Diferentes Teorias da Multipolaridade: Alexander Dugin e Jiang Shigong

O tema do momento é a multipolaridade. Mas a própria unipolaridade não é uniforme e cada uma das grandes politeias possui sua própria perspectiva sobre a multipolaridade. Aqui vemos a comparação entre os filósofos Alexander Dugin e Jiang Shigong no que concerne seus projetos de multipolaridade.

Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA começaram a refazer o mundo à sua própria imagem. O triunfo da democracia liberal sobre as Potências do Eixo marcou uma etapa definitivamente nova na história mundial: foi o triunfo do mundo livre sobre o autoritarismo e a dominação totalitária. O próximo grande inimigo a ser conquistado seria o antigo aliado dos Estados Unidos contra o nazismo, a União Soviética, cuja derrota no final da Guerra Fria marcaria ainda mais uma etapa na história da reestruturação do mundo às mãos da América. Após a queda da União Soviética, a democracia liberal tornou-se verdadeiramente universal. A ideologia e a forma política dos Estados Unidos, assim como o sistema econômico que herdara e expandia de seu antecessor britânico, era verdadeiramente global. Era a era da unipolaridade.

O desenvolvimento econômico em todo o mundo ocorreu apenas dentro dos parâmetros do mundo unipolar governado pelo novo hegemon, em termos de comércio que foram estabelecidos pelas instituições de governança global americanas. Mesmo grandes países como a Rússia e a China tiveram que jogar de acordo com as regras americanas, e a China em particular tornou-se o local principal da força de trabalho do capitalismo multinacional americano. O mercado mundial era em todos os aspectos uma característica do globalismo americano, uma ferramenta do que muitos identificaram como “colonialismo” americano: isto é, o capitalismo em escala global, onde os próprios Estados Unidos eram a casa do capital global.

A China, com o melhor de sua capacidade, aproveitou sua inclusão no mercado mundial e usou esse status para engendrar sua notável ascensão como a segunda maior superpotência e maior economia do mundo. Ao contrário de todas as expectativas do Ocidente, a mercantilização e abertura da China ao mundo não induziu a liberalização ideológica, mas permitiu que a China se tornasse o mais formidável desafiador da hegemonia liberal americana. Ao mesmo tempo, embora a recuperação econômica da Rússia após o colapso soviético não tenha sido tão impressionante quanto a da China, ela se tornou uma fonte crítica de petróleo e energia para grande parte do mundo ocidental – um importante ativo em sua caixa de ferramentas de alavancagem geopolítica (como os acontecimentos recentes demonstraram de forma muito clara). O poder militar e brando da Rússia são impressionantes o suficiente para torná-la um oponente digno da unipolaridade americana.

No entanto, suas diferentes circunstâncias e graus de integração no mercado mundial também levaram os líderes intelectuais da Rússia e da China a conceber o mundo multipolar emergente de formas distintas, apesar de sua substancial convergência em oposição à unipolaridade ocidental. Embora ambos os países tenham sofrido décadas de humilhação nas mãos do Ocidente, as condições materiais concretas que afetaram ambos os países após a queda da União Soviética são radicalmente distintas. Uma análise marxista esperaria que essas condições materiais distintas afetassem as ideologias que tomariam forma em solo russo e chinês. De fato, isto é exatamente o que aconteceu. Dois pensadores exemplificam estas ideologias distintas de uma forma especialmente clara: Alexander Dugin e Jiang Shigong. Vale a pena examinar mais de perto as teorias da multipolaridade formuladas por esses dois pensadores a fim de compreender as distintas formações ideológicas da Rússia e da China modernas.

