A Guerra Justa e a Guerra Santa

As noções de guerra justa e guerra santa fazem parte da filosofia política ocidental e da própria história das Relações Internacionais. O conceito de guerra justa, porém, se diluiu a ponto de poder legitimar todo tipo de aventura militar. O conceito de guerra santa, porém, à luz da Tradição, permanece válido para os povos livres e que ainda preservam seu vínculo com o transcendente.

Nas reflexões modernas sobre guerra e paz, os conceitos de “guerra justa” e “guerra injusta” são considerados muito importantes. Estes dois conceitos derivam do escolasticismo católico romano, que procurava “minimizar” a seriedade da guerra como pecado, mas justificá-la como necessária. Ambas as ideias surgiram com Santo Agostinho e se tornaram um dos conceitos-chave da Renascença Carolíngia e, mais tarde, das Cruzadas. Entretanto, foi somente durante o século XIII que elas adquiriram um status intelectual definido nas obras escolásticas de São Lourenço da Espanha, São João Teutão e São Raimundo de Penaforte, este último reverenciado pelos católicos.

Em seu livro Summa casibus, São Raimundo de Penaforte diferencia entre guerra justa e injusta, listando os seguintes critérios:

  1. a pessoa que declara guerra deve ser um leigo e de forma alguma uma autoridade espiritual;
  2. a guerra deve ter como finalidade e objetivo último a proteção do “patrimônio”;
  3. a autoridade que declara guerra deve ter antecipadamente a consciência de como “obter a paz” uma vez terminadas as hostilidades;
  4. a guerra não deve perturbar o espírito e não deve ser declarada em estado de ódio e vingança, mas de forma impassível;
  5. a guerra só pode ser declarada em nome da Igreja ou do Príncipe, ou seja, do monarca.

Estas ideias se tornaram posteriormente a base do pensamento do mundo protestante sobre a guerra e foram desenvolvidas por Hugo Grócio, o originador do direito internacional moderno. É claro que a modernidade se livrou do “clericalismo morto que ainda dominava” tais teses, deixando apenas o “esqueleto” nu delas. Essas teses foram herdadas tanto pelo marxismo, que substituiu a guerra em nome da Igreja pela guerra de classes (a teoria soviética dividia as guerras em “justas” e “injustas”), quanto pelo liberalismo, cujas intervenções militares são feitas em nome dos direitos humanos e da “sociedade civil”. Neste sentido, é muito interessante o último livro de Michael Waltzer Debatendo sobre Guerra (Yale, 2004), que analisa a agora popular luta ocidental contra o “terrorismo global”, assim como os ataques contra a Iugoslávia e a invasão do Iraque, sendo todas estas guerras justificadas segundo os mesmos princípios: proteção dos direitos humanos, justiça internacional, defesa dos valores cristãos, etc… Em breve veremos como o Ocidente lançará a próxima “guerra justa” contra a Rússia (este artigo foi publicado em 2007, n. d. t.).

Entretanto, o que é uma “guerra justa”? O núcleo em torno do qual este conceito gira é o seguinte: a guerra é um pecado porque viola um dos Dez Mandamentos de Moisés e aquele que declara a guerra se assemelha a Caim, o primeiro fratricida. Mas como a guerra é inevitável em um mundo caído, é necessário “aliviar a consciência” dos homens sobre o pecado, porque a guerra faz parte do mundo. Portanto, a doutrina da guerra justa e injusta nada mais é do que uma espécie de “psicoterapia” para católicos, assim como para “proletários” e defensores dos “direitos humanos”. Em todos os três casos, naturalmente, é uma justificação ideológica de interesses políticos ou econômicos indizíveis.

