O tempo dos Estados Civilizacionais

Alain de Benoist examina as estruturas contrastantes do internacionalismo liberal, dos estados-nação e dos estados civilizacionais na definição das características do Nomos da Terra.

“Não pode haver civilização digna desse nome se ela não recusar algo, se não renunciar a algo.”
Fernand Braudel

Atualmente, três grandes modelos concorrentes estão competindo para determinar a natureza do Nomos da Terra, ou seja, a Nova Ordem Mundial: o internacionalismo liberal, os estados-nação nascidos da ordem vestefaliana e os estados civilizacionais.

O internacionalismo liberal baseia-se nos temas clássicos do pensamento liberal: o estado de direito, a proteção dos direitos individuais garantidos pela constituição, a primazia das normas processuais, a democracia parlamentar e o modelo de mercado — todas as noções proclamadas como universais e propriamente “humanas” — o que só é possível com o esquecimento de sua história, de modo que aqueles que rejeitam o que é ritualmente apresentado como “liberdade e democracia” são imediatamente colocados fora da humanidade e rejeitados como parte do “eixo do mal”, já que o liberalismo interpreta qualquer resistência à expansão de um modo de vida baseado no individualismo e no capitalismo como “agressão”.

Isso mostra que o sistema liberal está preso em uma grande contradição: por um lado, ele se baseia teoricamente em um princípio de tolerância de todas as escolhas individuais, o que o leva a defender a ideia de uma “neutralidade” necessária das autoridades públicas (na França, essa também é a base da laicidade[1]); por outro lado, ele quer estender seus valores individualistas a todo o mundo a qualquer custo, em detrimento de qualquer outro sistema de valores, o que vai contra seu princípio de tolerância. Não se contenta, por exemplo, em afirmar a superioridade universal e absoluta da democracia liberal, mas intervém para impô-la em todo o mundo, multiplicando interferências de todos os tipos, de modo que o que inicialmente era uma simples opção teórica se torna o álibi para o imperialismo mais brutal.

Da mesma forma, nos Estados Unidos, a Doutrina Monroe (1823) passou de um não-intervencionismo categórico (princípio da neutralidade) para uma posição moral que dá aos Estados Unidos o direito ilimitado de interferir. “O princípio de não-intervenção e rejeição de potências estrangeiras”, escreve Carl Schmitt, “evoluiu para uma justificativa das intervenções imperialistas dos EUA.”

O Estado-nação é concebido como a principal unidade política em uma ordem internacional, consagrada nas Nações Unidas, onde cada país deve ser capaz de se afirmar como soberano. Rejeitando o pluralismo inerente ao poder imperial, ele pensa em termos de um único povo, um único território e uma única comunidade política, razão pela qual tem pouca tolerância com as diferenças e tende a homogeneizar seus componentes internos.

O internacionalismo liberal não é o inimigo de princípio dos Estados-nação, na medida em que eles são sempre suscetíveis de serem colonizados por seus valores — e sabemos como ele tem sido bem-sucedido na imposição do princípio da legitimidade universal da democracia liberal (que Hayek descreveu como a “proteção constitucional do capitalismo”) e das regras de mercado em todo o mundo. Do ponto de vista liberal, os estados-nação não são mais um obstáculo para a expansão dos mercados globais. Em nível político e militar, o internacionalismo liberal não hesita em apoiá-los quando parece necessário para ampliar sua influência. Esse é o caso atual da guerra na Ucrânia, onde os Estados Unidos estão apoiando maciçamente um país que está tentando se tornar um Estado-nação porque esse apoio está alinhado com seus interesses.

O mesmo não pode ser dito do estado civilizacional, que o internacionalismo liberal considera seu inimigo fundamental, porque o primeiro é, por sua própria natureza, contrário à disseminação dos valores que o segundo promove.

Então, o que são esses recém-chegados, aos quais uma série de autores[2] deram o nome de “estados civilizacionais”? São potências regionais cuja influência se estende além de suas fronteiras e que concebem o Nomos da Terra como fundamentalmente multipolar. Inicialmente, a China e a Rússia, em particular, foram consideradas Estados civilizacionais. Ainda assim, essa qualificação pode ser aplicada a muitos outros Estados capazes de organizar, com base em sua cultura e longa história, uma esfera de influência que vai além de seu território nacional ou grupo etnolinguístico: Índia, Turquia e Irã, para citar apenas alguns.

