A esquerda tenta se apropriar simbolicamente de um assassinato de um CEO, mas ela se esquece de toda uma tradição de violência anticapitalista que pouco tem a ver com a sua visão de mundo.
Quando Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare foi assassinado de uma maneira aparentemente bastante profissional, era óbvio que tratava-se de um ato de vingança.
Como CEO de uma das principais empresas de plano de saúde dos EUA, Brian Thompson era diretamente responsável pela mercantilização de saúde que submete decisões de vida e morte a considerações econômico-financeiras.
Como resultado da financeirização da saúde – em patente violação dos princípios hipocráticos da medicina helênica – cadáveres são empilhados pela mera impossibilidade de pagamento por um serviço cuja essência é não-comercial. Muitos outros mais acabam tendo suas vidas arruinadas e indo à falência para garantir a mera sobrevivência.
E isso é só a ponta do iceberg. Na medida em que a medicina é virada de cabeça para baixo, remédios e tratamentos passam a ter como finalidade não a cura, mas a geração de lucro (e, portanto, o prolongamento da doença ou a superação da doença pela provocação de novas patologias ou desequilíbrios). Sob essa lógica, era inevitável que eventualmente se chegaria à comercialização da eutanásia, bem como ao incentivo da eutanásia sob considerações puramente empresariais.
A mãe de Luigi Mangione era apenas uma entre muitas outras clientes da UnitedHealthcare que foram defraudadas pela empresa. Com um diagnóstico de neuropatia sofreu por anos com dores excruciantes e gastou dezenas de milhares de dólares enquanto era enrolada pelo plano de saúde – sempre procurando brechas para não ter que arcar com as suas responsabilidades perante seus clientes.
Ao sofrimento de sua mãe, Luigi Mangione decidiu responder com o que ele chamou de “ato de guerra” e assassinou Brian Thompson.
“Atos de guerra”, naturalmente, são atos políticos e foi nesses termos que Mangione quis enquadrar o assassinato do CEO de planos de saúde. E não há a menor dúvida, Mangione assassinou Thompson como a assinatura sangrenta de seu pequeno manifesto anticapitalista.
Isso bastou para ser exaltado como herói pela esquerda ao redor do mundo.
Afinal, ele matou um CEO de uma grande empresa de planos de saúde privados, então ele certamente era de esquerda, certo?
A realidade é que existem inúmeras escolas anticapitalistas que não devem nada ao marxismo ou mesmo à “esquerda” em geral. Mas como, de um modo geral, a esquerda vive em uma bolha intelectual ela nem mesmo reconhece que possa existir algo de valor fora de si mesma.
Mangione, em primeiro lugar, era absolutamente dedicado ao próprio aprimoramento físico e à disciplina comportamental, o que o afasta de forma quase incontornável da visão neomarxista mainstream do culto ao corpo como sendo “fascismo”.
Mas mais reveladores são as suas leituras e interesses literários. Além das toneladas de livros de aprimoramento e autoajuda, Mangione em suas resenhas de livros e seleções de leitura deixa transparecer também uma posição crítica em relação à alimentação industrial, à pornografia, ao antinatalismo e ao igualitarismo de gênero.
Ele parece ter, também, descoberto há algum tempo o “Manifesto Unabomber” de Theodore Kaczynski, em cuja resenha ele anotou: “Violência não resolve nada” é uma afirmação repetida por covardes e predadores, enfatizando o papel transformador da violência e condenando a postura passiva diante de ameaças. Mangione exalta o gênio de Kaczynski, não apenas enquanto escritor, mas também como revolucionário.
Enquanto “ato de guerra”, Mangione potencialmente imaginava estar iniciando uma movimentação ou tendência mais ampla, através da qual personagens como Brian Thompson seriam subjugados pelo medo da morte repentina. Mangione, portanto, abraçou o espontaneísmo armado como via revolucionária, um caminho historicamente fracassado, mas que não deixou de servir de inspiração no plano puramente ético da ação revolucionária.
O espontaneísmo armado, típico do anarquismo do século XIX e do neofascismo dos anos 60-80 do século XX, despreza considerações estratégicas em prol da crença na transformação da realidade por meio do exemplo da violência contra o inimigo.
O perfil de Mangione, portanto, longe de ter qualquer conexão de sentido com o neomarxismo, se aproxima de uma espécie de conservadorismo revolucionário que descamba para o espontaneísmo armado pela ausência de um movimento revolucionário.
A esquerda, por sua vez, exalta Mangione porque ela está totalmente órfã de heróis capazes de coragem física. Por isso, ela está em negação, cultuando como se fosse sua uma figura que, claramente, nutria máximo desprezo tanto pelo capitalismo quanto pela esquerda contemporânea.
Um Luigi Mangione tupiniquim teria muita ocupação em Brasília.