, o marxismo e o fascismo. De fato, o fascismo não foi uma superação da oposição entre liberalismo e marxismo – e, mais genericamente, o socialismo, mas foi um anti-liberalismo socializante (e, em todas as suas formas, italiana, alemã e outras, morreu em 1945). O que Dugin parece desejar é uma síntese entre o estágio 2 das teorias políticas, o socialismo, e o estágio 3, o fascismo (ou, para usar um termo e uma noção não datados, o nacionalismo revolucionário em suas formas totalitárias). O fascismo foi uma reação contra o universalismo abstrato do socialismo. Mas essa reação foi distorcida por um nacionalismo esterilizante, um racismo ou pelo menos um racialismo biológico (o fascismo italiano não era o nacional-socialismo alemão e não era exterminador), por um vitalismo extrovertido que já dava um gosto do “bougismo” (bem analisado por P-A Taguieff) contemporâneo e da sociedade do espetáculo. A quarta teoria política de Dugin pretende ser uma síntese do melhor do socialismo, ou seja, o sentido de comunidade e do comum, e daquilo que esteve na origem de certas aspirações “fascistas”, ou seja, a vontade de se reenraizar na longa história de um povo e de dar novo sentido – um sentido compartilhado – à vida em uma civilização cada vez mais maquínica e massificada.
Além disso, a quarta teoria política alia a visão metapolítica à geopolítica. Dugin deseja um mundo multipolar, assim como vê o mundo como um pluriversum. Um mundo em que as culturas devem permanecer diversas. Ele opõe ao “Ocidente coletivo”, centrado ontem na Grã-Bretanha e suas dependências, hoje nos Estados Unidos, grandes espaços civilizacionais. O que diz respeito diretamente aos europeus é a Eurásia, a grande “ilha mundial” de Halford John Mackinder. A Eurásia não é apenas a Europa de Dublin a Vladivostok. É mais.
Alexander Dugin considera que os outros grandes espaços da Eurásia, como China e Índia, têm a vocação de formar um bloco contra os Estados Unidos e sua tentativa de criar um mundo unipolar. É também o desejo de uma coalizão das potências da Terra contra as potências do Mar (Estados Unidos e Grã-Bretanha). A Eurásia é, assim, não apenas um projeto geopolítico que consiste em não se deixar dividir pelas potências do Mar, mas um projeto espiritual de nova civilização, que seria pós-ocidental e escaparia à dominação da mercadoria e às ideologias da indiferenciação (wokismo, LGBTismo, etc.). É o eurasianismo, do qual um dos principais teóricos foi Nikolai Sergueievitch Trubetskoy (1890-1938)[3]. Nova civilização? O plural certamente se impõe. A quarta teoria política seria aquela que permite o florescimento de novas civilizações pós-mercantis.
A quarta teoria política de Alexander Dugin – que não pode ser separada dos escritos filosóficos de sua filha Daria Dugina, morta em plena juventude e ascensão de seu pensamento – seria o projeto de um novo tradicionalismo sem imobilismo. A ideia de um enraizamento dinâmico. Nessa perspectiva, pode-se definir a dialética de Dugin, uma dialética ternária, como Tradição-Modernidade-Nova Tradição (esta última etapa correspondendo ao que Hegel chama de espírito absoluto, último estágio de Tese-Antítese-Síntese). Mas como funciona essa dialética? É aqui que é preciso dar, para compreendê-la, um salto até o próprio Hegel.
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A dialética em Hegel não é apenas um método para encontrar a verdade. Ela é a própria essência do real. O ponto de partida em Hegel — ou melhor, “a origem” — é a lógica, ou a Ideia, ou ainda o espírito. “O espírito é […] a essência absoluta e real que se sustenta a si mesma” (Fenomenologia do Espírito, cap. 6, 1807). Porém, o que está na origem é o espírito não absoluto. Este é mediado pela natureza. Mas essa mediação é, por sua vez, mediada pela síntese, pela reconciliação da Ideia e da natureza no espírito absoluto. Essa síntese desempenha o papel do “terceiro homem” em Platão. O espírito absoluto é, para dizê-lo em termos próximos aos de Bernard Bourgeois (O vocabulário de Hegel, 2000), a unidade infinita do espírito infinito (a Ideia — ou a lógica, o logos — do primeiro estágio da dialética) e do espírito finito, segundo estágio da dialética, espírito finito que se apresenta sob a forma da natureza (ou matéria). A unidade infinita corresponde ao terceiro estágio, sintético, da dialética hegeliana.
Essa dialética resulta em uma concepção da história universal na qual as singularidades expressam todas um universal, e na qual todo universal inclui e fortalece as singularidades, lhes concedendo “um enorme direito”, diz Hegel. A história tem, assim, um sentido. “A história é o progresso na consciência da liberdade” (A Razão na História, póstumo, 1837). Porém, a observação da realidade torna difícil acreditar nesse ajuste implacável que ocorreria entre o homem e sua história por meio da mediação da natureza (ou ainda, como veremos, por meio da mediação do espírito objetivo, o segundo estágio de Hegel).
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O sentido da história é também um sentido do espírito: há, segundo Hegel, uma coincidência entre o espírito absoluto (o momento da síntese) e o espírito do mundo (ou espírito-mundo). “O espírito-mundo é o espírito do mundo tal como se explicita na consciência humana; os homens se relacionam com ele como indivíduos singulares ao todo que é sua substância. E esse espírito-mundo está em conformidade com o espírito divino, que é o espírito absoluto” (A Razão na História). O espírito do mundo é, portanto, idêntico ao espírito absoluto.