Os Estados civilizacionais se opõem ao universalismo ocidental com um modelo no qual cada agrupamento civilizacional tem uma identidade distinta, tanto em termos de valores culturais quanto de instituições políticas, uma identidade que não pode ser reduzida a nenhum modelo universal. Esses Estados não querem apenas implementar uma política soberana sem se submeter aos ditames das elites supranacionais. Eles também querem frustrar qualquer projeto “globalista” que vise a fazer com que os mesmos princípios reinem em todo o planeta, pois estão cientes de que a cultura que carregam não é idêntica a nenhuma outra. Esse é um lembrete de que não pode haver uma cultura de todas as culturas.

Uma característica comum dos Estados civilizacionais é que eles denunciam o universalismo ocidental como etnocentrismo mascarado, uma forma elegante de ocultar um imperialismo hegemônico. Acima de tudo, os Estados civilizacionais se baseiam em sua história e cultura, não apenas para afirmar que elas implicam um modelo político e social diferente daquele que o internacionalismo liberal procura impor, mas também para derivar delas uma concepção de mundo que é considerada a base da “vida boa”, política e religiosamente, ou seja, dos valores substanciais não negociáveis que o Estado tem a missão de incorporar e defender. Em outras palavras, o Estado civilizacional busca estabelecer uma concepção do bem com base em valores substantivos específicos e em uma tradição específica.

Quer sejam governados por um novo czar, um novo imperador ou um novo califa, quer essa rejeição seja em nome da noção confucionista de “harmonia”, da herança da “Santa Rússia” (“Moscou, a Terceira Roma”), do eurasianismo, do hinduísmo ou da memória do califado, os Estados civilizacionais se recusam a se submeter aos padrões ocidentais, que alguns deles aceitaram no passado para se “modernizarem”. A ocidentalização e a modernização não andam mais automaticamente de mãos dadas.

O filósofo russo Konstantin Krylov (1967-2020), em seu livro póstumo Povedenie (“Comportamento”), publicado em 2021, descreve a Rússia como um país alheio ao pensamento liberal desde suas origens. Ele rejeita o liberalismo, mas não a democracia. Embora tenha se tornado zoroastrista durante uma estada no Uzbequistão, ele também enfatiza a importância da religião ortodoxa. Paul Grenier, que dirige o Simone Weil Center for Political Philosophy nos EUA e recentemente escreveu um ensaio sobre ele, escreve: “Não conheço nenhum intelectual russo conservador para quem a Rússia seja parte da civilização ocidental. Todos eles veem nela algo separado e diferente.”[3] Essa já era a opinião de Nikolai Danilevsky e Oswald Spengler, que enfatizavam a especificidade do comportamento social e dos preceitos éticos russos, a começar pela ideia de “nosso” (em russo, não dizemos “meu irmão e eu fomos passear”, mas “nós e meu irmão fomos passear”).

Ao sistema liberal baseado na busca do melhor interesse de cada um (interesse próprio), a Rússia contrapõe com as prerrogativas do sagrado, que ela se recusa a ver relegadas à esfera privada, ao mesmo tempo em que rejeita a neutralidade do Estado em questões de valores. Portanto, é compreensível que, na Ucrânia, a Rússia não apenas defenda a ideia de que esse país não pode se tornar um Estado-nação porque pertence ao espaço civilizacional eslavo, mas também lute contra a lógica do próprio Estado-nação, os proponentes de uma visão puramente secular do mundo, os valores liberais do “Ocidente coletivo”, que são vistos como “decadentes”, e o hegemonismo americano apoiado pelo sistema liberal.

No passado, a Escola de Kyōto, fundada em 1941 por Nishida Kitarō (1870-1945) e Tanabe Hajime, foi provavelmente a primeira, muito antes de qualquer movimento de descolonização, a desenvolver a ideia de um mundo multipolar, dividido em grandes espaços distintos considerados como caldeirões de cultura e civilização, e a criticar os princípios abstratos do universalismo ocidental — baseado no capitalismo e no cientificismo — em nome da pluralidade de culturas característica do “mundo real” (sekaiteki sekai).