Alexander Dugin e a Nova Ideologia Russa

Depois que a URSS foi oficialmente dissolvida em 31 de dezembro de 1991, a Rússia caiu em um estado de caos político e econômico absoluto. A transição de uma economia socialista planejada para um país democrático liberal com uma economia de mercado livre deveria ocorrer da noite para o dia, segundo os teóricos neoliberais da “terapia de choque” econômica, cujos métodos foram brutalmente implementados na Rússia sob a presidência de Boris Ieltsin. A súbita liberalização dos preços e privatização da propriedade produtiva deveria transformar a Rússia em um país livre, seguindo o modelo dos grandes países capitalistas do Ocidente. Ao invés disso, a Rússia mergulhou de cabeça em uma nova fase de pobreza e miséria. O PIB caiu um 1/6, o sistema de distribuição entrou em colapso e nenhum mecanismo de mercado eficiente pareceu substituí-lo, a escassez e a inflação assolaram a nação, e um rápido processo de desindustrialização foi estabelecido.

Ao mesmo tempo, e em nítido contraste com a mercantilização da economia chinesa (mais adiante), a transformação da Rússia de uma economia planificada para uma economia de mercado foi acompanhada por uma dolorosa desintegração a partir do contexto global maior. A caracterização usual da economia soviética enfatiza suas proibições estritas ao investimento estrangeiro, o que certamente é verdade em certa medida. Mas de fato, todo o bloco soviético, composto por vários países da Europa Central e Oriental, bem como países asiáticos, africanos e latino-americanos, desfrutou de um alto nível de integração econômica interna que contribuiu muito para o fluxo de capital através da URSS. A desintegração de todo este bloco após 1991, e o movimento ocidental de muitos países anteriormente soviéticos, significou a destruição da vasta rede de laços políticos e econômicos que outrora contribuíram para a força da Rússia. Assim, na prática, a abolição do socialismo soviético significou não apenas o empobrecimento, mas também o isolamento da Rússia do resto do mundo.

Desde então, nos anos marcados pelo governo do Presidente Vladimir Putin, a Rússia passou por um impressionante grau de reintegração no mercado mundial, baseado principalmente em sua grande oferta de recursos naturais importantes, o que levou a uma robusta recuperação econômica – embora a riqueza da Rússia não esteja nem perto dos níveis que atingiu no ponto alto do domínio soviético.

No entanto, apesar de sua recuperação bastante impressionante, a Rússia ainda está atrás de grande parte do mundo desenvolvido, continuou a ser objeto de desdém ocidental (sobra da era da Guerra Fria) e ainda é profundamente afetada pela memória de seus maus-tratos e isolamento pelo Ocidente. Este isolamento profundo produziu uma ideologia única para a Rússia. Motivada pelo ressentimento em relação às pretensões do Ocidente, e especialmente da América, de melhorar o mundo através da globalização do liberalismo, da democracia e do livre comércio capitalista, a nova ambição da Rússia é tornar-se novamente uma grande e independente civilização, enraizada em uma consciência renovada de sua singularidade política, econômica e cultural – e sem a ajuda do Ocidente.

Alexander Dugin, talvez o principal filósofo político e analista geopolítico da Rússia, deu uma formulação teórica especialmente clara a esta nova ideologia russa, que ele lança nos termos da “multipolaridade”. Em A Quarta Teoria Política, ele elucida uma visão multipolar do futuro global, contra o pano de fundo de três décadas de unipolaridade centrada na América. Após um sistema unipolar opressivo que tratou efetivamente as nações da periferia do Império Americano como Estados-párias ou fontes fáceis de mão-de-obra barata, Dugin vê a fratura do globo em múltiplos “Grandes Espaços”, unidos internamente por seus próprios sistemas políticos, econômicos e culturais únicos, como uma próxima fase inevitável na evolução da ordem global. Aqui Dugin segue explicitamente a teoria de Carl Schmitt sobre o Großraum, o Grande Espaço, que também está na base de teorias “realistas” de relações internacionais como a promovida por John Mearsheimer e outros estudiosos.