Essa coincidência deixa perplexos mais de um filósofo e até mesmo mais de um hegeliano. O processo pelo qual o Si mesmo se reapropria de si através da mediação histórica e de suas produções (arte, religião, filosofia) exige o conhecimento das verdadeiras engrenagens da história dos homens, e é isso que Marx pretende realizar, rompendo com o idealismo de Hegel — um idealismo especulativo (segundo Marx) que não vê a verdade (ou o ser — aqui é a mesma coisa) em nenhuma das coisas finitas que aparecem e que, portanto, se impede de compreender a história em nome de uma concepção do Todo que, no fim das contas, ignora os processos históricos. É esse totalismo historicista hegeliano que Marx rejeita.
Outro tema de questionamento: ao fazer do absoluto — do divino, do espírito — um sujeito, Hegel rompe com Espinosa, passando de uma metafísica da substância para uma metafísica do sujeito. Isso não levaria a um desencantamento do mundo, a uma relação entre o divino e o homem que eclipsaria a natureza? A uma metafísica da subjetividade, como diria Heidegger? Talvez seja isso o que falha em Hegel em relação a Espinosa, talvez também em relação a Marx, e certamente em relação a Schelling. Sem pretender responder plenamente a todas essas questões, destacaremos sua legitimidade. A dialética está de fato no cerne do pensamento de Hegel, e ela é contrariada. Pelo próprio totalismo de Hegel.
Outro ponto de questionamento: Ao transformar o absoluto – o divino, o espírito – em um sujeito, Hegel rompe com Espinosa, passando de uma metafísica da substância para uma metafísica do sujeito. Isso não levaria a um desencantamento do mundo, a uma relação entre o divino e o homem que eclipsaria a natureza? A uma metafísica da subjetividade, como diria Heidegger? Talvez seja essa a falha em Hegel em comparação com Espinosa, e também em relação a Marx, e certamente em relação a Schelling. Sem pretender responder plenamente a todas essas questões, destacamos sua legitimidade. A dialética está de fato no cerne do pensamento de Hegel – e ela é contrariada. Pelo totalismo do próprio Hegel.
Frequentemente, para caracterizar o método de Hegel, menciona-se o tríptico Lógica–Natureza–Espírito. Talvez fosse mais claro, para fins didáticos, dizer Ideia–Natureza–Espírito. Quando Hegel (1770-1831) fala da Ciência da Lógica[5], refere-se à ciência da Ideia. A lógica em Hegel é a Ideia (e percebe-se claramente a influência de Platão). Por isso, falaremos de Ideia em vez de lógica, já que o termo “lógica” tem hoje um sentido distante do antigo significado do logos. Esse tríptico Ideia–Natureza–Espírito – essa obra dobrada em três – seria a forma concreta da sequência Tese–Antítese–Síntese (Fichte). Sem dúvida, é um ponto de referência lembrar essa sequência, mas não é uma explicação. Esse tríptico[6] só faz sentido a partir de uma teoria da transformação que tem um nome: dialética.
O que é a dialética? Não apenas uma arte de raciocinar, mas uma arte particular, baseada na sucessão afirmação–negação–reconciliação. A dialética não é um jogo do espírito, mas, segundo Hegel, o próprio movimento do ser. Do ser em si, nada se pode dizer, pois ele é a possibilidade de tudo, a potencialidade de tudo – mas, justamente por isso, ele nada é. O ser é o nada. O ser não é, e é por isso que ele pode tornar-se tudo (Heidegger compreendeu perfeitamente esse aspecto do pensamento de Hegel[7]).
Um dos topoi (temas, campos de debate) da filosofia é a distinção entre o “para si” e o “em si”. É uma diferença entre as coisas como as vemos e as coisas como são, independentemente de nós. Para Kant, o grande predecessor de Hegel, o “para si” e o “em si” jamais coincidirão. Segundo Kant, não podemos conhecer as “coisas em si”. Por isso, Aleksandr Dugin fala de um pessimismo epistemológico em Kant. Já Hegel acredita que é possível superar essa dissociação entre o “para si” e o “em si” – e isso por meio de um movimento dialético.
Como se apresenta esse movimento? E, antes de tudo, quais são seus termos? A Ideia é o logos: a razão, a palavra, o “dizer” e, em sentido amplo, o pensamento. Ela é o que Hegel chama de espírito subjetivo – o espírito na consciência humana. Para esclarecer: o subjetivo é um “para si”, enquanto o objetivo é um “em si”. “Sinto-me maltratado” é uma avaliação subjetiva; “Isso é uma injustiça” pretende ser uma avaliação objetiva. Como observa Aleksandr Dugin[8], o espírito subjetivo consiste em colocar-se no lugar de Deus. Eu falo do meu ponto de vista, mas acredito que meu ponto de vista é legitimamente superior. É aí que se instala a consciência infeliz: eu gostaria de ser Deus, mas sei que não posso sê-lo. Assim, separado de Deus, vivo uma relação de frustração, de irritabilidade que me torna infeliz (sabe-se que, para os gregos, havia dois temperamentos opostos: o sábio e o irascível).
