Análise da Queda do Império Americano à Luz da Obra “La Défaite de l’Occident” de Emmanuel Todd

Hannah Ruckert revisita a análise feita por Emmanuel Todd em ‘La Défaite de l’Occident’, onde o intelectual francês explora as razões da queda iminente do império americano. Todd associa essa queda à perda de valores religiosos e um deslocamento de influência geopolítica, argumentando que mudanças na estrutura familiar e na religião são cruciais para entender as transformações sociais e políticas no Ocidente.

Emmanuel Todd é um intelectual francês cujo trabalho se estende por diversos campos: sociologia, antropologia, história e ciência política. Seu trabalho publicado em 1983, “The Explanation of Ideology: Family Structure and Social Systems”, foi visionário por quebrar o paradigma material compartilhado tanto pelo liberalismo quanto pelo comunismo, de que é a economia a superestrutura, ou seja, fator basilar, pela qual as relações humanas são primariamente moldadas. Nele, Todd argumenta que é a estrutura familiar, não apenas a econômica e a religiosa, uma das principais influências sobre a dispersão de determinadas crenças, ideologias, eventos históricos e sistemas políticos dentro de dado território.

Sua pesquisa, além de bem recebida pelas humanidades, gerou certa intriga entre cientistas da STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Um exemplo é o engenheiro Vincent Seiss, que, em 2019, escreveu o artigo “Mathematical Modelling of Emmanuel Todd’s Origin of Family Systems with a Diffusion Reaction System“. Nesse trabalho, Seiss faz uso das ideias de Todd para modelar a “matriz mental” gerada pelas relações familiares na Europa. Grosso modo, o cientista modelou diversas de suas hipóteses. Uma delas sugere que famílias cujo cerne reside em um aspecto nuclear gerariam ideais liberais, como observado na esfera anglo-saxã. Por outro lado, famílias de característica comunitária seriam mais suscetíveis a ideias socialistas, uma tendência verificada na Rússia, China e Vietnã.

Com esta breve introdução, faremos aqui uma revisão literária, acompanhada de uma análise aplicada ao cenário geopolítico atual a partir de sua obra publicada em 2024, “La Défaite de l’Occident”, cujo enfoque, além de geopolítico, também destaca o papel do desaparecimento da religião nas diversas civilizações ocidentais. O autor argumenta, por exemplo, que o desaparecimento do protestantismo na esfera anglo-saxã gradualmente conduziu suas populações ao niilismo civilizacional.

Como ávido cientista político, Todd inicia o livro comentando sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, caracterizando-o não como uma guerra entre nações historicamente irmãs, mas como um embate indireto entre os russos e os países membros da OTAN, juntamente com as nações que compõem a esfera anglo-saxônica. Para entender melhor as motivações desse conflito, o autor discute a conversão do eixo de influência do domínio franco-germânico para um eixo de influência britânico-polonês-ucraniano. Ele argumenta que a Alemanha, por meio da sabotagem de seus próprios aliados, perde uma de suas principais fontes de energia, fornecida pela Rússia, passando então a depender de um novo patrono, a Noruega.

O autor destaca que, embora a Noruega e o Reino Unido não façam parte da União Europeia, isso não impede essas nações de exercerem uma influência significativa no conflito. Essa influência se deve ao fato do novo eixo Londres-Varsóvia-Kiev ser fortemente controlado por Washington, fazendo com que a influência americana seja mais significativa do que a da própria União Europeia. Essa gradual mudança de eixo teria se concretizado como uma medida de retaliação, pois em 2003, em meio a uma conferência com a Rússia, a Alemanha e a França chegaram a uma resolução unificada de ir contra a invasão do Iraque. Esse eixo de coalização Franco-Germânico na época gerou uma fissura ideológica em uma então neutra União Europeia.

Foi a certeza de uma resposta militar bruta e eficiente por parte dos EUA que fez com que uma Europa preocupada com sua Política Externa e de Segurança Comum (PESC) eventualmente cedesse espaço retórico para permitir a invasão do pequeno país localizado entre o rio Tigre e Eufrates. Contudo, os americanos ainda lembram do fato de sua posição mais ardente ter vindo de um aliado, a França. Os franceses, bem como os alemães por anos já acusavam os EUA de negligenciarem as decisões da ONU em prol de seus interesses de “defesa” nacional.