A crítica mais radical desta concepção “judaico-cristã” (como a própria civilização ocidental se autodenomina) de guerra foi feita pelo nacional-socialismo alemão no século passado. Os nacional-socialistas consideraram esta “libertação de consciência” por meio de uma reflexão racional como sendo nada mais que um sintoma da degradação geral da raça humana. É claro que esta crítica nazista da “ideia de consciência” acabou se dissolvendo em puro panteísmo, resultado dos últimos “resquícios psíquicos” do romantismo alemão preocupado com um retorno ao “mundo pré-cristão”. Os nazistas procuraram a todo custo encontrar esta “continuidade” perdida no Tibete, nos Himalaias e nos Pirineus, mas não conseguiram resolver este enigma devido à pressão externa e interna do “euroatlantismo”, ou seja, do “judaico-cristianismo”, que terminou lançando-os contra as nações do Oriente onde as verdades do “Santo Graal”, “a Síria original”, “Suria” ou “Rússia”, como os velhos crentes a chamam, ainda existiam e existem até os dias de hoje.

Agora, façamos uma observação preliminar: usamos os termos “judaico-cristã” e “civilização judaico-cristã” apenas porque o Ocidente, tanto em sua versão apologética como autocrítica (por exemplo, Alain de Benoist), a utiliza. Entretanto, podemos facilmente encontrar as raízes da “ideia euroatlântica” tanto na Grécia Antiga (Demócrito, os sofistas, Sócrates) quanto na Roma Antiga (de Políbio aos estoicos). Naturalmente, estas tendências só se tornaram dominantes com o advento do cristianismo no Ocidente.

As raízes deste “psicologismo” no cristianismo ocidental se manifestam particularmente em sua doutrina de guerra, originada na ausência na missa católica romana da epíclese, ou seja, a invocação do Espírito Santo sobre os Santos Dons: o pão e o vinho nunca são transformados no Corpo e Sangue de Cristo, mas permanecem pão e vinho. É por esta razão que a transfiguração do homem, a “deificação da matéria” (São Gregório Palamas), é substituída por uma reflexão psicológica, moral ou por um desejo de “minimizar o pecado”, que é reconhecido como inevitável. Tudo isso leva a uma “reação ontológica” que acaba por negar o pecado, como fizeram os nazistas e, de maneira diferente, os “primeiros” comunistas da internacional marxista-leninista.

A tradição ortodoxa resolve este problema de uma maneira fundamentalmente diferente. A guerra não é vista como um pecado em si mesma, mas como uma consequência dele, como tudo o mais na terra. Entretanto, graças às energias divinas não criadas, o homem pecador se torna um “deus através da graça”. Esta é uma terceira maneira que não tem a ver nem com o moralismo do cristianismo ocidental (“judaico-cristão”) nem com o imoralismo panteísta do “neopaganismo” que deu origem ao nazismo alemão.

Na verdade, a atitude tradicional da ortodoxia em relação à guerra é a mesma que sua atitude em relação ao gênero. No Ocidente, a sexualidade é concebida como parte do “pecado original”, enquanto a ortodoxia considera a sexualidade de uma forma muito multifacetada: a fornicação é apenas uma consequência do “pecado ancestral” (esta diferença no uso das palavras é importante): o sexo como tal não é apenas natural, mas tem um caráter espiritual indelével. O “sexo”, apesar da queda, é uma forma de união com o Amor Divino, o Eros Divino que existe no homem cujo brilho e significado continua a bater dentro de nós (São Dionísio o Areopagita e São Máximo o Confessor escreveram muito sobre isso). O mesmo se aplica à guerra, embora a paixão que domina esta atividade não seja a luxúria, como na fornicação, mas a raiva (para usar a terminologia dos Santos Padres). A guerra expõe apenas a natureza que subjaz os homens caídos.

O filósofo e geopolítico russo contemporâneo Alexander Dugin escreveu em seu livro A Filosofia da Guerra:

“A guerra não é menos imoral do que muitos outros aspectos da existência terrena; ela meramente expõe, amplifica e põe a nu as realidades escondidas, veladas e empoeiradas dentro de nosso ser. O homem descobre sua própria mortalidade mais diretamente na guerra. Sociedades civis pacíficas obscurecem e relegam a morte para a periferia, considerando-a como algo distante ou estranho. A guerra, por outro lado, revela de forma íntima e nua a experiência direta da mortalidade, demonstrando assim a finitude do ser humano. Assim, a experiência da guerra torna-se um fato filosófico: pode-se morrer a qualquer momento, mas, ao mesmo tempo, pode-se tornar a causa da morte para os outros. A morte, entendida como o momento mais significativo e profundo do destino humano, adquire uma profunda riqueza porque é vivida tanto subjetiva quanto objetivamente. A morte adquire uma personalidade que se manifesta às pessoas, submetendo-as a sua própria lógica e alterando seu estado de espírito. Diante da luz gelada da morte, a realidade se transforma e adquire um contorno diferente. Através deles passamos pela lama, pela agonia, pelas montanhas de cadáveres, pelas paredes insondáveis do medo e pelos violentos ataques de raiva que se sucedem um após o outro em meio a abóbadas pacíficas e ‘góticas’ onde o Outro habita. Há uma paz secreta na guerra, um ‘sim’ perturbador à vida em meio a ela”.