O espírito objetivo, por sua vez, situa-se a jusante da criação. Ele observa o mundo – não passivamente, mas reafirmando-o por meio de instituições, obras de arte, etc. Já o espírito subjetivo, predominante em nossa época de inflação dos egos, julga tudo a partir de si mesmo, não a partir das obras de uma civilização. Para Heidegger, é o reinado da subjetividade, que afirma o eu antes de validar o mundo. Como escapar dessa subjetividade? A resposta de Hegel: há sempre uma negatividade nas coisas. O que é isso? É o outro de uma coisa (seu avesso), aquilo que lhe falta. Por exemplo, se, em um total de 10 pontos, você tem 6, a negatividade de 6 é 4. A negatividade é uma carência – e, nesse sentido, um chamado. Toda positividade traz consigo uma negatividade, pois a positividade nunca é a totalidade.
Assim, a existência de um espírito subjetivo implica a existência de um espírito não subjetivo (portanto, objetivo) – seu contrário parcial – ou mesmo de um “não-espírito objetivo”: seu contrário total. Este é a natureza – que não é espírito, é objetiva –, e essa natureza inclui a natureza humana. Isso significa que o espírito subjetivo sai de si mesmo (exterioriza-se) para tornar-se natureza, para derramar-se nela. Chegamos, então, ao segundo estágio do movimento Tese–Antítese (Ideia–Natureza). A natureza, como espírito objetivo ou mesmo “não-espírito objetivo”, é para a Ideia o que o côncavo é para o convexo em uma superfície plana: seu complemento para alcançar uma totalidade.
O termo “totalidade” é essencial em Hegel. Trata-se de pensar o todo do mundo, do homem e do ser. Como em Parmênides, a totalidade e a perfeição são o ser pensado. Ser e pensar: o mesmo. Por isso, para Hegel, não há o incognoscível — pois, caso contrário, não poderíamos conhecer o todo. Essa é uma grande diferença em relação a Kant: para este, Deus, a alma e o mundo eram incognoscíveis, pertencendo ao domínio da metafísica — coisas que podiam ser pensadas, mas não conhecidas. Era o reino do indecidível. E a razão, assim como o mundo e a alma, escapa-nos. Segundo Kant, só temos acesso ao entendimento.
O principal reparo (entre outros) que se pode fazer a Kant é essa distinção entre entendimento e razão. O entendimento nada mais é do que a inteligência humana. No entanto, Kant coloca o entendimento abaixo da razão. Porém, não existe razão humana sem entendimento. Do contrário, a razão se reduz a uma razão calculante. Ao colocar a razão fora e acima do entendimento, corre-se o risco (que Kant não podia prever) de colocar a inteligência artificial acima da inteligência humana[9], quando a IA, justamente, não é inteligência. Em outras palavras: ratio não é noesis. Calcular não é compreender. Saber não é entender.
Para Hegel, a razão pode e deve apreender a totalidade, enquanto o entendimento só capta uma compreensão parcial dos fenômenos. A sensibilidade, o sentimento, a experiência vivida nos dão apenas indicações parciais do real. No senso comum, dizemos que essas impressões são “concretas” — por exemplo, quando alguém nos causa “boa impressão” (ou não). Mas, segundo Hegel, estamos errados: uma impressão é parcial e, portanto, não é verdadeiramente concreta. No sentido filosófico hegeliano, um sentimento é uma abstração, pois é uma impressão fragmentária. Evidentemente, Hegel é contraintuitivo — mas é assim que seu pensamento funciona. O que nos parece concreto é, muitas vezes, parcial e, portanto, abstrato para Hegel.
O verdadeiro concreto deve ser total, não imediato. No entanto, confundimos o concreto com o imediato. Retomando o exemplo, seria necessário refletir, de modo menos imediato, sobre as circunstâncias do encontro, sobre o motivo da boa impressão, sobre as intencionalidades envolvidas. Se seguirmos o método hegeliano (mesmo que depois nos afastemos dele), trata-se de passar do abstrato do entendimento ao concreto da razão. É o espírito que nos dará acesso ao real “verdadeiro”, ao real verdadeiramente concreto, ao real total — ao totalmente real. O que inicialmente nos parece concreto é, na verdade, abstrato.
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Nesse esquema, pode causar estranheza que a história ainda não tenha sido mencionada. No entanto, ela está incluída na natureza, pois a natureza do homem é ser histórica e cultural. “A natureza do homem é sua cultura”. A história está em toda parte: está no próprio movimento de transfusão do espírito subjetivo na natureza. Mas o estágio da natureza também é um estágio do espírito — é o estágio do espírito objetivo. A natureza é vista como um objeto, numa dialética sujeito-objeto (homem-natureza). Porém, veremos que esse objeto se ressubjetiviza.
A partir do espírito subjetivo — fundamentado na psicologia e na antropologia humana —, o homem desenvolve um espírito objetivo, ou seja, produz direito, instituições, leis escritas e não escritas, constituições, monumentos (que glorificam essas instituições) e uma moral. A história dos homens, que eles fazem conscientemente ou não (e que, segundo Marx, muitas vezes fazem sem saber), pertence ao espírito objetivo. Mas não são as histórias particulares que constituem o espírito objetivo — é a história universal. É sempre o todo que dá sentido ao singular. É também a mediação por algo mais completo, mais total, que confere significado ao singular.