Portanto, a mudança do eixo de influência nas mãos dos Ingleses, Poloneses e Ucranianos passa a ser necessária, visto o crescente enfraquecimento do exército americano e sua consequente capacidade de persuasão. Atualmente, os EUA, não possuem mais condições de garantir vitórias militares em solo inimigo, dado o notório enfraquecimento de sua indústria militar, portanto faz-se necessário a alteração de um eixo de influência o qual seja mais facilmente manipulável.

Por meio de uma visão estritamente geopolítica, Todd elucida um “fenômeno extraordinário” exclusivo ao Ocidente, o tipo de fenômeno que deixa aqueles aficionados por geopolítica, reagirem diante de um imperador sem roupas ao constatá-lo. Em junho de 2023, inúmeros relatórios oriundos do Pentágono anunciaram a deficiência do complexo industrial americano, o superpoder mundial, em suprir com armas e armamentos ao seu principal protégé no continente europeu – a Ucrânia.

O fenômeno, segundo Todd, é extraordinário, pois o produto interno bruto da Rússia e de Belarus representam apenas 3,3% do PIB ocidental (Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Coreia). Esse pequeno valor percentual seria, contudo, capaz de ultrapassar a produção armamentícia de seus inimigos. Dessa forma, a Rússia emerge como um desafiante significativo ao dominante modelo neoliberal de produção, uma vez que seu modelo de capitalismo de Estado aplicado em políticas industriais e estratégicas gerou maior grau de eficiência produtiva.

Em 1972, ao visitar o então líder chinês Mao Zedong, Kissinger fez a promessa de que jamais faria com a China o que os EUA fizeram com a Alemanha, ou seja, induzir os chineses a atacarem a Rússia. Mao deixou claro para Kissinger que não cometeria o mesmo erro dos alemães. No entanto, em 2006, o famoso intelectual e conselheiro do presidente François Mitterand, Jacques Attali, escreveu em seu livro “Une brève histoire de l’avenir” sobre o grande plano do Ocidente de induzir um confronto direto entre Rússia e China em meados do século 21. O livro, vale dizer, foi abertamente aclamado por ninguém menos que o próprio Henry Kissinger. É evidente que ideia de uma guerra contra a Rússia sempre foi um instrumento do ocidente para garantir seu domínio sobre o bloco eurasiático.

Todd, em seu último livro, sabiamente menciona tal plano e elucida a surpresa de um “ocidente narcisista” ao perceber que a China, no fim, cumpriu a palavra de Mao e que, 50 anos após a visita de Kissinger a Pequim, os chineses não atacariam seu vizinho. Desse modo, o declínio do Ocidente se torna mais manifesto, visto que os EUA, desde a Guerra ao Terror, passaram a utilizar cada vez mais o modelo agressivo e moralista do “Realismo Americano” no lugar do pragmático e dialético modelo seguido por Kissinger, a “Realpolitik”, afastando assim potenciais aliados em um cenário decisivo pela reafirmação dos EUA como império global.

A guerra ao Terror não apenas gerou uma mudança de abordagem diplomática, como fez com que o mundo islâmico gradualmente visse a Rússia como uma potencial aliada. O autor reitera que é pela relação econômica entre Rússia e Arábia Saudita nos campos de produção petrolífera e regulação de preços que ambas as nações fortalecem seus laços diplomáticos. Outrossim, as sanções aplicadas de modo irresponsável no mundo árabe obrigam tais nações a rearranjar futuros laços econômicos. Tal fenômeno foi recentemente mencionado pela secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, que, em entrevista à CNN, tentou alertar seu próprio governo sobre as consequências de tais sanções: a formação ou intensificação de uma cooperação econômica entre as nações ostracizadas do mercado financeiro, como foi o caso das relações do Irã com a Síria e com o Iraque, que ganharam tração econômica respectivamente após 2003 e 2011.

Todd prossegue nos capítulos iniciais do livro defendendo sua tese de que o Ocidente, assim como a noção de Estado-nação propagada por ele, não existe mais. O conceito de Estado-nação, segundo o autor, pressupõe a existência de vários estratos populacionais dentro de um determinado território, os quais estariam unidos por uma cultura comum e regidos por um sistema político que pode variar entre oligarquia, democracia, autoritarismo ou totalitarismo. Contudo, tal Estado-nação deve ter certo grau de liberdade econômica, mais precisamente, tal liberdade não pode excluir o Estado-nação de exercer trocas comerciais, principalmente a nível internacional.