Os principais representantes dessa escola eram filósofos, como Kōsaka Masaaki, Kōyama Iwao, Nishitani Keiji e Suzuki Shigetaka. Os pensadores europeus que parecem ter tido o impacto mais significativo sobre eles foram Johann Gottfried von Herder e Leopold von Ranke. Recentemente, as ideias da Escola de Kyōto também foram associadas às de autores comunitaristas como Charles Taylor e Alasdair MacIntyre.[4] Foi nesse círculo que a ideia de uma “esfera de coprosperidade do grande Leste Asiático” foi elaborada, reunindo vários países com base em valores compartilhados e no respeito à sua autonomia. Essa ideia não deve ser confundida com o “Japanocentrismo” da direita nacionalista ou com o imperialismo japonês da mesma época. Já em junho de 1943, a censura oficial ordenou o silêncio sobre as publicações da escola, censurando-a justamente por querer atribuir ao governo japonês uma missão que não era idêntica à mera expansão imperialista.

Na China de hoje, os membros da Escola Tianxia também devem ser mencionados, como Zhao Tingyang, o historiador Xu Jilin, Xu Zhuoyun, Wang Gungwu e Liang Zhiping, que defende “usar a China para explicar a China” (yĭ zhōngguó jiěshì zhōngguó) — e possivelmente Jiang Shigong, um defensor do “socialismo ao estilo chinês”, deve ser adicionado à lista.

Seus teóricos se referem à noção central de tianxia (“tudo sob o céu”)[5] , um princípio espiritual da China pré-moderna cujo corpo institucional era o Império Celestial. Esse termo polissêmico, usado desde antes da época de Laozi e Confúcio, refere-se a uma ordem civilizacional ideal, um imaginário espacial no qual a China constitui o núcleo, uma ordem hierarquizada na qual a “virtude” de seus membros determina o lugar que devem ocupar e um sistema político destinado a garantir a harmonia do todo. De acordo com Zhao Tingyang, trata-se de um “conceito denso, em que a metafísica como filosofia política substitui a metafísica como ontologia, como primeira filosofia”[6], que afirma que as culturas são incomparáveis em termos de valores e que a China deve escapar do eurocentrismo e assumir plenamente seu papel de Reino do Meio.

Para Xu Jilin, “a origem da crise [atual] nada mais é do que a mentalidade que dá supremacia absoluta à nação.” “Para realmente lidar com a raiz do problema”, acrescenta ele, “precisamos de uma forma de pensamento que possa servir de contraponto ao nacionalismo. Chamo esse pensamento de “nova tianxia”, uma pérola de sabedoria civilizacional axial da tradição pré-moderna da China, reinterpretada de acordo com critérios modernos.”

É significativa a maneira pela qual, desde a década de 1990, as autoridades chinesas, alegando ter “valores asiáticos”, rejeitaram as críticas em nome da ideologia dos direitos humanos. Em janeiro de 2021, no Fórum de Davos, Xi Jinping disse: “Assim como não há duas folhas no mundo iguais, não há duas histórias, duas culturas, dois sistemas sociais iguais. Cada país é único em todas essas áreas, e nenhum país é superior a outro. Não há necessidade de se preocupar com as diferenças, mas sim (…) com as tentativas de impor uma hierarquia entre as civilizações ou de forçar algumas delas a se alinharem com outras em termos de história, cultura ou sistema social.”

O reconhecimento da crise do universalismo e do hegemonismo ocidental, portanto, anda de mãos dadas com a sensação de que a era da ordem internacional baseada no equilíbrio conflituoso dos Estados-nação chegou ao fim, como Carl Schmitt previu já na década de 1930.[7] A ascensão dos Estados civilizacionais sinaliza a entrada em uma era na qual a ordem mundial não está mais reduzida ao equilíbrio instável dos Estados-nação. À medida que as normas civilizacionais se tornam um ponto central na geopolítica, a principal competição deixa de ser a tradicional entre os Estados-nação e passa a ser entre as civilizações. Os estados civilizacionais dão origem a um novo modo de soberania que não é mais o dos estados-nação.

Cabe aqui uma observação sobre o vocabulário. Ela diz respeito à noção-chave de “civilização”, que não está isenta de ambiguidades, para dizer o mínimo. Samuel P. Huntington entendeu que o significado da palavra difere totalmente dependendo se ela é usada no singular ou no plural. Não é coincidência que o livro de Huntington, The Clash of Civilizations (1996), tenha sido traduzido para o alemão como Kampf der Kulturen. Na Alemanha, toda uma tradição vê Kultur como o oposto de Zivilisation. Spengler, por exemplo, via a “civilização” como o estágio terminal das grandes culturas.