A história tem dois sentidos: é o que nos aconteceu e é a maneira como contamos o que nos aconteceu. A noção de história, coletiva ou individual, tem, portanto, sempre dois significados: o que nos aconteceu não existe independentemente do relato que fazemos dele (um relato que, claro, tem várias versões). A história é, desde o início, uma noção mediada. Para que ela seja concreta, precisa ser total, ou seja, universal. E essa história universal tem um sentido, nos diz Hegel: sempre mais liberdade. Mas será que se trata de uma liberdade para fazer tudo o que se deseja? Certamente não. A liberdade é a consciência daquilo que deve ser, daquilo que não pode deixar de ser. O real não é “bom” em si mesmo, mas é o melhor em um dado momento, porque está inscrito em um movimento necessário. Nesse sentido, Hegel está na linha de Spinoza (tudo o que acontece deve acontecer) e de Leibniz (vivemos no melhor dos mundos possíveis, no momento em que vivemos. Isso não significa um mundo “bom e justo”). Quando Hegel diz, a respeito de Napoleão, em 1806: “Eu vi o Imperador, esta alma do mundo…”, é porque, para ele, a criação de um Estado forte, garantindo os princípios da Revolução Francesa de 1789, corresponde à imprescindível necessidade histórica do momento e é uma manifestação da liberdade do homem. Mas se o Estado é a manifestação do espírito objetivo, ele não é a manifestação do espírito absoluto, que reconcilia o espírito objetivo (do estágio 2) e o espírito subjetivo (do estágio 1).
Os homens fazem, assim, sua própria história, que culmina no triunfo do espírito sem obstáculos (é isso que “absoluto” significa). A história dos homens não consiste em seguir um suposto “direito natural”, que não existe. Para Hegel, o direito positivo, aquele que existe como produto histórico de uma sociedade, é superior ao imperativo moral categórico de Kant, pois o que é produto de uma evolução é superior ao que é decretado abstratamente (e o imperativo moral de Kant lhe parece abstrato). O homem do imperativo categórico corre o risco de se considerar uma “alma bela”, ou seja, de cair na autossatisfação sem pensar nas condições concretas da moral. Nesse sentido, a “alma bela” em Hegel – aquela que ele critica – é o oposto de uma “alma bela” no sentido que Goethe deseja.
O que tem valor é o que emana do espírito do homem, e não há segredo algum a ser buscado na natureza. Podemos chamar de alienação a exteriorização da Ideia na natureza e essa transformação do espírito subjetivo em espírito objetivo. Também podemos ver nisso um recuo. O espírito subjetivo se retira para dar lugar à natureza objetiva e ao espírito objetivo. O espírito subjetivo se retira de si mesmo para invadir o campo da natureza, metamorfoseado em espírito objetivo.
A partir daí, pode-se realizar uma terceira etapa, a da síntese. “Veremos que esse objeto vai se ressubjetivar”, como dissemos anteriormente. O espírito subjetivo (a Ideia, o pensamento), tornando-se objetivo (como a natureza o é), se reapropria da autoconsciência e se torna espírito absoluto (absoluto: sem obstáculos, plenamente livre). O que “absoluto” designa em Hegel não está de acordo com a etimologia, que significa “separado”. Pelo contrário, significa: “para além de toda separação”. Isso quer dizer que o Espírito (a maiúscula se impõe aqui) existe por si mesmo, sem ser condicionado por definições parciais. O Espírito é absoluto na medida em que é total, que é “totalmente o real” e “o todo do real”.
Em outras palavras, o objetivo e o subjetivo se reconciliam. O “para si” (a Ideia) tornou-se “em si” (a Natureza). O “para si” e o “em si” se reconciliam no Espírito (absoluto), que é um “em si para si”. Nesse estágio da síntese, a natureza se torna espírito e consciência de si mesma. Como o homem faz parte da natureza, é o homem que se torna consciente de si mesmo e do sentido de sua própria história dentro da natureza. O homem se torna, assim, consciente de sua história política, que é o que há de mais característico em sua humanidade. É a história das religiões, das artes, das ideias, da filosofia que se torna então legível pelo homem em uma transparência para consigo mesmo, que é própria do espírito absoluto.
A filosofia de Hegel é, assim, um dualismo (Ideia–Natureza ou espírito subjetivo–esprito objetivo) superado pela ascensão ao espírito absoluto. Também se pode ver essa filosofia como um monismo do espírito que se desdobra em dualismo e depois se reintegra em um monismo superior. Outra analogia possível é com a doutrina dos universais, que corresponde ao momento monista (a Ideia – estágio 1, e depois o Espírito – estágio 3), mas um monismo transcendente, e a dos nominais (o nominalismo, que afirma a pluralidade e começa no dois: Ideia–Natureza, espírito subjetivo–espírito objetivo), correspondendo ao momento dualista (com a Natureza – estágio 2) e, de modo mais geral, pluralista. Mas esse nominalismo é, então, um pluralismo da imanência (o da Natureza).
Para Hegel, a história dos homens aparece como o movimento pelo qual, de forma progressiva, os homens, após terem derramado todo seu espírito subjetivo na Natureza, reapropriam-se desse espírito ao ressubjetivá-la e ao “suprimir-conservar-superar” (Aufhebung) o espírito objetivo (aquele do estágio 2) por meio de um retorno consciente a si mesmos (estágio 3: a síntese, o espírito absoluto). Isso se dá pela criação de instituições cada vez mais perfeitas, de artes cada vez mais plenos, de pensamentos cada vez mais elevados no campo da religião (com o cristianismo) e no campo da filosofia. Em todos os domínios, trata-se de reunir o que pode ter se oposto. Assim, a arte é a união da forma e do conteúdo por meio do símbolo. A forma é limitada, o conteúdo é ilimitado. É o símbolo que permite significar o “sem-limites” ou o “fora-do-limite” (um sentimento, uma glória etc.) em uma forma limitada. Trata-se sempre de um método dialético (mesmo quando a palavra não está presente) que supera uma separação.