Desse modo, o conceito de Estado-nação ocidental viria a falhar dentro da mais simples das análises, o sistema de déficit atual é, em si, estruturalmente falho visto que seu intuito é gerar um perpétuo desbalanço econômico, onde se pagas tributos sem devidas compensações dentro de um modelo de livre mercado.

Esse desbalanço na economia, segundo Todd, viria também a danificar todo o centro de gravidade de uma nação – a classe média. O Estado-nação, além de pressupor certa liberdade econômica, precisa também erigir uma estrutura de classe específica. É a classe média, junto a outros grupos sociais, que cria uma rede urbana de bens e serviços, os quais sustentam e nutrem o funcionamento do Estado-nação. Todd, para justificar sua tese, usa “A Cidade Equilibrada de Aristóteles” de sua obra “Política”, onde o filósofo argumenta que não pode haver legislação que não tente conciliar os extremos sociais, no caso, os mais pobres e os mais ricos. Para isso, a maioria numérica, aquela que não possui nem grande fortuna nem grande miséria, a classe média, passaria a ser o grupo-alvo das legislações de dada nação, seja ela de caráter oligárquico ou democrático.

Se a classe média é o capilar que nutre a nação, o que seria a nação sem ela? O povo ergue a nação por meio de um sentimento de pertencimento a ela. No caso dos europeus, o ingresso de muitos países na União Europeia fez com que seus cidadãos vissem suas fronteiras nacionais como sendo continentais. Mesmo que a União Europeia, na prática, não seja o que foi concebido em teoria, o conceito de Estado-nação dos europeus continua sendo mais amplo em seu projeto. Tal amplitude é explorada pelos EUA a fim de exterminar qualquer resquício de pertencimento exclusivamente nacional na psique europeia. O autor, contudo, argumenta que o americano passa a ser vítima de seu próprio feitiço, visto que nem os então patrióticos Estados Unidos possuem hoje uma população que se sinta acolhida pelo Estado. Gradualmente, as massas acordam para a falácia existencial que é o Estado-nação.

A implosão gradual do grupamento “WASP” (branco, anglo-saxão, protestante) que vem ocorrendo desde a década de 60 nos EUA, acabou por deixar um vácuo cultural o qual ligava as massas à sua elite. Tal vácuo, por conseguinte, foi preenchido pela mentalidade da classe mercante, mais precisamente, pelo complexo industrial militar, que, por sua vez, é liderado por um grupo de pessoas sem raízes culturais. Esse grupo cosmopolita e apátrida, segundo Todd, opera seguindo uma mentalidade de “violência como fator central” de suas atividades.

Essa agressividade que caracteriza o “realismo americano” é uma prática comum entre a elite apátrida que compõe a mais alta casta americana – os neoconservadores. No entanto, o autor argumenta que tal casta não age de forma irracional; sua visão de mundo pós-nacional tem uma base lógica, que é de caráter imperial. O que o líder russo, Vladmir Putin chama de “ocidente coletivo” pode ser compreendido como uma ação imperial dos interesses de uma seleta elite anglo-saxã sobre as demais nações, inclusive as próprias nações europeias, que crescentemente se tornam meras vassalas de seu aliado estadunidense.

A mentalidade imperial pode ser compreendida como um balanço de poderes que emana do centro até as periferias, e o Império Romano oferece um exemplo vívido desse fenômeno. No auge do Império Romano, o poder político, econômico e cultural estava centralizado em Roma, o coração do império. De lá, as leis, políticas e decisões eram disseminadas para as províncias e territórios periféricos, estabelecendo uma estrutura de dominação e controle. As províncias, por sua vez, contribuíam com recursos, tropas e tributos para manter o império funcionando, enquanto Roma exercia autoridade sobre elas. Contudo, o autor deixa claro que essa noção imperial, quando aplicada aos Estados Unidos, se torna falha. Para que o império se mantenha erguido, é necessário uma união a nível cultural entre centro e províncias. Ao mesmo tempo, faz-se necessário uma união intelectual entre as elites presentes nas diversas territorialidades que comporiam o império.