Mas em A Teoria de um Mundo Multipolar, Dugin também reconhece sua dívida com o cientista político Samuel Huntington, baseado em Harvard, que escreveu uma obra controversa intitulada O Choque das Civilizações como refutação à tese triunfalista de Francis Fukuyama sobre “o fim da história”. Huntington argumentou que o fim da Guerra Fria não necessariamente significou o fim da história, nem a vitória de um modelo predominantemente americano de governança democrática liberal e suas consequentes formas econômicas e culturais sobre o resto do mundo. Ao contrário, o colapso do sistema “bipolar” soviético-americano apenas abriu caminho para o surgimento de um mundo multipolar, onde civilizações independentes se tornariam os novos agentes da história mundial – e, mais pessimistas, os agentes de quaisquer novos grandes conflitos que pudessem surgir. Enquanto que a tese otimista de Fukuyama apontava para o fim da política e do conflito político, Huntington pensava que a possibilidade de conflito permanecia, onde as civilizações seriam os principais agentes de conflito. Daí o “choque de civilizações”. Neste modelo, grandes civilizações como a Rússia e a China mantêm sua autonomia política, ou pelo menos cultural, e sua tensão com o bloco ocidental dominado pelos americanos deve ser interpretada como um choque entre grandes civilizações.

Dugin aceita mais ou menos a estrutura de Huntington – mas com a qualificação crucial de que, algumas décadas depois de Huntington e Fukuyama escreverem suas teses de quebra de padrões, é a ordem unipolar descrita por Fukuyama que de fato tem caracterizado o mundo desde o fim da Guerra Fria. A multipolaridade, ou o choque de civilizações, descreve assim o mundo que agora está emergindo após a unipolaridade, como a inevitável rejeição multicivilizacional da unipolaridade americana, e a eventual dissolução do mundo unipolar em um conjunto de grandes estados civilizatórios, entre os quais um certo equilíbrio de poderes obteria em nível internacional, e que cada um possuiria sua própria soberania independente sobre seus próprios assuntos políticos, econômicos e culturais internos.

Além disso, Dugin se esforça para esclarecer que a dissolução do império global centrado nos Estados Unidos em um conjunto de Grandes Espaços autárquicos não é simplesmente um retorno retrógrado ou reacionário às formas pré-modernas do império regional. A unidade política constituída por cada “polo” civilizatório do mundo multipolar é um tipo de “Estado” inteiramente novo, mas no qual várias características de Estados pré-modernos e modernos aparecem em uma nova forma. O Estado civilizacional possui soberania sobre seus próprios assuntos; possui um centro legal de poder; contudo, a aplicação deste poder é diferenciada, de acordo com a distinta composição “etnocultural” e “confessional” da população; assim, deve operar de acordo com o princípio da subsidiariedade; deve incorporar uma grande variedade de identidades e instituições coletivas e individuais, o que é convencionalmente chamado de “sociedade civil”; e seus distintos estratos sociais (étnicos, religiosos, de classe e outros tipos de grupos) devem ser legalmente representados. Desta forma, afirma Dugin, a entidade política que governa uma civilização distinta é um Estado novo, mas que incorpora diferentes características de Estados pré-modernos que, tomadas separadamente, seriam de fato familiares, de uma forma semelhante ao movimento hegeliano de “sublação” ou a “negação da negação”.

Acima de tudo, uma das principais características do mundo multipolar será sua rejeição de formas universais de soberania, como a que foi efetivamente afirmada pelo império global americano. Acompanhando esta rejeição da soberania universal está uma crítica aos universalismos epistemológicos e morais, que pretendem julgar e avaliar modelos regionais de organização social ou de formação cultural de acordo com algum padrão universal imaginado. É de acordo com tal universalismo que o império americano tem operado, reivindicando não apenas uma soberania política sobre todo o globo, mas também a autoridade ideológica e moral para pronunciar julgamento sobre o mundo, de acordo com um conjunto de padrões ideológicos consagrados nas teorias típicas do liberalismo. A teoria da multipolaridade rejeita tal universalismo em favor de uma visão mais relativista (embora, que eu saiba, Dugin não use este termo), na qual os sistemas políticos e culturais de civilizações distintas são normativamente incomensuráveis.