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O cristianismo é o paradigma da dialética de Hegel (que pouco usava o termo). Jesus é um Deus feito homem, logo, uma negação de Deus, mas, ao morrer na cruz, renasce, e isso é a Ressurreição. Ele se torna então o Cristo, ou seja, a negação da negação: o Deus feito homem (negação de Deus) que volta a ser Deus sem deixar de ser homem. Filho do Homem e verdadeiro Deus. É por isso que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. (Se procedesse apenas do Pai, não haveria dialética. Haveria apenas declinações da verticalidade absoluta do Pai.) Jesus Cristo: verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Toda a filosofia de Hegel está aí. Hegel chega, passando pelo dualismo Ideia–Natureza, a um monismo ao mesmo tempo transcendente (como a Ideia) e imanente (como a Natureza), que é o Espírito (absoluto) e que reconcilia a pluralidade com a Unidade, que se reencontra no final, mas elevada, em comparação com a Ideia unitária do começo — incompleta, mutilada, abstrata (pois o que é perfeito, realizado, concluído deve ser, para Hegel, o não abstrato, ou seja, o concreto).
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O pensamento de Hegel pode, evidentemente, dar origem a variantes e desenvolvimentos diversos, e foi isso o que aconteceu. É o que se chamou de hegelianismos de direita e de esquerda. É importante notar também que existe um hegelianismo “liberal” — ou melhor ainda, progressista-liberal — que considera que o fim da história, no sentido de sua finalidade, é a sociedade liberal. Essa é a posição de Alexandre Kojève[10] e Francis Fukuyama[11]. O hegelianismo “de direita”, por sua vez, está na filiação direta de Hegel (embora ele mesmo fosse alheio às categorias de direita e esquerda). Trata-se de um hegelianismo que considera que a ordem existente é legítima por princípio. Ele entende que o Estado prussiano é o mais aperfeiçoado da Alemanha, e mesmo da Europa, e o mais apto a preparar a unidade estatal alemã. Já o hegelianismo “de esquerda” — que historicamente se chamou Jovem Hegelianismo (Marx fez parte dele entre 1841 e 1844) — considera, ao contrário, que esse Estado é apenas uma etapa e reflete os limites históricos de seu tempo. Ele defende que o socialismo é o estágio superior da civilização, em certo sentido o equivalente ao espírito absoluto, embora escape a qualquer espiritualismo e idealismo.
Marx não se contenta em aplicar o método dialético de Hegel a um domínio pouco explorado por ele: a economia política. Sua abordagem metodológica difere da de Hegel. A dialética de Marx não apenas não parte das mesmas premissas que a de Hegel, como é distinta. Prova disso é esta observação de Marx: “O homem alienado de si mesmo é também o pensador alienado de seu ser, isto é, do ser natural e humano.” [12] Mas “o que é natural é sempre histórico”, dizia Heidegger. E o que é histórico está destinado a ‘ter que ser’, é chamado a ser. O histórico é ‘aquilo que deve advir’. É uma abertura para ‘o que está por vir’.
A compreensão do passado vale, assim, não por si mesma, mas por fidelidade a uma esperança: esperança cristã em Hegel, esperança de uma sociedade sem classes em Marx. Duas esperanças diferentes, mas ambas fundamentadas no estudo da história e do pensamento. Daí, contudo, surge uma divergência essencial. Monismo do ser (não imóvel, evidentemente) em Marx, monismo do espírito em Hegel. Para Hegel, é preciso reconciliar o homem com o espírito do mundo. Para Marx, é preciso reconciliar o homem consigo mesmo.
O “salto platônico” – aquele que vai da Ideia às aparências – mencionado por Aleksandr Dugin refere-se a Hegel, e apenas a ele. Marx é menos platônico que Hegel e mais aristotélico. E esse não-platonismo afasta Marx de Hegel. A questão da relação de Marx com Hegel é fundamental. Marx terá se contentado em inverter Hegel e colocar a filosofia de pé: as ideias depois da matéria e da natureza, e não o contrário? Vimos que Marx não se limitou a isso. Ele é mais monista que Hegel. Seu monismo não é um monismo de resultado (embora vise a uma sociedade sem classes), mas um monismo de partida (para Marx, o homem faz plenamente parte da natureza e do processo da vida).
Henri Denis criticou Marx por esse afastamento de Hegel [13]. A teoria da transformação do valor em preço de produção (O Capital, Livro III, seção 2, cap. 9 e 10 [14]) foi particularmente alvo de críticas nesse sentido (Eugen von Böhm-Bawerk, Michio Morishima, Ladislaus Bortkiewicz, este último, no entanto, validando em grande parte a análise de Marx). Muitas dessas críticas, vindas de marxistas, argumentavam que Marx teria buscado resolver, de maneira não-hegeliana – e portanto pós-marxista (!) –, um problema já formulado por Ricardo [15]. Independentemente dessa controvérsia de teoria econômica, o que nos interessa aqui é a dimensão propriamente filosófica: Marx está com Hegel, mas vai além dele.