Não esqueçamos que a própria morte – juntamente com a história e o tempo histórico em que as guerras acontecem – não são mais que as consequências do pecado ancestral, razão pela qual a Ortodoxia nunca criou sua própria “teologia da guerra”, assim como nunca criou uma “teologia do sexo” (exceto pelas infelizes tentativas liberais de Evdokimov e Yanarás). Entretanto, a tradição ortodoxa, em todas as suas manifestações anteriores ao Raskol [1], tem representações iconográficas e artísticas da guerra. Esta antiga arte russa pode ser encontrada nas “raças de baleias” e “bestas serpentinas” que decoram os portões e relevos da fortaleza do Kremlin construída por Alexandre e Vladimir, nos portões da Igreja da Intercessão da Santíssima Virgem no rio Nerl e Yuriyev-Polsky, ou na árvore de Jessé no Kremlin de Moscou (é significativo que todos eles foram destruídos nos séculos XVII e XIX, justamente na época em que a teologia semiocidental foi introduzida nos seminários russos).

Em todo caso, a arte sobre a guerra “floresceu em todas as suas formas” em oposição à arte do “amor” por razões bastante compreensíveis: a guerra era uma realidade cotidiana. Talvez a peça mais famosa a este respeito seja “A Igreja Militante”, um ícone do século XVI, que pode ser encontrado na Catedral de nossa Assunção, no Kremlin de Moscou. Curiosamente, neste ícone a cabeça da Igreja não é um bispo, metropolitano ou patriarca, mas um rei ortodoxo a cavalo (“o cavaleiro”), que luta e derrota a “antiga serpente”, enquanto acima dele está a Igreja Militante Celestial encabeçada por Cristo, o Rei da Glória.

A imagem do cavaleiro derrotando a serpente tornou-se o brasão de armas do Reino de Moscou (“o cavaleiro” ou “o czar a cavalo”) que tipologicamente coincide com as imagens ortodoxas dos grandes santos guerreiros, como Jorge o Vitorioso, Demétrio de Tessalônica e muitos outros. De fato, o Czar Ivã o Terrível escreveu um cântico a São Miguel Arcanjo intitulado o Anjo Terrível de Voivoda, Vencedor do Príncipe das Trevas e a “antiga serpente”. Vale a pena esclarecer que o nome Jorge (Grigory ou Georgy em russo, n.d.t.) o Vitorioso é equivalente, segundo a “etimologia popular”, a Rurik (“Yurik”), ou seja, o primeiro monarca russo: tal etimologia parece ser o motivo da inscrição encontrada no (suposto) túmulo onde ele foi enterrado (acreditamos firmemente nesta tese).

Não é este o nome de um príncipe cristão? Isto nos leva diretamente ao “Apocalipse de Metódio de Olímpia”, que afirma que o czar ortodoxo leva o nome de Miguel (entretanto, de acordo com os “Contos do Anticristo” do século XV, o verdadeiro nome do czar está escondido em línguas). Isto também está relacionado à genealogia simbólica do nome Romanov, que enfatiza a origem “equestre” dos Romanovs. Os antepassados dos Romanovs vieram de Novgorod e comumente carregavam nomes como Kobyla (Égua), Zherebets (Garanhão), Shevliaga (Cavalo Indomável), entre outros (estes nomes também são usados para designar a nobreza em línguas ocidentais, em inglês se usa o apelativo cavaleiro, em francês chevalier, em alemão “konung”, könig, ou seja, rei, que está relacionado com a palavra eslava para “príncipe”, “k’nyaz”, que novamente se refere a “cavalo”). Por outro lado, o tema da serpente é ainda mais complicado, pois, afinal, a serpente é a imagem por excelência do amor secreto que se esconde dos olhos dos homens e pode levar a uma queda ainda mais profunda no abismo ou ao “renascimento do czar”. Ambos os significados são interdependentes um do outro. Jean Parvulesco costumava citar a frase de Dominique de Roux que “ao aproximar-se da essência dos símbolos, o significado é duplicado”. Esta é a história de todos aqueles que procuram entrar no arcaísmo “pré-ontológico” com a vã intenção de anular a própria ontologia do pecado: o exemplo dos nazistas é típico.