E ainda assim, apesar desta aparência de relativismo, Dugin não hesita em declarar que o império global americano é mau, e que “[o] império americano deve ser destruído”. E a certa altura será”. Ao fazer esta declaração, ele dá voz à multidão de comunidades do mundo inteiro que se decepcionaram com a governança do grande soberano do Ocidente, que governou o mundo em última instância no seu próprio interesse. O globalismo foi a versão original do ‘América Primeiro’. Assim, a aspiração do multipolarismo russo é liberar as civilizações emergentes do mundo, na África, Índia, China, América do Sul e em outros lugares, das invasões do globalismo americano, e conceder às civilizações distintas sua própria soberania.

Jiang Shigong e a globalidade chinesa

A comercialização da China nos anos 80, na época da Reforma e da Abertura, seguiu uma trajetória muito diferente da da Rússia. Enquanto a Rússia sofreu a dor prolongada da “terapia de choque” econômica, da qual ainda hoje não se recuperou completamente, a mercantilização da China permitiu que sua economia passasse por uma acentuada aceleração no crescimento da produtividade, tornando a China uma das nações mais ricas do mundo em questão de poucas décadas. Enquanto os típicos relatos ocidentais da reforma e abertura da China sob Deng Xiaoping tipicamente a retratam como um afastamento da visão maoísta anterior do socialismo chinês, há outra leitura desta era da história chinesa que a vê como um retorno à abordagem científica do marxismo-leninismo que o próprio Mao Tse Tung abraçou. De acordo com esta leitura, o próprio capitalismo cumpre um propósito definido na progressão da história em direção ao socialismo e ao comunismo. De fato, os escritos de Vladimir Lênin estão repletos de repetições desta lembrança básica: o próprio socialismo depende do capitalismo para desenvolver os meios de produção, de acordo com as leis do desenvolvimento capitalista que foram elucidadas por Karl Marx.

Sabe-se que os próprios esforços de Mao em tal desenvolvimento falharam tragicamente, fato que é reconhecido até mesmo nas fileiras mais altas do Partido Comunista Chinês. O “Grande Salto para Frente” resultou em uma das piores fomes da era moderna. Foi quando Deng Xiaoping iniciou o ambicioso programa de Reforma e Abertura que, finalmente, o programa socialista de desenvolvimento econômico teria realmente um sucesso sem precedentes. Nesta leitura da história, em vez de um afastamento da concepção tradicional marxista-leninista e maoísta do desenvolvimento socialista, a Reforma e a Abertura realizaram o que o Grande Salto para Frente pretendia alcançar.

As políticas de reforma de Deng Xiaoping contrastavam de forma marcante com a “terapia de choque” que depauperou a Rússia. Ao invés da liberalização de todos os preços em um único big bang, a liderança decidiu liberalizar os preços gradualmente e dentro dos parâmetros do famoso sistema de “faixa dupla”. Os preços dos bens da indústria leve e dos bens de consumo podiam flutuar de acordo com os sinais padrão do mercado, enquanto os preços dos bens da indústria pesada e dos bens essenciais, como ferro, aço, grãos, etc., eram submetidos a um controle mais rigoroso pelo governo central. Esta abordagem mais cuidadosa da comercialização permitiu que o aparelho de planejamento central supervisionasse a reforma, e até contribuiu para a criação de novos mercados e arenas de produção – com o efeito notável de que a China começou a desfrutar de uma trajetória ascendente de criação de riqueza, ao invés do declínio que ocorreu na Rússia.

Mais importante ainda, a reforma da China foi auxiliada por sua abertura ao investimento de capital estrangeiro do Ocidente, em contraste com a desintegração da rede comercial da Rússia dentro do bloco oriental. Somas maciças de capital começaram a fluir para a China, em particular da América, lançando as bases para sua “milagrosa” ascensão nas três décadas seguintes. A China tornou-se o principal destino da produção terceirizada do Ocidente, o que a transformou na “oficina superindustrial do mundo” que ela ainda hoje é. Em 2001, a China entrou para a Organização Mundial do Comércio e não só foi um membro plenamente integrado da comunidade global, mas também se tornou o principal produtor de bens de consumo baratos do mundo, bem como de bens “mais pesados” como o aço. Em um certo sentido, o mundo inteiro se tornou dependente da China. A realidade da globalização se tornou uma parte irreversível da identidade moderna da China.