Os liberais sempre alegam “defender a civilização”, o que, a seu ver, equivale à lógica dos direitos individuais e do mercado. Para eles, a civilização deve ser entendida no singular, e são as democracias liberais que a incorporam. Qualquer um que se desvie dela não faz mais parte do “mundo civilizado”, e aqueles que se recusam a seguir esse modelo são imediatamente deslegitimados e denunciados como “poderes autoritários” e antidemocráticos, como se a democracia liberal fosse a única forma possível de democracia. Essa ideia de uma civilização singular legitimou a colonização no passado, antes de inspirar as especulações de Fukuyama sobre o “fim da história” em um mundo livre de todas as relações de poder. Para os Estados civilizacionais, ao contrário, as civilizações (ou culturas) são concebidas apenas no plural. Os Estados civilizacionais não defendem a “civilização” em si, mas a sua civilização.

Pode-se também questionar até que ponto os estados civilizacionais substituiriam os impérios, tradicionalmente definidos como estados multinacionais ou mesmo multiculturais que governam em um vasto território povos cuja autonomia local é geralmente respeitada, desde que aceitem a lei comum determinada pelo poder central.

A noção de estado civilizacional lembra ainda mais o “grande espaço” (Großraum) teorizado por Carl Schmitt para repensar as relações internacionais além da codificação das relações entre os estados-nação. Um “grande espaço”, diz Schmitt, requer um “grande povo”, um vasto território e uma vontade política autônoma. “Impérios”, escreve ele, “são aqueles poderes dominantes que carregam uma ideia política que se irradia em um determinado grande espaço do qual excluem, por uma questão de princípio, as intervenções de potências estrangeiras.” E ele acrescenta este lembrete essencial: “O império é mais do que um estado ampliado, assim como o grande espaço não é apenas um microespaço ampliado”.” A lógica dos grandes espaços não tem um escopo universalista. Ela integra apenas a evolução histórica das grandes potências territoriais que influenciam países terceiros. Portanto, o paradigma não é mais nacional, mas espacial.”[8]

Quanto à Europa, que tem sido cultural e ideologicamente híbrida por dois milênios, ela é, no momento, apenas um espaço neutralizado onde concepções civilizacionais opostas se chocam.

Notas

[1] Trans..: Laïcité é um conceito francês que defende a separação entre religião e estado, garantindo tratamento igualitário e liberdade de crença para todos os indivíduos.

[2] COKER, Christopher. The Rise of the Civilizational State. Londres: Polity, 2019.

[3] Konstantin Krylov’s Ethical Theory and What It Reveals about the Propensity for Conflict between Russia and the West. In: Telos 201 (Inverno de 2022), p. 112.

[4] STEFFENSEN, Kenn. The Political Thought of the Kyoto School. In: YUSA, Michiko (Ed.). The Bloomsbury Research Handbook of Contemporary Japanese Philosophy. Nova Iorque: Bloomsbury, 2017. Ver também KRUMMEL, John W. M. The Kyoto School’s Wartime Philosophy of a Multipolar World. In: Telos 201 (Inverno de 2022), p. 63-83.

[5] Diz-se que Tianxia atingiu sua idade de ouro na época do Duque de Zhou, um líder militar e escritor que viveu no século 11 a.C. e que às vezes é apresentado como o fundador do confucionismo, embora tenha vivido vários séculos antes de Confúcio.

[6] La philosophie du tianxia. In: Diogène, 2008, 1, p. 4-25. Ver também TINGYANG, Zhao. Tianxia, tout sous le même ciel [2016], Paris: Cerf, 2018.

[7] ACHARIA, Amitav. The End of American World Order. Cambridge: Polity, 2014; STUENKEL, Oliver. Post-Western World: How Emerging Powers Are Remaking Global Order. Cambridge: Polity, 2016. Ver também JACQUE, Martin. When China Rules the World: The End of the Western World and the Birth of a New Global Order. Nova Iorque: Penguin Press, 2009; HORNER, Charles. Rising China and Its Postmodern Fate. Athens: University of Georgia Press, 2009.

[8] PEYRADE, Karl. Le droit des peuples réglé sur le grand espace de Carl Schmitt. Texto online, 23 de maio de 2017.

Fonte: Arktos
Tradução: Augusto Fleck

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Alain de Benoist

Escritor, jornalista, ensaísta e filósofo, um dos autores chave da Quarta Teoria Política, é autor de numerosas obras sobre uma vasta gama de temas, incluindo arqueologia, tradições populares e história da religião.

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