O Mito de Narciso na Era do Espetáculo: O Filme “Substância”

O filme Substância apresenta uma narrativa que expõe o pavor do homem ocidental em relação à morte e a obsessão com a preservação da juventude.

No filme “A Substância” uma celebridade hollywoodiana com uma carreira em decadência por conta do seu envelhecimento, interpretada pela Demi Moore, decide passar por um procedimento misterioso que faz surgir a partir do corpo dela um segundo corpo, mais jovem e mais belo.

A sua consciência é transferida para este segundo corpo, mas ela só pode ficar no segundo corpo por um prazo determinado de 7 dias, ou o mesmo começa a se degradar. No sentido inverso, ela precisa retornar ao segundo corpo em 7 dias para que, inanimado, o segundo corpo perdure.

Para “animar” o segundo corpo, ela precisa retirar do primeiro corpo o fluido espinhal e injetá-lo no segundo corpo. Qualquer desvio em relação ao procedimento e em relação ao gerenciamento do tempo de uso de cada um dos corpos acarreta consequências físicas irreversíveis.

Um “tema” típico da Modernidade é a transição de uma relação afirmativa do homem com a morte para uma na qual o homem é dominado pelo pavor da morte, e nega a sua mera possibilidade, querendo constantemente escapar às consequências do tempo e da morte como horizonte inevitável.

Pensemos, por exemplo, a relação do homem homérico com a morte. Aquiles sabia que morreria se fosse a Tróia porque isso lhe havia sido profetizado, mas sem ir a Tróia ele não alcançaria a glória pela qual ansiava. Ou, evento posterior, toda a pedagogia socrática em relação à morte, como testemunhamos na “Apologia”, na qual o filósofo escolhe a morte, aceita a morte, explica a morte a seus discípulos, gerencia o momento e as circunstâncias da morte e dá morte a si mesmo pelas próprias mãos.

Nas antípodas disso temos os bilionários contemporâneos, como Bryan Johnson, que investem toda a sua fortuna em artifícios para esticar a própria vida, suspender o envelhecimento e evitar a morte. Bryan Johnson, por exemplo, faz inúmeros procedimentos diários, os quais incluem até a ingestão do sangue do próprio filho.

Jeff Bezos, por sua vez, está investindo milhões em empresas de biotecnologia e farmacêutica, como a Altos Labs, com o objetivo de “derrotar a morte”. As iniciativas nas quais Bezos está investindo trabalham com manipulação do DNA humano para aprimorar a capacidade de regeneração celular do corpo.

Peter Thiel criou a Methuselah Foundation, dedicada à estender à vida humana. Sem surpresa, o projeto de Thiel tem uma veia mais transumanista. Ela se desdobra em pesquisas sobre impressão 3D de órgãos ou partes sintéticas para substituir partes humanas decadentes, bem como em manipulação de DNA e substituição de funções orgânicas por aparatos tecnológicos.

Toda busca pela imortalidade só pode resultar na negação do homem (e, portanto, em tragédia) na medida em que a morte, como ensinou Heidegger, é parte daquilo que define o homem enquanto tal. Aceitar a morte e conduzir uma existência de modo que a morte esteja inserida em uma totalidade dotada de sentido e de valor que vão além da própria existência individual é um dos elementos que dá os contornos da autenticidade à vida humana.

Mas o filme “A Substância” tem um escopo mais concentrado no Mito de Narciso, e na maneira como o Mito de Narciso é atualizado no capitalismo pós-moderno, bem como nas promessas transumanistas de nossa época.

Narciso, como todo mundo sabe, é um personagem da tradição helênica que encontra sua ruína ao se apaixonar pela própria imagem.