O historiador russo contemporâneo I. Y. Froyanov, na esteira de Vladimir Propp, escreve:

“É muito provável que haja uma ligação entre o príncipe e a serpente que tem sido obscurecida por contos épicos posteriores e seus sucessivos desenvolvimentos literários. Esta ligação é muito tangível na Bylina [2] que fala das campanhas no Volga. Existe uma ligação direta de parentesco entre as duas imagens em tais textos, já que o significado original das imagens não foi obscurecido ou perdido, como foi em outros relatos. Vladimir Propp observa que a origem de tais imagens é a seguinte: “aquele que nasce de uma serpente (ou seja, quem passa por ela) está destinado a ser um herói”.

Na etapa seguinte o herói mata a serpente, mas a conexão ainda está lá: somente aquele que nasce da serpente é capaz de matar a serpente” (Veja Froyanov I.Ya., Yudin Y.I. The mythical story, SPb, 1997, p. 98, veja também. Propp, V.Ya. The Historical Roots of Fairy Tales, L., 1946, 254-256).

É precisamente neste contexto que o feito militar – real – sobre a serpente indica o momento de separação entre ser e não-ser (este último sendo entendido não em sentido negativo, ou seja, como “nada”, оύκ оν, mas como “supra-ser”, μεoν), um ato de sacrifício pré-mortal dentro do seio da própria Santíssima Trindade, cuja imagem – embora distorcida – existe no simbolismo pré-cristão e, mais tarde, na iconografia ortodoxa. Portanto, somente o monge, o asceta, o rei ou o guerreiro são santos, porque são os únicos que podem compreender o verdadeiro significado do ardor guerreiro e do ardor amoroso. Este ardor, por uma questão de princípio, é incompreensível para o “senhorio”, a “classe média” ou o burguês, porque este último só entende a guerra como justa ou injusta, e o amor como procriação ou libertinagem. É claro que eles abençoam parcialmente os primeiros, mas condenam e cortam os segundos. O mesmo se aplica a sua concepção de vida eterna. Vamos fazer um esclarecimento: nem o monge nem o rei são deste mundo. Na verdade, a origem da disputa entre Ivã o Terrível e o príncipe Andrei Kurbsky tem a ver com o fato de que o primeiro defende o sacrum – o Czar Vermelho e a “Guerra Vermelha” – enquanto o segundo defende a justiça – o Czar Branco e a “Guerra Branca”. É nesta disputa que se encarna a guerra civil subsequente que irá grassar na Rússia no século XX.

Em retrospectiva, é claro que os “brancos” foram, em última instância, os guerreiros que lutaram em nome do Ocidente, enquanto os “vermelhos” foram os guerreiros do Oriente, apesar da ortodoxia formal dos primeiros (pensamento catafático) e do “ateísmo” formal dos segundos (pensamento apofático) representados por um e pelo outro. Tudo isso se manifestou na retidão parcial (em termos de “justiça”) de ambos e em sua traição geral aos princípios sagrados (o czar e sua família). Entretanto, a questão fundamental é deslocada para outro plano, ou melhor, para outro espaço.