O peculiar caminho de transformação da China deu origem a uma concepção ideológica muito particular de seu papel na história mundial. O Presidente Xi Jinping encarna esta ideologia em sua filosofia de governo, que tem recebido muita atenção de estudiosos e analistas de todo o mundo. Mas a explicação e defesa mais autorizada do pensamento de Xi Jinping vem de Jiang Shigong, um estudioso altamente respeitado do direito constitucional da Universidade de Pequim. Alguns dos textos de Jiang foram publicados em inglês pelo projeto Reading the China Dream, juntamente com ensaios e discursos de outros importantes estudiosos do desenvolvimento da China moderna. A exposição de Jiang Shigong do pensamento de Xi Jinping, ou mais amplamente da ideologia do “Socialismo com Características Chinesas”, o caracteriza em termos marxistas como a superestrutura ideológica natural para complementar a base material do socialismo chinês.

A visão de mundo particular de Jiang depois do globalismo americano é profundamente informada pela história moderna da China, que, especialmente desde a era da Reforma e Abertura, tem estado tão profundamente entrelaçada com o próprio globalismo americano. Em um texto intitulado Filosofia e História, Jiang contesta explicitamente a leitura comum que tenta ver uma contradição entre a era de Mao Tse Tung e a de Deng Xiaoping, e retrata a progressão histórica de Mao para Deng para Xi como uma evolução contínua e coerente com três estágios, ao invés de um processo marcado por grandes rupturas e mudanças de paradigma. Sob Mao, a China “levantou-se”; sob Deng, “ficou rica”; e sob Xi, a China “está se tornando forte”.

Assim como a teoria russa da multipolaridade de Alexander Dugin, Jiang apresenta a ideologia do socialismo chinês como uma alternativa radical ao fim da história dominada pelos americanos, teorizada por Fukuyama, e também cita o Choque de Civilizações de Huntington como um modelo alternativo de ordem mundial. Jiang se une a Dugin e outros teóricos da multipolaridade na expectativa do fim da dominação global ocidental e do capitalismo ocidental. Mas a atitude de Jiang em relação à globalização como tal parece distinta da de Dugin, uma vez que a globalização desempenha um papel tão central em seu relato da ascensão da China ao poder, especialmente através da era Deng Xiaoping de “se tornar rico”. Durante a era Deng, o famoso objetivo da China era participar voluntariamente do sistema internacional de comércio, até mesmo ajudar na criação da própria unipolaridade americana e, enquanto isso, “esconder sua luz debaixo de um alqueire” até que o tempo estivesse maduro.

Maduro para quê? Jiang acredita que a posição única da China no sistema internacional lhe confere uma responsabilidade particular perante toda a espécie humana, além das fronteiras da própria nação chinesa. Ele escreve:

“Neste contexto internacional, a construção do Socialismo com Características Chinesas não só tem grande significado em relação ao grande renascimento da nação chinesa dentro do contexto da história da civilização chinesa, como também possui grande significado em relação à busca do futuro da civilização da humanidade em geral. Se a civilização chinesa pode fazer uma nova contribuição para toda a humanidade depende, em grande medida, de a civilização chinesa poder buscar um novo caminho de modernização para o desenvolvimento da humanidade… Mas após a ascensão da China para se tornar a segunda economia do mundo, a China está agora no centro da cena mundial e não pode ignorar suas obrigações para com o resto do mundo, concentrando-se apenas em seu próprio destino. A China deve recalibrar suas relações com o mundo, ligando a construção do Socialismo com Características Chinesas juntamente com o desenvolvimento do mundo inteiro, unindo-se ativamente à governança do mundo, assumindo suas responsabilidades para com toda a humanidade”.

Este é um afastamento marcante da linguagem da “multipolaridade”, que prevê um conjunto de grandes civilizações mais ou menos concentradas em seus próprios destinos, sem interferir nos destinos de outras civilizações. As aspirações da China, ao contrário, excedem os limites de seu próprio destino, e estão inerentemente envolvidas com o destino de toda a humanidade. Estas são reivindicações impressionantes, moldadas, em grande parte, pelo profundo entrelaçamento da China com o desenvolvimento da atual ordem mundial.