Em Marx, hegeliano crítico, hegeliano de primeiro apoio (quando se escala, é preciso um primeiro ponto de apoio), o monismo de partida não é a Ideia (o logos, a razão, o pensamento). É a natureza ou a matéria. Por isso, Marx rapidamente se distancia de Hegel, a quem vê como um idealista no sentido filosófico, ou seja, alguém que crê na primazia da Ideia (assim como Platão). Idealista: aquele que acredita que o espírito precede a matéria e nela se degrada. Para o idealismo [16], a transcendência não pode se manter diante da imanência do real. Quando a Ideia se encarna, seu conteúdo se degrada. O que leva à condenação do real (cf. Clément Rosset sobre isso).
Para Marx, ao contrário, é o real material que é primordial e está na origem do mundo. Mas, ao mesmo tempo, a consciência dos homens faz evoluir o mundo material. O “materialismo” de Marx é, portanto, bastante relativo. Há uma interação entre as forças materiais, as relações sociais e as representações, ou seja, as ideologias (a maneira como as coisas são vistas) [17]. Simplificando, diremos: é materialista quem pensa que a matéria está na origem do real, mas que dela nasce o espírito. Materialismo: uma imanência que se torna ascensão em direção à consciência e ao espírito, permanecendo ligada à matéria, ou seja, às condições materiais do mundo, condições herdadas e produzidas pelo homem.
É essa concepção que Gueorgui Plekhanov resume, com o uso evidentemente inadequado de “socialismo científico”, mas compreendendo bem a necessidade de superar a oposição que Descartes faz entre a res cogitans e a res extensa:
“O materialismo, nos diz Plekhanov, na forma elaborada no século XVIII e tal como foi adotado pelos fundadores do socialismo científico, nos ensina que ‘não podemos conhecer uma substância pensante fora da substância dotada de extensão, e que o pensamento é, assim como o movimento, uma função da matéria.'”[18]
Por sua vez, Marx nos diz: a natureza, que também é a natureza humana, atravessa um momento de alienação, de desapossamento de si mesma, com o surgimento das sociedades de classes. Ela sairá dessa alienação através da criação de uma sociedade sem classes. Reencontramos aqui o movimento ternário característico de Hegel, ainda que com uma inversão do ponto de partida. Com Marx, temos a natureza e a matéria como ponto de partida. Depois, vivenciamos o momento do espírito falseado (religião, ideologia, consciência distorcida) e, em um terceiro estágio, a saída da alienação: o espírito entra em conformidade com a natureza e a emancipação do homem se realiza. Restabelece-se a unidade homem-natureza.
“O desenvolvimento ilimitado do capital destrói as duas fontes da riqueza: a Terra e o trabalho. Essa era uma das conclusões mais importantes de Marx, que buscava o caminho para restaurar o metabolismo entre o homem e a natureza”, escreve Denis Collin (entrevista ao Breizh-info.com, 25 de janeiro de 2025).
Assim, em Marx, o estágio 2 de Hegel (a natureza) torna-se o estágio 1. O estágio 2 de Marx é o espírito enquanto alienado e carregado de ilusões (ideologia, religião) – ou seja, o espírito subjetivo de Hegel, seu estágio 1. Esse espírito alienado já carrega, em Marx, potencialidades para compreender sua própria alienação. O estágio 3 de Marx é a adequação entre a natureza emancipada do homem, livre de sua autoexploração econômica, e a consciência humana, que é antes de tudo consciência de sua própria história. Como Hegel, Marx visa a reunificação do espírito subjetivo e do espírito objetivo, mas não como “espírito absoluto” (o estágio 3 de Hegel). Em Marx, trata-se de uma reconciliação entre o homem e a natureza (= a matéria). É uma reconciliação entre o espírito subjetivo e o espírito objetivo, mas isso pode ser dito de outra forma: é uma reconciliação entre o homem abstrato – ou seja, como espécie, como ser “orgânico”, produto da natureza – e o homem sócio-histórico – concreto, “genérico” (Gattungswesen)[19], na medida em que cria as condições de sua própria reprodução[20].
Vejamos com atenção o que Marx diz sobre essa noção de ser genérico. Notemos, antes de tudo, que essa noção caracteriza apenas o homem, enquanto os animais – e o homem “bruto”, abstrato, fora da história (que não existe mais) – são apenas seres orgânicos (razão pela qual o homem é um animal, mas também mais que um animal). Marx nos diz o seguinte:
“Ao produzir praticamente um mundo de objetos, ao moldar a natureza inorgânica, o homem se afirma como um ser genérico consciente, ou seja, um ser que se relaciona com a espécie como sua própria natureza, ou consigo mesmo como ser genérico. Certamente, o animal também produz. Constrói seu ninho, sua habitação, como a abelha, o castor, a formiga etc. Mas ele produz apenas o que lhe é imediatamente necessário para si e sua prole; produz de maneira parcial, enquanto o homem produz de maneira universal; o animal produz apenas sob o império da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo quando liberto da necessidade física, e só produz verdadeiramente quando está livre dela. O animal produz apenas a si mesmo, enquanto o homem reproduz toda a natureza. O produto do animal faz parte de seu corpo físico, enquanto o homem se coloca livremente diante de seu produto. O animal só cria conforme as necessidades de sua espécie, enquanto o homem sabe produzir conforme a medida de todas as espécies; sabe aplicar a cada objeto sua medida inerente e, assim, criar segundo as leis da beleza. É precisamente ao moldar o mundo dos objetos que o homem começa a se afirmar como um ser genérico (grifo nosso). Essa produção é sua vida genérica criadora. Por meio dela, a natureza aparece como sua obra e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto, a realização da vida genérica do homem. O homem não apenas se recria intelectualmente, em sua consciência, mas ativa e realmente, e contempla a si mesmo em um mundo por ele criado.” (Manuscritos de 1844).