O sacrifício do Czar revela em si a profunda afinidade “pré-ontológica” de sua figura com a serpente. Froyanov diz o seguinte: “Ao contrário do mito e do conto de fadas, é muito provável que no épico não exista uma função adequada para aquele que nasce da serpente e para aquele que mata a serpente, embora às vezes personagens como Dobrinia Nikitich e Alyosha Popovich estejam relacionados de alguma forma vaga com a figura do príncipe, algo que os bardos parecem intuir. O rei-serpente e o príncipe, sujeitos à vontade da serpente, contrastam com o Bogatyr [3], que não é capaz de tirar qualquer benefício da serpente pela força. Tal significado parece ser devido a algum tipo de condições ou razões históricas. O Príncipe Serpente é ainda mais explicitamente contraposto na pylina do camponês Mikula no Volga, embora esta contraposição não seja absoluta e os heróis resolvam suas diferenças com base em seus antecedentes comuns”.

Interpretada desta forma, a revolução aparece como a manifestação da raiva do povo contra a serpente encarnada no Estado. Entretanto, se analisarmos isto a partir de uma ideia muito mais elevada e profunda da “tarefa conjunta” da sociedade, então a raiva do povo contra o Estado pode tanto dar origem à “monarquia popular” quanto à versão do “Estado-nação” distorcida pelo poder soviético, esta última tacitamente oposta à “ditadura do proletariado” e de caráter “cripto-monárquico” (esta última era a criança que daria à luz o Reino, mas foi abortada pela “perestroika”). No nível histórico, a única solução que existe para realizar esta “tarefa conjunta” é declarar guerra santa, que é santa, independentemente de ser justa ou não.

Podemos até dizer que a dicotomia de guerras justas e injustas é, na verdade, uma dessacralização do ser, um caminho seguido pelo Ocidente (zakat, pôr-do-sol). A consciência russa, como qualquer consciência tradicional, não pensa dessa forma: a guerra não é justa ou injusta da mesma forma que a doença ou a morte não é justa ou injusta. Todas as coisas acima são apenas manifestações de Deus. Esta tentativa de racionalizar o mundo por meio do justo e do injusto, juntamente com o desejo correlativo de estabelecer a justiça no mundo, de forma semelhante à que os juízes fizeram no Antigo Testamento e agora os Estados Unidos e o mundo do Atlântico Norte em geral querem fazer, não conduzirá a humanidade para longe da autodestruição, mas a precipitará para o abismo.

O Ocidente, manipulando os “mistérios morais”, criou por um século, ou talvez por um milênio, um gigantesco campo de concentração na Terra cuja destruição será produto da guerra santa e da “tarefa conjunta” que a Rússia, isto é, os czares, e o povo russo terão que realizar. De tudo isso tiramos uma conclusão muito importante: a Rússia nunca em toda sua história travou guerras injustas, apenas guerras erradas. Houve erros políticos que nos levaram a travar guerras contra adversários com os mesmos interesses e nos colocaram do lado de aliados que eram, na realidade, nossos inimigos. Isto se aplica à atitude antimuçulmana do patriarca Nikon e do czar Alexis Mikhailovich, tendo o primeiro causado a cisão dentro da Igreja russa e o segundo feito toda a dinastia Romanov refém de suas decisões. O mesmo se aplica à atitude antialemã e pró-inglesa que a Rússia assumiu duas vezes durante o século XX (claro, a atitude anti-russa de Hitler não foi muito melhor, apenas mais explícita).

A verdade é que deveríamos ter evitado as guerras russo-turcas (exceto a Guerra da Crimeia, que foi profundamente antiocidental) e as duas Guerras Mundiais, ou melhor, deveríamos ter lutado todas estas guerras de uma maneira muito diferente:No século XIX deveríamos ter nos aliado com a Turquia para lutar contra a Europa; na Primeira Guerra Mundial deveríamos ter nos aliado com a Alemanha contra a Inglaterra e a França, enquanto na Segunda Guerra Mundial deveríamos ter nos aliado novamente com a Alemanha para lutar contra a Inglaterra e os Estados Unidos. Mas tais ideias permanecem um “como as coisas teriam sido se…”. Pode uma guerra estar errada? Sim, pode, mas a partir do momento em que começa, torna-se instantânea, definitiva e irrevogavelmente um evento sagrado: os “cavalos” tornam-se assim os inimigos das serpentes. Poderíamos neste caso fazer uma analogia entre o casamento sagrado, ιερоς γαμоς, e o inimigo, mas somente se olharmos isso ao contrário, pois o primeiro já não importa mais, mas é simplesmente o que existe.