Este é um afastamento marcante da linguagem da “multipolaridade”, que prevê um conjunto de grandes civilizações mais ou menos concentradas em seus próprios destinos, sem interferir nos destinos de outras civilizações. As aspirações da China, ao contrário, excedem os limites de seu próprio destino, e estão inerentemente envolvidas com o destino de toda a humanidade. Estas são reivindicações impressionantes, moldadas, em grande parte, pelo profundo entrelaçamento da China com o desenvolvimento da atual ordem mundial.

Em outro texto, intitulado Império e Ordem Mundial, Jiang Shigong vê o progresso da história mundial como o progresso de unidades políticas menores em direção a conglomerados maiores, ou impérios, culminando na última fase do “império mundial” – atualmente presidida pelos Estados Unidos da América (embora novamente, com a contribuição indispensável da própria China). A direção irreversível da história sobre este relato é em direção à ordem universal das coisas. O tom de Jiang é quase fatalista: “Doravante, nenhum país poderá existir fora deste sistema de comércio global com sua liberdade, Estado de direito e democracia. Cada país, quer queira ou não, será necessariamente implicado na construção deste império mundial”. A China está, é claro, incluída nesta avaliação.

Assim, Jiang interpreta o mundo multipolar, não como um retorno à era dos impérios civilizacionais regionais, mas como uma rebelião interna ao sistema do império global que a própria América construiu, e do qual não há volta a dar. Nesta linha, ele corrige uma possível má leitura da tese de Huntington:

“Mesmo que Huntington visse a situação mundial pós-Guerra Fria como um ‘choque de civilizações’, e mesmo que tais conflitos civilizacionais se sobreponham, em certa medida, à distribuição geográfica dos impérios civilizacionais regionais, não podemos absolutamente confundir os dois. O que Huntington chamou de ‘choque de civilizações’ na verdade é meramente uma revolta contra o império mundial a partir de dentro, que se desenvolverá necessariamente dentro do sistema do atual ‘império mundial’, assim como deve necessariamente se desenvolver dentro da narrativa filosófica universalista de ‘fim da história’ da tecnologia, comércio e comércio, liberdade e estado de direito”.

Da mesma forma, a pressão exibida por países como a Rússia e a China sobre a América para manter sua posição de hegemonia global deve ser entendida como “uma luta para assumir a liderança econômica e política após a realização do ‘império mundial'”. Esta é uma modulação do clássico esquema marxista de luta de classes, onde a própria China desempenha implicitamente o papel do proletariado lutando contra a burguesia, que é personificada pela própria América. A tomada da liderança global é na realidade o estabelecimento de uma “ditadura global do proletariado”, embora Jiang não o declare explicitamente. No entanto, Jiang não hesita em insinuar que as próprias ambições da China estão exatamente nessa direção, especialmente quando parece que “estamos vivendo em uma era de caos, conflito e mudança maciça na qual o império mundial 1.0 [ou seja, o império mundial americano] está em declínio e tendendo para o colapso”. A própria responsabilidade da China será assumir a posição de liderança no “império mundial 2.0” a fim de facilitar o desenvolvimento de todos os povos, além do modelo unilateral de desenvolvimento capitalista que dominou o “império mundial 1.0”.

A multipolaridade continua a desempenhar um papel na fase global, mesmo além da rebelião contra o capital global, na medida em que é precisamente dentro dos parâmetros de um império global que a China “[incentiva] todos os países em desenvolvimento a abrirem seus próprios caminhos para a modernização”. No texto de Filosofia e História, Jiang cita o próprio relatório de Xi Jinping do 19º Congresso Nacional para elucidar a própria visão de Xi sobre o papel da China em facilitar o desenvolvimento de diferentes regiões ao redor do mundo: “Ele oferece uma nova opção para outros países e nações que querem acelerar seu desenvolvimento enquanto preservam sua independência”. Jiang repete e desenvolve este pensamento, afirmando que a aspiração da China não é impor um modelo único de desenvolvimento econômico a outros países, como fez o mundo unipolar ocidental, mas precisamente facilitar seu desenvolvimento de acordo com seus próprios caminhos regionais, determinados por suas próprias restrições políticas e culturais locais. Em outro texto importante de 2020, avaliando a história e o estado contemporâneo das relações Sino-EUA, Jiang explica como a Iniciativa Cinturão & Rota desempenha um papel crucial na implementação desta visão.

