O Hezbollah está organizado de modo a valorizar as virtudes guerreiras. Cada um de seus membros, incluindo clérigos e políticos, deriva a sua posição de seu exemplo no campo de batalha. Para o Hezbollah, apenas aqueles que arriscam as suas vidas na jihad devem poder liderar a comunidade.
Durante a Primeira Guerra Mundial, intelectuais e militantes políticos da esquerda “intervencionista” italiana – aquela que defendia a entrada da Itália na guerra e se colocava contra o “neutralismo” do Partido Socialista – desenvolveram o conceito de “trincheirocracia” como modelo para uma “Itália do Futuro”.
A “trincheirocracia” era a ideia de que apenas aqueles que haviam lutado na guerra deveriam poder ter o direito de participação política na condução do Estado. Apenas aqueles que haviam sangrado e se arriscado pela nação poderiam servir como o fermento para uma nova “aristocracia” popular.
Forjados no crisol da guerra, ferramenta apta para depurar as virtudes e as qualidades dos homens, os veteranos estariam dotados de uma “consciência popular” superior, porque apenas eles teriam estado face-à-face com a morte como uma fraternidade guerreira voltada para o mesmo horizonte existencial.
Essa noção informou tanto o fascismo quanto o antifascismo italianos, fenômenos cuja raiz é paramilitar e está ligada intimamente à experiência da guerra.
Naturalmente, a ideia de uma estrutura política fundada nas virtudes guerreiras não é tão recente assim, tampouco exclusiva da Primeira Guerra Mundial. Ela aparecerá tanto na Antiguidade, como na experiência espartana, quanto na ficção científica, como em Tropas Estelares.
O filósofo russo Aleksandr Dugin tem comentado desde o início da operação militar especial que a “verdadeira Rússia” é aquela que está engajada na operação (inclusive em sua “frente interior”), e que os veteranos da operação militar especial devem constituir uma nova elite, em substituição à elite decadente, corrupta e liberal que ascendeu em prejuízo da Rússia, durante os seus períodos de maior crise e sofrimento.
Mas me chama a atenção, também, como a hierarquia geral do Hezbollah representa muito bem esse tipo de ideia.
Recentemente, alguns líderes do Hezbollah foram mortos em bombardeios israelenses. Foram prontamente substituídos por outros líderes saídos das fileiras. Uma rápida revisão das biografias de líderes do Hezbollah, tanto mortos quanto vivos, revela que a maioria esmagadora das lideranças do Hezbollah, inclusive as políticas e religiosas, passaram pelo braço militar do partido.
Do Conselho Shura ao Conselho da Jihad, a maioria dos líderes tiveram participação direta nos conflitos nos quais o Hezbollah esteve envolvido desde seu nascimento nos anos 80, ou nos conflitos que precederam a sua fundação.
O que isso significa para o futuro do Hezbollah e desse conflito como um todo é muito simples:
Na medida em que o Hezbollah dispõe aproximadamente de 100 mil homens, os quais estão engajados em ações militares principalmente no Líbano, Síria e Iraque, em permanente rotação de quadros, e na medida em que o “martírio” opera como motivador de alistamento, em vez de dissuasão, o partido dispõe de um material humano amplo em estado de guerra permanente, no mínimo, desde o início da Guerra Síria.
Existe uma lógica estrutural que vai levando combatentes das linhas de frente até posições de treinador e de comandante. Os veteranos do Hezbollah que exibem vocações clericais, são enviados a seminários importantes, os que exibem vocações políticas, passam para o braço político-assistencial e eleitoral do movimento.
Nesse sentido, a morte de líderes representa simplesmente a oportunidade de ascensão de novos líderes, todos forjados no crisol da trincheira. Como o Hezbollah opera em unidades pequenas, e não em formações massificadas, existe uma maior preocupação com o desenvolvimento do “espírito de liderança” em cada soldado. Qualquer soldado do Hezbollah pode, em algumas décadas, vir a se tornar o seu Secretário-Geral.
Na prática, essa lógica tem evitado o aburguesamento do Hezbollah, fenômeno pelo qual passou parcialmente o Fatah, especialmente após o assassinato de Yasser Arafat, e que acaba sempre conduzindo a um caminho derrotista e de “acomodação” com o status quo.
Com essa lógica de “trincheirocracia” e com fileiras diariamente alimentadas com “sangue novo” após cada martírio, o Hezbollah está mais bem posicionado que o próprio Estado de Israel para perdurar por um longo tempo, independentemente de quantos de seus líderes sejam assassinados.