Nem Lênin em 1914, nem Vlasov em 1942, podem reivindicar qualquer justificação. A propósito, ambas as traições apelaram à “justiça” e à necessidade de lutar contra o “maldito czarismo” ou o “tirano Stalin”: Nesse sentido, ambos são herdeiros, de uma forma ou de outra, do escolasticismo católico e do “Ocidente judaico-cristão”, da mesma forma que os atuais políticos sodomitas liberais russos (como Vitali Averianov apropriadamente os chamou) apelam para a OTAN e a UE para que tomem seu partido contra a Moscou “imperialista, centurionegrista e comunista”. O mesmo se aplica aos pseudo-nacionalistas russos que também atacam Moscou, mas o fazem com o argumento de destruir o “imperialismo bolchevique e asiático”. Em todos estes casos a mesma crítica pode ser aplicada contra “guerras justas” e a ignorância da história viva, pois no final trata-se da guerra santa travada pela Santa Rússia contra o “campo de concentração universal” do Ocidente (expressão usada pelo chileno Miguel Serrano).

Hoje estamos desafiando o Ocidente Atlântico (pôr-do-sol) que pretende travar uma guerra justa contra a Rússia: uma guerra travada em nome dos direitos humanos, da democracia, do mercado, da propriedade privada, da república universal e da sociedade civil. Nós, por outro lado, devemos travar uma guerra santa, ou seja, uma guerra sem razão, sem rosto ou objetivo: uma guerra travada porque deve ser travada, mas que só poderemos vencer se despertarmos o que chamamos incorretamente de inconsciente coletivo, que na realidade é uma espécie de supraconsciência, um supra-ser superior ao ser ou, como dizia São Dionísio Aeropagita, um supradeus. Na verdade, “tudo que não pode ser, porque nunca é”. Seria o Cavalo e a Serpente que se desprendem dos Raios do Ícone de Nosso Senhor dos Olhos Enfurecidos.

Os Santos Padres (em particular o Venerável João, o Escriba da Escada) ensinaram sobre a reorientação da paixão e sua transfiguração espiritual. Do ponto de vista ortodoxo, a guerra é a transfiguração da raiva da mesma forma que o casamento é a transfiguração da luxúria. No nível monástico, isto é considerado como não cristão e somente possível através do Espírito Santo, mas somente no nível monástico. No mundo, nós preferimos cantar:

Deixe que a nobre ira se levante
Como uma onda:
O povo marcha para a guerra,
A uma guerra santa.

Estas linhas podem ser aplicadas precisamente à imagem do ícone do século XV que representa a Igreja Militante, também chamada de “Hóstia Abençoada do Rei Celestial”.

Notas

[1]. Os Velhos Crentes (em russo: старороверы) ou raskólniki (de raskol ou cisma, russo: раскол), na historiografia russa, eram os cristãos ortodoxos adeptos da antiga liturgia e dos cânones eclesiásticos que não aceitaram a reforma de Nikon em 1654, quando se separaram da Igreja Ortodoxa Russa e a partir de então foram cruelmente perseguidos e dizimados. Seu principal líder foi o protopapa e escritor Avvakum (1620-1682).

[2]. Bylina são poemas épicos e heroicos tradicionais dos eslavos orientais da Rus de Kiev, embora a tradição continue na Rússia e na Ucrânia. O termo bylina vem da palavra russa “byl'” (быль), que se traduz como “foi”, pretérito perfeito do verbo ser, denotando eventos históricos reais, em oposição à ficção. As bylinas são um tipo de poesia de verso em branco sem rima, mas com um ritmo característico, uma espécie de verso livre. A maioria das bylinas foi preservada no norte da Rússia, e seu estilo foi imitado por muitos poetas russos famosos.

[3]. Um Bogatyr ou Vítyaz era um herói guerreiro russo medieval, comparável ao cavaleiro-errante da Europa Ocidental.

Fonte: Geopolitica.ru

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Vladimir Karpets

Filósofo e jurista russo.

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