Para o autor, a queda de Roma serve como um alerta para a eventual queda do império americano. Ele argumenta que, ao expandir-se pelo Mediterrâneo, Roma sacrificou sua classe média ao adotar um modelo de exploração no qual as terras recém-confiscadas dos agricultores não foram posteriormente redistribuídas. Isso ocorreu à medida que os novos territórios conquistados ofereciam trocas comerciais cada vez mais baratas, prejudicando a atividade dos comerciantes e fazendeiros que já compunham a base comercial imperial.

O abandono da classe média, portanto, é, de modo cíclico, o estopim para o processo de queda de dado império. Se Roma abandonou seus cidadãos para explorar bens e serviços de um território recém-conquistado, os EUA abandonam os produtos americanos em prol dos produtos barateados chineses, que eles acreditam também explorar. Tal dinâmica não passaria de um jogo de poder entre uma “plebe marginalizada” e uma “plutocracia predadora”, como diria Todd.

Vale ressaltar, porém, que enquanto Roma era invicta em sua supremacia imperial, os EUA, em contrapartida, possuem competidores dignos, os russos e os chineses. Ao contrário dos EUA, que adotam uma posição secular e material como meio de difundir seu imperialismo cultural, Roma, quando notou a degradação de sua religião pagã, adotou o modelo cristão como instrumento unificador. Em outras palavras, a queda dos EUA estaria mais acelerada do que a queda de Roma, visto que não apenas de fatores econômicos vive o império.

Indo em contramão das noções mais básicas de Platão em sua obra “A República”, os EUA passam a usar de modo exclusivo a ala militar para se manter como poder dominante. Para Platão, o líder, aconselhado por filósofos-reis, deveria agir tendo como base uma moderação entre o gosto pelas artes e pela guerra, sendo as artes podendo ser interpretadas como apreciação de atributos intelectuais e éticos, enquanto a guerra é um instrumento necessário para manter a sobrevida da república.

Essa noção de um líder sendo influenciado por certa filosofia e moderações ideológicas é algo existente apenas no mundo das formas, onde conceitos abstratos existem em sua mais perfeita representação. O mundo das ideias, contudo, apresenta uma prática geopolítica ideologicamente unilateral e agressiva. Quem aconselha a presidência americana no quesito bélico é a ala neoconservadora, representada pelo realismo americano de George Kennan, o moralismo agressivo de Irving Kristol e a beligerância militar de John Bolton.

Durante a Guerra Fria, é válido dizer que o império americano teve um impacto positivo na grande maioria de sua população. O período de 1945 a 1990 foi caracterizado por um sentimento coletivo de vitória e reconstrução. A implementação do Plano Marshall na Europa, juntamente com o crescimento econômico e a prosperidade dos anos 50, contribuíram para manter esse sentimento, mesmo diante da vergonhosa derrota no Vietnã décadas mais tarde. O patriotismo construído e solidificado no início da fase imperial foi o que ajudou a manter a máquina de guerra da classe neoconservadora.

Todd, contudo, não mais crê na permanência desse patriotismo que supera até a maior das derrotas. Para ele, a morte do protestantismo consolida a fase de queda do império em seu sentimento niilista, derrotista e atomizado. Para o autor, o niilismo possui duas dimensões: a dimensão física, caracterizada por um impulso de destruir coisas e pessoas, a qual, para Todd, constitui uma noção útil na hora de se estudar as ramificações da guerra. Já a segunda dimensão é mais conceitual, mas não menos essencial; ela gira em torno da noção de irreversibilidade de queda, na aceitação de um destino destrutivo, ao ponto de abraçá-lo.

O niilismo, defendido por Todd, tende a acabar com a própria noção de “verdade”. Uma análise mais rigorosa poderia utilizar o nominalismo à luz da pós-modernidade como base ideológica para o ataque a qualquer forma de verdade considerada “real” por um coletivo. Qualquer descrição do mundo torna-se inválida; o ponto de vista de um único ser deve se sobrepor ao ponto de vista de povos e eras. O niilismo bidimencional de Todd pode ser visto como consequência inevitável do próprio modelo liberal, de liberação do ser frente a qualquer grupo majoritário.