O mesmo cuidado com o desenvolvimento das economias regionais também demonstra a confiança caracteristicamente “comunista” da China no potencial de desenvolvimento de toda a humanidade, e assim suas aspirações são decididamente universais e cosmopolitas, e não simplesmente nacionalistas. A globalidade ou universalidade continua a desempenhar um papel fundamental na concepção da China de si mesma e de seu destino histórico, o que está de acordo não apenas com sua ideologia comunista atual, mas também com o clássico conceito confucionista de tianxia (天下), ou “tudo sob o céu”.

Conclusão

Onde Alexander Dugin tenta visualizar uma ordem mundial definida por múltiplos pólos independentes de soberania civilizacional, Jiang Shigong prevê uma ordem mundial ainda presidida por um soberano universal, mas um soberano benevolente cujo único propósito é permitir que os diversos povos sob sua providência possam buscar seu bem-estar de acordo com seus próprios caminhos distintos de desenvolvimento. Onde a visão de Dugin da multipolaridade é simplesmente incompatível com a ordem mundial universal, a visão de Jiang parece implicar uma reconciliação – ou pelo menos uma tensão produtiva entre universalidade e particularidade, ou mesmo de unipolaridade e multipolaridade. Além disso, onde a visão de Dugin da entidade política que preside cada pólo civilizatório do mundo multipolar tenta sublimar, de forma quase hegeliana, várias características dos Estados pré-modernos, a visão de Jiang da próxima ordem mundial consegue sublimar até mesmo a própria globalidade.

Estas teorias distintas da multipolaridade surgem dos distintos destinos da Rússia e da China após a queda da União Soviética. Embora em ambos os países haja um forte ressentimento em relação ao Ocidente, a unipolaridade americana tem tido efeitos profundamente diferentes em cada um deles. Com o advento da unipolaridade, a Rússia caiu em um profundo isolamento, do qual ainda está se recuperando; enquanto a China foi tão bem recebida no novo sistema internacional que até desempenhou o que é indiscutivelmente o papel mais importante na construção desse mesmo sistema, ou seja, o papel do proletariado global. Com certeza, a antipatia que a China compartilha com a Rússia contra o modelo ocidental de desenvolvimento preserva uma sensibilidade para a grande diversidade de modelos de desenvolvimento que é sugerida pelo conceito de multipolaridade. No entanto, ao ver o mundo inteiro depender de si mesma em um sentido material, a China não poderia deixar de se ver em uma posição de potencial soberania global própria.

Em última análise, a Rússia e a China desempenham papéis importantes no estabelecimento dos parâmetros ideológicos ou teóricos dentro dos quais todos os países sob o domínio do poder americano devem considerar a questão de seu futuro nas grandes tendências da história mundial. Esta é uma questão que transcende as fronteiras das ideologias políticas convencionais, tais como as colocadas no espectro da Direita-Esquerda ou do Conservador-Progressista. A ansiedade sobre a inflexibilidade econômica, política e cultural da ordem liberal ocidental é compartilhada por figuras tão diversas como Xi Jinping, Vladimir Putin, Donald Trump, Viktor Orbán, o Papa Francisco e toda uma série de outras pessoas e grupos de interesse proeminentes em todo o mundo. A questão de como o mundo após “o fim da história” será moldado assim afeta a todos. É por esta razão que as teorias da multipolaridade que estão sendo formuladas na Rússia e na China – os principais opositores da unipolaridade americana – devem ser levadas a sério.

Fonte: European Conservative

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Jonathan Culbreath

Escritor e editor.

Artigos: 50

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