O Mito de Narciso é um dos mitos motores do capitalismo, cuja dimensão narcisista não se expressa apenas nas expressões óbvias da sociedade do espetáculo, mas na própria autossedução do Capital em sua atividade incessante de projetar constantemente novos objetos de culto e consumo, incapaz de moderar a si mesmo. E essa autossedução infecta, por sua vez, todos que vivem sob o capitalismo, que passam então a uma busca permanente pela “novidade” de consumo apta a certificar o próprio valor.

Retornando à sua dimensão própria vinculada à sociedade do espetáculo, a sociedade moderna se transformou em um cenário de permanente substituição da realidade por simulacros, em que o parecer vale mais que o ser. Tudo é entretenimento e distração, e essa distração pelo entretenimento se dá pela sucessão permanente de novas imagens aptas a suspender o tédio humano.

É por isso que Elisabeth Sparkle, a protagonista, não “serve” mais, por mais que ela ainda seja bela. Ela representa o passado, o tédio, a previsibilidade, e por isso não há mais espaço para ela na máquina de “destruição criadora” permanente do Capital.

Uma outra característica interessante do filme é como existe uma dimensão claramente infantil no comportamento e expectativas da protagonista, o que se expressa de maneira mais clara quando ela é “Sue”, o segundo corpo.

O narcisismo representa uma fase no desenvolvimento da criança, aquele período no qual ela se crê onipotente e centro do universo, que é rompido principalmente por ação do pai se interpondo entre a mãe e a criança para apresentá-la o mundo. O narcisista vive em uma bolha, carente de conexão com a realidade objetiva e só tem olhos para si mesmo.

É perceptível no filme como a protagonista não parece ter qualquer conexão com qualquer personagem apto a representar para ela um “fundamento” estável no “mundo como ele é”. O mais próximo disso é o personagem amigo de adolescência, interessado nela, com o qual ela marca um encontro mas que ela deixa esperando. Ao rejeitá-lo, ela rejeita uma vida “real” em prol do espetáculo permanente.

É desnecessário dizer que a protagonista viola todas as regras do tratamento experimental, e passa a querer privilegiar o segundo corpo em detrimento do primeiro. Ela retira cada vez mais fluido espinhal para ficar cada vez mais tempo no segundo corpo, o que vai tendo consequências desastrosas para o seu corpo original.

Como eu falei em “mitos”, a dinâmica de passar metade do tempo como “velha” e metade do tempo como “jovem” me traz à mente a relação Deméter-Prosérpina, em que Deméter “envelhece” no período em que sua filha Prosérpina está no Hades, e volta a florescer e rejuvenescer (e com ela o mundo) toda vez que Prosérpina retorna do submundo.

Elisabeth Sparkle é o inverno, enquanto Sue é o verão. Incapaz de aceitar o inverno, ela quer esticar o verão indefinidamente, mas todo esforço por esticá-lo gera um rebote cada vez mais forte que rompe a lógica natural do equilíbrio cíclico.

Existe ainda um outro elemento interessante no filme em sua perspectiva madura sobre o vínculo entre corpo e personalidade. A ingenuidade cartesiana pensa o homem como “fantasma na máquina”, mas em “A Substância” a personalidade da protagonista se desenvolve de forma diferente quando ela está em corpos diferentes, a ponto de, efetivamente, ela se cindir em duas pessoas completamente distintas e, no clímax, opostas, inimigas. Há aí uma certa raiz nietzscheana que fisiologiza a personalidade, tornando-a indissociável da forma e das afecções sensoriais.

Essa reflexão sobre a dependência física da personalidade é interessante porque põe em dúvida todo projeto de imortalidade ou de sobrevivência pós-morte. Se corpo e personalidade são uma só coisa, modificações corporais alteram a personalidade e a destruição do corpo destrói, também, a personalidade enquanto totalidade. Sobre isso, leiam sobre os transplantes de órgãos que acabam resultando em mudanças de personalidade nos recipientes.

Em suma, trata-se com um vínculo interessante com as reflexões contemporâneas sobre o transumanismo e, simultaneamente, com lições clássicas sobre húbris e desmesura.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 39

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