Se o indivíduo se sobrepõe à maioria, se suas definições particulares de dado nome superam as construções culturais de outrora, o Estado-nação passa a ser uma mera figura decorativa que detém em si um conjunto de cidadãos crescentemente atomizados em seus próprios valores. A queda do protestantismo, do compartilhamento de uma fé em uma entidade suprema e de sua moral emanada, passa a não valer nada para a população que ali reside. Esse cenário de caos moral ainda se torna profundamente exacerbado por um cenário econômico igualmente desbalanceado. Não há raiz material ou sobrenatural que segure mais os cidadãos do império americano.

Todd, para defender sua posição sobre a necessidade de um senso coletivo, utiliza as palavras de um autor do movimento iluminista, Adam Ferguson. Em seu artigo “History of Civil Society” de 1767, o autor defende que não há grupos humanos que existam em si mesmos, mas sempre em relação a outro grupo humano equivalente; sua noção de “estrangeiro” e “compatriota” dependem exclusivamente de um modelo comparativo. O autor ainda diz: “Nós amamos os indivíduos por suas qualidades pessoais; mas amamos nosso país como uma parte nas divisões da humanidade.” É válido dizer que o liberalismo, filho do iluminismo, não mais segue os preceitos os quais colocam o Estado-nação acima do indivíduo como pregado em um passado já distante pelos seus pais fundadores.

A ideia de Fergusson de que “é a hostilidade para com outro grupo que ergue a solidariedade entre nós” ressoa em trabalhos mais contemporâneos, como os de Carl Schmitt em “The Concept of the Political”, onde a distinção amigo-inimigo é introduzida de maneira concreta em oposição a ideias políticas mais abstratas. Tanto o inimigo quanto o amigo devem ser sempre claramente representados na consciência coletiva de uma nação. Uma vez estabelecida essa distinção, o Estado ganha a liberdade e legitimidade para agir com base nas relações de amizade e inimizade em relação a grupos externos.

No entanto, Schmitt argumenta que tais relações são dinâmicas e transitórias, o que torna o universalismo liberal inflexível na maneira como o Estado deve agir diante de conflitos futuros. Para Schmitt, os conflitos são inevitáveis e o Estado deve estar preparado para se adaptar prontamente a eles. Portanto, as situações de caráter emergencial devem conferir ao Estado um estado de exceção, no qual há menos burocracia legal na tomada de decisões que garantam sua soberania.

Um exemplo prático da aplicação dessas medidas foi a resposta da China à pandemia de coronavírus. Embora não tenha formalmente estabelecido um estado de emergência, o governo chinês implementou uma série de medidas legais e de emergência para lidar com a crise. Isso incluiu a criação de sua própria vacina, restrições de viagens, quarentenas obrigatórias, testagem em massa, rastreamento de contatos e outras medidas de controle de epidemias. Essas ações foram executadas de forma rápida e coordenada, com o objetivo de conter a propagação do vírus e proteger a saúde pública. Precisamente porque até os dias de hoje a origem do vírus é um tópico obscuro, a China enfrentou a situação de forma energética e rápida, conseguindo conter danos significativos à sua população e aos seus bens de serviço.

O mesmo não pode ser dito nos EUA, onde uma população crescentemente polarizada pelos dramas e descasos de seu próprio governo se recusou a tomar a vacina de empresas de passado controverso, como a da gigante farmacêutica Pfizer. Dadas as novas informações sobre os efeitos colaterais de longo prazo de tal vacina, cuja tecnologia ainda está em sua fase inicial de aplicabilidade ao público, a preocupação de boa parte da população americana se torna então justificada.

 Quando a classe mercante usa a população para seus ganhos pessoais, o sentimento de abandono estatal, que deveria ser o órgão regulador de tal classe, cresce exponencialmente. Desse modo, a pandemia foi um golpe central no coração do povo americano, fazendo com que o mesmo se recusasse a obedecer as diretrizes de seu próprio governo, independente do fato de tais diretrizes serem adequadas ou não para contenção da pandemia em questão.