Essa reconciliação (entre o ser orgânico e o ser genérico) se dá como assunção de um humanismo integral e afirmação de um monismo evolutivo. Tanto em Hegel quanto em Marx, há uma reconciliação final entre dois polos antagônicos, mas o ponto de partida não é o mesmo – nem o ponto de chegada.
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Vimos Hegel trabalhando como dialético. Mas também podemos analisá-lo em termos de “alto” e “baixo”, ascensão e queda, como numa escada. Para Hegel, o espírito subjetivo desce a um nível inferior na natureza – a passagem do estágio 1 para o estágio 2. Aqui surge a noção de negatividade, que gerou tantas fórmulas pretensiosas, mas que é bastante simples: a negatividade é um déficit, o Outro de uma coisa. Para Hegel, a referência é sempre a totalidade. Por exemplo, num conjunto de 10 bolas de petanca, se você tem 6, a negatividade é 4. É o que falta para alcançar o todo. Noutro registro, a negatividade de um fruto verde é o tempo para amadurecer, o sol e os cuidados necessários. A negatividade é também um apelo.
Assim, a natureza (estágio 2) é a negatividade do espírito subjetivo (estágio 1). Ela retorna ao espírito, surgindo então o espírito absoluto (estágio 3) como reconciliação entre o espírito subjetivo e objetivo. É uma respiritualização da natureza, primeiro separada do espírito, depois restituída a ele. Ou seja: o retorno do sentido e sua reapropriação.
Outra chave de leitura: a relação entre unidade e multiplicidade. No início está o Um (espírito subjetivo), depois a natureza múltipla, e finalmente o espírito absoluto que supera e inclui ambos. É a Aufhebung – superação-conservação por transformação e elevação. Como a morte de Jesus e sua ressurreição como Cristo. Trata-se de superar um conceito sem aboli-lo. Como ultrapassar um colo na montanha: ele deixa de ser objetivo, mas foi essencial para alcançar altitudes maiores.
Aufhebung aproxima-se de Überwindung (superação), embora o primeiro enfatize mais o “levantamento” da noção original. Traduz-se Überwindung der Metaphysik (de Walter Schweidler) como “Além da Metafísica”, e a obra de Carnap como “A Superação da Metafísica pela Análise Lógica da Linguagem”. O tom é duplo: superar é conservar transformando e tornar obsoleto. Conforme o autor, a ênfase recai sobre um aspecto ou outro.
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Permanece a dimensão originária do debate: o que está na origem? O espírito? “O absoluto é espírito”, afirma Hegel (Enciclopédia das Ciências Filosóficas III. Filosofia do Espírito). Ou seria a natureza, a matéria que, ao se complexificar, dá origem ao espírito como seu reflexo (mas um reflexo ativo), mediado pelo cérebro? Isto nos remete às diferenças entre Hegel e Marx já mencionadas. O que distingue Marx de Hegel não é o método dialético (que compartilham em seus princípios), mas o ponto de partida: espírito ou natureza? Hegel parte do espírito, Marx parte da natureza. O primeiro reserva lugar para Deus – lugar primordial e definitivo, pois Deus é o espírito absoluto. O segundo considera a ideia de Deus como uma ilusão.
Contudo, existe um caminho que reconcilia Deus – ou melhor, o divino, ou mais precisamente ainda, o sagrado – com a natureza, entendida não como dado imutável mas como processo eterno. Este caminho consiste em pensar “Deus sive Natura” (Deus ou a Natureza). É o que faz Spinoza na Ética (IV, 1677), após estabelecer este mesmo axioma (que antecipa os de Ludwig Wittgenstein) em seu Tratado Teológico-Político (1670). “Deus ou a Natureza” significa que não é preciso escolher, que não se pode escolher entre Deus e natureza porque são a mesma coisa. Deus e natureza são o ser infinito e eterno. Um é apenas outro nome para o outro. Nesta concepção, Deus está longe de ser uma pessoa – é o divino, é a divindade que constitui o mundo (ou a natureza). Corolário: não existe mundo exterior a nós, pois o mundo nos inclui. Deus nos inclui, a natureza nos inclui.
Ao ler Spinoza, podemos questionar: o verdadeiro divisor de águas está entre Marx e Hegel? Não estaria antes entre Hegel e os pensadores panteístas como Spinoza[21], ou cosmoteístas (como os antigos egípcios)[22]? E não haveria pontes a explorar entre Marx e Spinoza?[23] De qualquer forma, a controvérsia póstuma entre Marx e Hegel se ilumina surpreendentemente quando introduzimos a questão do divino, e mais amplamente do sagrado[24], mesmo que esta questão seja obscurecida em Marx por sua relação (crítica) com a religião. Pois o divino e, mais amplamente, o sagrado vão muito além das religiões institucionalizadas. Podemos dizer que ainda teremos muito a discutir sobre isso.
Notas
[1] A. Douguine, “Hegel et le saut platonicien”, Euro-synergies, 21 de janeiro de 2025.
