A Nova Síria: Rumo à Federalização ou ISIS 2.0?

O futuro da Síria pós-Assad é uma incógnita. Enquanto setores regionalistas pressionam pela federalização, milícias jihadistas ameaçam desestabilizar o novo governo.

Os processos atuais na Síria estão preocupando muitos atores externos, desde vizinhos (o que é bastante natural) e antigos aliados de Bashar al-Assad, como Rússia e Irã, até países ocidentais que temem que os processos de reconstrução estatal prossigam sem sua participação. A atual administração interina fala sobre democracia, mas, na prática, parece ter seus próprios planos para o futuro do país.

Por essa razão, há conversas nos bastidores sobre a possível federalização da Síria com a divisão em zonas de responsabilidade. O projeto não é dos piores, pois a Rússia já havia proposto uma opção semelhante ao governo de Assad, que ele recusou. Posteriormente, perdeu o controle de muitas áreas. Do ponto de vista da composição étnico-religiosa da Síria, a federalização é bastante lógica. Historicamente, durante o mandato francês (1921-1922), houve áreas de administração drusa (centrada em Al-Suwayda), alauita (Latakia) e dois territórios com centros em Damasco e Alepo, sem mencionar o Líbano, que se tornou um estado separado. O projeto de federalização também foi apoiado pelas Nações Unidas. Os Estados Unidos deram suporte ao projeto. Durante a guerra e até agora, os únicos a apoiar ativamente essa ideia internamente são os curdos.

Os opositores ao projeto, no entanto, levantam objeções. O governo sírio expressa ceticismo sobre uma possível “balcanização”, isto é, a alienação gradual de regiões e a desintegração de uma Síria unificada. Além disso, a própria oposição síria, anteriormente apoiada pelo Ocidente e por alguns jogadores regionais, se opôs à federalização. Atualmente, a Turquia também se opõe ao processo, já que controla várias milícias, sendo a maior delas a Hayat Tahrir al-Sham (HTS), um grupo de ideologia sunita com raízes na Jabhat al-Nusra e conexões com o ISIS e a Al-Qaeda.

Contudo, um projeto contrário à federalização pode levar à islamização (em moldes salafistas) e à neo-otomanização da Síria, incluindo repressões contra a população curda. Recentemente, o jornal turco Hurriyet relatou um alerta do presidente Recep Tayyip Erdogan, afirmando que, se o PKK-YPG não depuser as armas ou insistir em outra administração na Síria, uma grande operação militar conjunta com o estado sírio será inevitável. No norte da Síria, a Turquia controla grupos que aderem à ideologia salafista, incluindo indivíduos da Ásia Central, Cáucaso e China (uigures), e provavelmente os incitará contra os curdos, historicamente presentes nessa região. As Forças de Autodefesa (YPG) são o braço armado das Forças Democráticas Sírias (FDS), apoiadas pelos EUA.

A Turquia busca controle completo sobre Afrin, Azaz, Manbij e Tell Rifaat, o que provavelmente resultará em uma nova escalada de tensões.

A Turquia enfrenta desafios complicados, especialmente com o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA. Quanto ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que representa uma estrutura abrangente para curdos na Síria, Iraque e Turquia (e, em menor medida, no Irã), há indícios de que o PKK poderá ser reformado ou mesmo fragmentado para aliviar tensões políticas na Turquia. Entretanto, as facções curdas manterão coordenação estratégica para preservar sua identidade e moldar o futuro.

Os curdos veem a queda do governo Assad como uma oportunidade inevitável para reformatar as fronteiras da região, que, como herança da Primeira Guerra Mundial, desconsideraram seus interesses vitais. Assim como alcançaram autonomia no Iraque, agora tentarão garantir participação na reestruturação da Síria, a qualquer custo. Com um poderoso lobby internacional e apoio claro de vários países, suas aspirações podem muito bem ganhar formalização política.

Além dos Estados Unidos e, provavelmente, dos países da União Europeia, que apoiarão as ideias de federalização e, de fato, os curdos (bem como os cristãos) na Síria, Israel é outro ator regional significativo que poderá intervir nos processos atuais. Guiado por questões de segurança próprias, Israel já ocupou parte da Síria, justificando isso pela necessidade de expandir a zona de segurança próxima às Colinas de Golã (ocupadas muito antes). Independentemente de quem for o primeiro-ministro, Israel não desejará permitir que um projeto salafista-neo-otomano se estabeleça em suas fronteiras, especialmente considerando os laços entre Turquia, Irmandade Muçulmana e o movimento Hamas.

O Jerusalem Post também informou que Israel deve estar preparado para um confronto direto com a Turquia, diante das tentativas desta de restaurar o Império Otomano. Uma nota analítica apresentada ao primeiro-ministro, ao ministro da Defesa e ao ministro das Finanças de Israel destaca que o risco de união das facções sírias representaria uma ameaça à segurança israelense, e forças apoiadas pela Turquia poderiam, supostamente, atuar como intermediárias, criando instabilidade na região.

Por essa razão, Israel apoiará ativamente tanto os defensores da federalização e de um estado laico quanto seus antigos aliados, os curdos.

Após conquistar sua independência, Israel encontrou-se cercado por um ambiente árabe hostil, sendo forçado a buscar aliados regionais. O Irã foi um desses aliados antes da Revolução Islâmica de 1979. Outro foram os curdos, que Israel apoia ativamente desde o primeiro levante de Mustafa Barzani no Iraque, iniciado em 1961. Desde então, a cooperação entre curdos e Israel tem se desenvolvido de forma consistente.

Outro fator importante é a própria presença curda no estabelecimento israelense. Embora geralmente se acredite que apenas judeus étnicos residam em Israel (exceto pela minoria árabe), isso não é verdade. Há uma grande diáspora curda no país, bastante ativa na vida política. Isso se deve ao fato de que, durante as guerras árabe-israelenses, famílias curdas que professavam o judaísmo foram expulsas da Síria e do Iraque. Atualmente, há pelo menos 200.000 pessoas com raízes curdas vivendo em Israel. Por exemplo, o atual Ministro das Relações Exteriores, Gideon Saar, e o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir (que possui visões sionistas bastante radicais), são de origem curda. Além disso, muitos oficiais de alto escalão no exército israelense e em outras agências de segurança também são curdos.

Esses dados indicam o início de um novo e bastante desafiador período para a Síria. E, embora a presença mínima da Rússia ainda permaneça, é necessário desenvolver vários cenários de ação, incluindo uma avaliação do sistema de segurança regional. Considerando a iminente assinatura do acordo de parceria estratégica abrangente com o Irã, a questão síria não pode ser ignorada. Apesar de esses planos já terem causado preocupação nos Estados Unidos, onde consideram o novo acordo entre Rússia e Irã como um prelúdio para o retorno de grupos armados iranianos à Síria e assistência adicional ao Hezbollah libanês.

Fonte: Geopolitika.ru

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Leonid Savin

Leonid Savin é escritor e analista geopolítico, sendo editor-chefe do Geopolitica.ru, editor-chefe do Journal of Eurasian Affairs, diretor administrativo do Movimento Eurasiano e membro da sociedade científico-militar do Ministério da Defesa da Rússia.

Artigos: 40

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