Enquanto os EUA descem ao caos devido ao abandono socioeconômico de seu próprio governo, os indicadores de bem-estar social na Rússia seguem uma trajetória oposta. Desde a ascensão de Putin ao poder nos anos 2000, houve uma notável melhoria em várias áreas. Entre 2000 e 2017, durante a fase central da estabilização liderada por Putin, a taxa de mortalidade por alcoolismo na Rússia diminuiu de 25,6 para 8,4 por 100.000 habitantes, a taxa de suicídio de 39,1 para 13,8, e a taxa de homicídio de 28,2 para 6,2. Em termos absolutos, isso significa que as mortes por alcoolismo caíram de 37.214 para 12.276 por ano, os suicídios de 56.934 para 20.278, e os homicídios de 41.090 para 9.048. Todd, ao elucidar tais números, diz o quanto é “intrigante” observar que um país que testemunhou tal progresso esteja sendo retratado como preso em uma “longa descida ao inferno”.

O autor aqui analisado, Emmanuel Todd, ganhou certa fama por prever, em 1976, a iminente queda da União Soviética. O que torna sua previsão interessante é o uso de apenas dois parâmetros: a taxa de alfabetização e a taxa de natalidade do povo soviético. Agora, em sua nova obra “La Défaite de l’Occident”, ele mais uma vez utiliza um novo parâmetro para fazer uma previsão de declínio: o número de engenheiros graduados em dada nação.

Para o autor, o número de uma população economicamente ativa demonstra melhor o panorama produtivo de uma nação do que seu PIB, mais especificamente, o número daqueles dentro da população que adquirem educação superior. Enquanto nos EUA, por exemplo, 7.2% da população busca se graduar na área de engenharia, na Rússia esse número chega a 23.4%. O mesmo padrão é observado no Japão, com 18.5%, e na Alemanha, famosa por sua performance industrial, com 24.2%. Vale ressaltar que, para os EUA, 7.2% se torna um número demasiadamente baixo se considerarmos sua gigantesca população de 330 milhões de cidadãos, em comparação com os 146 milhões da Rússia, 126 milhões do Japão e 83 milhões da Alemanha.

A Rússia possui uma longa tradição de investimento na educação de seus diversos povos, remontando aos tempos soviéticos, quando o acesso à educação era uma prioridade central do governo. Outro fator crucial é o significativo investimento do governo em suas universidades, permitindo a oferta de bolsas de estudo aos alunos mais dedicados. Em contraste, no atual cenário de devastação econômica nos EUA, cerca de um quarto dos tributos pagos pelos cidadãos acabam nas mãos da classe mercantil e dos neoconservadores, que direcionam esses recursos para suas indústrias militares. Assim como Roma em sua decadência, os EUA se apegam ao seu recurso mais forte: a “persuasão” militar.

No livro já mencionado aqui, “Une brève histoire de l’avenir” por Jacques Attali, o ex-conselheiro de Mitterrand, além de prever com certa precisão a queda do império americano em 2035, reitera que os americanos viverão para sustentar a ala industrial militar, a ala propagandística na forma de sua exportação cultural e as universidades. Universidades essas às quais muitos sequer têm acesso financeiro. Muitos dos estudantes atuais que constituem a famosa “Ivy League” são filhos de estrangeiros com alto poder econômico.

Desse modo, os EUA, uma nação que outrora foi vista como gigante por sua agressividade diplomática, inovação em escala exponencial, cultura carismática e desenvolvimento tecnológico e intelectual, hoje é apenas uma casca vazia do que já foi. A tendência cultural de ressuscitar grandes clássicos do cinema norte-americano na forma de “remakes” e “sequels” é apenas uma constatação de uma máquina quebrada que pouco inova, que pouco produz e que, por motivo de lucro e necessidade de exportação de propaganda, tenta fazer ressurgir seus trabalhos mais notórios para dar continuidade a um projeto imperial já falido.

A mensagem central que Emmanuel Todd transmite em sua última obra é que o império, cujas rígidas rédeas ainda permeiam nossa sociedade, não retornará à sua glória passada. Seu tempo já se foi, e agora nos resta assistir à sua iminente queda, enquanto analisamos friamente os fatores que o levaram a esse estágio. Se a queda de Roma não foi suficiente para ensinar o Ocidente a lidar com seus problemas estruturais, então talvez a queda de um gigante ainda maior seja necessária como lição para os impérios que virão.

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Hannah Ruckert

Colunista da Nova Resistência, com foco em temas sociopolíticos, filosóficos e culturais.

Artigos: 55

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