[2] Veja, por exemplo, Friedrich-Albert Lange, Histoire du matérialisme, 1866.
[3] Trubetskoy lecionou na Áustria e foi perseguido pelos nazistas após o Anschluss. Não podemos concordar com sua subestimação da unidade das línguas indo-europeias. Por outro lado, não há dúvida de que a identidade russa é composta, tanto indo-europeia (pelo menos para o idioma russo) quanto fino-úgrica. Os fino-úgricos (Estônia, Finlândia, Hungria, etc.) são povos uralo-altaicos, uma categoria que também inclui os turcos (ou turco-tártaros) e os mongóis.
[4] Totalismo, não totalitarismo.
[5] A lógica é o pensamento e a declaração do pensamento. “No princípio era o Verbo” (logos), diz São João. A Ciência da Lógica de Hegel (1812-1816) – mais tarde conhecida como a Grande Lógica – compreende o Ser e a doutrina da essência (ambos constituem a lógica objetiva), seguidos pela doutrina do conceito (que é a lógica subjetiva). A Petite Logique forma a primeira parte da Encyclopédie des sciences philosophiques (1817).
[6] O filósofo canadense Jean-Luc Gouin fala do “Giroscópio Sujeito-Negatividade-Resultado-Reconciliação”, mas o resultado é reconciliação, o que é redundante. Podemos, portanto, falar em vez de Sujeito-Negatividade-Reconciliação, o que está de acordo com o esquema clássico que adotamos.
[7] “O nada não permanece como o mero oposto indeterminado do ser, mas se revela como tendo uma participação no ser do ser”, Qu’est-ce que la métaphysique, 1929.
[8] « Hegel et le saut platonicien », Euro-synergies, 20 janeiro 2025, art. cit.
[9] Cf. Paul Ducay, « L’IA n’est qu’une Raison artificielle », Philitt, 31 janeiro 2025.
[10] Introduction à la lecture de Hegel, Gallimard, 1947.
[11] La fin de l’histoire et le dernier homme, 1992.
[12] Manuscrits économico-philosophiques de 1844, trad. Franck Fischbach, Vrin, 2007, p. 174.
[13] Henri Denis, Logique hégélienne et systèmes économiques, 1983 ; L’ ’’économie’’ de Marx. Histoire d’un échec, 1992.
[14] Le Capital, Livre II et III, Folio-Gallimard, 2008. O Livro IV de O Capital é composto pelas Teorias sobre a Mais-Valia.
[15] O que Marx é acusado de ter retornado a Ricardo, de um “desvio ricardiano”. O suposto fracasso de Marx – que obviamente não deve ser excluído – ao lidar com esta questão é questionado por Adolfo Rodriguez-Herrera, Travail, valeur et prix, L’Harmattan, 2021; cf. também Alain Lipietz, « Retour au problème de la transformation des valeurs en prix de production », Cahiers d’économie politique, 7, 1982 ; Gilles Dostaler : Marx. La valeur et l’économie politique, Anthropos, 1978 ; Valeur et prix. Histoire d’un débat, Maspéro, 1978, L’Harmattan, 2013.
[16] A divisão entre idealismo e materialismo não se sobrepõe àquela que existe entre aqueles que vêem o homem como uma criatura e aqueles que pensam no homem como o criador de si mesmo. De fato, de um ponto de vista materialista, o homem cria a si mesmo de uma certa maneira, mas na medida em que é produzido pela própria evolução dos seres vivos e da matéria, não ex nihilo. O idealismo, que afirma a primazia da Ideia, e portanto da Ideia do homem, é, portanto, de fato, uma concepção mais criacionista do homem – um criacionismo idealista – (a Ideia precede e engendra a realidade e o homem) do que o materialismo. Para este último, o Homem [está] no rio dos vivos, segundo o título do livro de Konrad Lorenz, (1981). Para o materialista, o homem é uma criação contínua da natureza, não uma criação de Deus.
[17] Portanto, dada a importância das “superestruturas” ideológicas e o facto de não serem um simples reflexo das condições materiais (ao contrário do que diz o marxismo vulgar), parece difícil referir-se ao idealismo ou ao espiritualismo (uma nova forma de idealismo) bem como ao materialismo. O termo monismo, ou monismo dialético, parece mais adequado para explicar a realidade e seu movimento de polarização perpétua e superação de opostos. Coincidentia oppositorum, como diz Nicolau de Cusa.
[18] G. Plekhanov, D’une prétendue crise du marxisme, 1898.
[19] Este ser genérico é o homem na medida em que trabalha conscientemente para se tornar homem.
[20] Esta reprodução é tanto económica como não económica. Esses aspectos não econômicos são agrupados sob o nome de antroponomia por Paul Boccara.
[21] Daí a querela sobre o panteísmo (1785-1815) que começou com o debate entre Lessing, defensor das ideias de Spinoza, e Jacobi, que as combateu em nome da luta contra o ateísmo a que o panteísmo de Spinoza conduziria. Schelling mais tarde se tornaria o pensador do panteísmo e do monismo dialético.
[22] Veja como Heidegger. O Da de Da-sein não aponta para um cosmoteísmo?
[23] Franck Fischbach, La production des hommes. Marx avec Spinoza, Vrin, 2014.
[24] O sagrado envolve a natureza, a sexualidade, o sacrifício, os ideais pelos quais se está disposto a morrer, etc.
Fonte: Euro-Synergies