Qual será o legado de Jean-Marie Le Pen?

Com a morte de Jean-Marie Le Pen, é necessário imaginar o impacto dele sobre o mundo político francês.

Aos 96 anos, porém lúcido e ainda fisicamente vigoroso, faleceu Jean-Marie Le Pen, que por décadas foi o líder carismático do nacionalismo francês (e inclusive daqueles que não eram parte da Frente Nacional).

Como costuma ser com figuras controversas, deu-se destaque exclusivamente às suas frases polêmicas e aos seus processos (e condenações) judiciais. É sintoma de nossa época e da influência que o jornalismo exerce sobre a difusão de informações e sobre o conhecimento histórico.

Não estudamos mais os personagens históricos, somos informados dos seus pontos polêmicos e politicamente incorretos para que “saibamos” que determinado personagem é infrequentável e persona non grata. Ainda que o fenômeno seja anterior às redes sociais, a todo momento vemos uma “tiktokização” condenatória dos inimigos da “democracia e direitos humanos”.

Nada de “Morre Jean-Marie Le Pen, líder histórico do nacionalismo francês”, e sim “Morre Jean-Marie Le Pen, polêmico líder da extrema-direita francesa, condenado várias vezes por racismo e antissemitismo”.

Em si, poderíamos até talvez tratar como uma nota de rodapé se reduzíssemos a figura do morto ao seu artigo da Wikipedia. Afinal, disputou eleições presidenciais 5 vezes. Perdeu todas e nunca alcançou nem os 20% de votos. Mas como o mundo real não é a Wikipedia (e menos ainda o TikTok), Le Pen merece alguns comentários.

Em primeiro lugar pelo óbvio. Pode-se discordar de tudo que ele dizia. Mas ninguém pode negar que em uma era de tirania do “bem” (e, portanto, da mentira), Le Pen apontava para o “rei nu”. Uma vez comentou que amava os turcos, desde que permanecessem na Turquia. Em outra data, respondendo a quem se lamuriava pela perspectiva de separação entre pais e filhos nas deportações, disse que por apreço à instituição familiar, achava que pais e filhos deveriam ser deportados juntos. Onde está o problema? Qual seria o escândalo? A resposta não tem lógica? Em outra ocasião, foi condenado judicialmente por dizer que o Holocausto foi um detalhe menor da Segunda Guerra Mundial. Condenação que parece mais pela pessoa que enunciou a frase do que pelo comentário em si. Afinal, qual foi a essência da Segunda Guerra Mundial? Não aprendemos que ela foi uma disputa geopolítica por hegemonia mundial, e não um conflito especificamente sobre os judeus (os quais foram, simplesmente, usados como bodes expiatórios pelos alemães)? Independentemente de polemismos vazios da mídia e infinitas condenações judiciais, Le Pen nunca se importou. Seguiu apontando para o “rei nu” tal como ele o percebia, e numa época de moralismo humanista, isso tem valor em si.

Deixado isso de lado, porque isso é pouco relevante, a figura que fica é uma que via a França não como uma nação “universal”, mas como a pátria dos franceses; portanto, não tanto a França de Voltaire e Robespierre, mas a França de Vercingetorix e Joana d’Arc. Por isso que, já nos anos 70, quando a situação da França era muito diferente daquilo que vemos hoje, ainda assim ele já era capaz de apontar para como as coisas se desenvolveriam, e que a imigração, se não fosse freada, culminaria no desaparecimento dessa ideia de uma França francesa (e nunca, jamais, “universal”) e, talvez, dos próprios franceses enquanto povo único, dotado de sua própria etnogênese singular.

Absolutamente na contramão de tudo aquilo que recebe ou assume o rótulo de “extrema-direita” nos tempos atuais, Le Pen nunca viu em Israel um aliado. Ao contrário, não apenas a via (bem como seu lóbi) como hostil aos interesses e à identidade francesa, mas apoiou até os seus últimos dias a causa palestina como sendo uma das mais importantes causas nacionalistas do mundo contemporâneo. Nisso, Le Pen foi representativo de sua geração, que viu figuras como o nacionalista belga Roger Coudroy (discípulo de Jean Thiriart) se voluntariar no Fatah e cair como o primeiro europeu morto pela causa palestina. Aqui, também, é necessário recordar que a “pista israelense” é uma das hipóteses mais prováveis no assassinato de François Duprat, primeiro presidente da Frente Nacional e que Le Pen seguiu homenageando anualmente, mesmo quando já aposentado.

Defendendo que a França abandonasse a OTAN (como na época de De Gaulle) e que os tratados da UE fossem revisados para recobrar a soberania nacional francesa, a sua linha econômica era nacional-liberal, defendendo redução de impostos e tarifas para proteger as empresas nacionais e punir as que tentem retirar empregos do país.

Em linha com a posição anti-OTAN, era defensor da vertente continentalista da geopolítica francesa, que advogava por um alinhamento continental voltado para leste, não para o outro lado do Atlântico. Não por acaso, portanto, Le Pen apoiou o levante do Donbass e a operação militar especial russa na Ucrânia, vendo nesses fenômenos a possibilidade de um novo despertar europeu.

Mas no que concerne o seu legado propriamente dito, ele não pode ser encontrado senão em seu partido, a Frente Nacional.

Presidindo o partido por quase 40 anos, seria um erro considerar que ele deslanchou apenas após a saída de Le Pen e da ascensão de sua filha Marine. Apesar de Le Pen ter alcançado um teto eleitoral, de 17%, foi o partido construído, ampliado e consolidado por ele, com inúmeros quadros de qualidade treinados, que herdado por Marine Le Pen pôde ser conduzido ao status de principal partido político francês. Jean-Marie Le Pen deixou para sua filha Marine um partido que apesar de ter pouquíssimos assentos na Assembleia Nacional, tinha 40 mil filiados acumulados ao longo de 40 anos, em muitos casos militantes de 2ª geração e com um grau de politização e ideologização maior que os quadros de outros partidos, inclusive dos mais numerosos.

A Marine bastou, apenas, aparar as arestas politicamente incorretas do partido, o que, naturalmente, levou à ruptura com o pai, mas levou também à ascensão meteórica dos nacionalistas.

Na prática, se o RN for conduzido à Presidência, o que é possível, porém difícil, será graças ao trabalho de 40 anos de Le Pen, e será com base nesse resultado – e não com base nos seus chistes e provocações – que ele será julgado pela história.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 41

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