O colapso do Estado de Direito, as crises políticas, a guerra entre os poderes terrestres e marítimos: as idéias de Carl Schmitt nunca foram tão relevantes. Numa síntese magistral de seus vários trabalhos sobre o jurista alemão, Robert Steuckers oferece um panorama quase completo de sua influência em nosso tempo.
Por Monika Berchkov
Monika Berchkov: Como você resumiria a vida e obra de Carl Schmitt?
Robert Steuckers: A vida de Carl Schmitt como jurista e teórico do direito e da política começou em sua juventude. Teve duas esposas, ambas de origem sérvia, com uma das quais teria uma filha, Anima, com quem viria a casar-se na Espanha. Do ponto de vista político, Carl Schmitt foi inicialmente um partidário do Centro Católico (grupo democratas-cristãos), pois sua família era originária de Mosela e isso o dava uma herança tradicional muito forte e a vivência de um catolicismo rural. Pode-se dizer que é a história do declínio de um ramo político que não existia na França e que agora está em sua fase final, especialmente na Bélgica e na Alemanha agora que Angela Merkel se aposentou. Numa primeira fase da sua vida política, Schmitt quis dar rigor e força ao amplo movimento que esse catolicismo romano e político representava: os representantes do partido o ignoraram e o catolicismo alemão desde então tem sido desequilibrado por todo o tipo de debates teológicos infrutíferos e débeis tentativas de adaptação ao espírito da época. Schmitt, pelo menos superficialmente, e como muitos membros desapontados do Centro Católico, aderiu ao Nacional-Socialismo, que ele via como uma medida paliativa para interromper a então decadência. Carl Schmitt ficou marcado pelos anos de 1933 e 1934: a partir de então, muitos começaram a desconfiar dele, principalmente desde que publicou um texto intitulado “O Führer como garantidor da lei” após a famosa “Noite das facas longas”. Foi uma tentativa tardia de Schmitt de se ajustar aos novos governantes, tentando deixar para trás seu passado recente como oponente da ascensão do hitlerismo. Além disso, Schmitt foi conselheiro de comunistas como Kurt von Schleicher, assassinado em 30 de junho de 1934. No entanto, sempre houve uma profunda desconfiança em Schmitt por parte do NSDAP, especialmente da SS: o jornal da Guarda Pretoriana de Hitler atacou ferozmente Schmitt em 1936, considerando-o um representante do Centro (então dissolvido) e secretamente hostil ao Nacional-Socialismo depois que ele chegou ao poder em 30 de janeiro de 1933. Schmitt foi impedido de concorrer a qualquer cargo público após esse incidente, acompanhado de ameaças de morte e uma investigação detalhada ordenada por Himmler.
A partir de então, deixou de se preocupar com a política interna alemã e com a codificação do novo ordenamento jurídico do nazismo, mas continuou com sua brilhante e fundamentada crítica ao wilsonismo americano, que a seus olhos era uma continuação da Doutrina Monroe proclamada em 1823 pelo então presidente dos EUA com esse nome. Os Estados Unidos de James Monroe rejeitaram qualquer tentativa de intervenção da Santa Aliança Europeia no Novo Mundo e, em troca disso, prometeram não intervir nos assuntos europeus ou asiáticos. Essa proclamação foi logo abandonada quando a guerra contra a Espanha começou em 1898, quando os Estados Unidos conquistaram as Filipinas e intervieram na China em 1900. O intervencionismo americano na Europa veio das mãos de Woodrow Wilson lá para a década de 1920 pelos estrategistas estadunidenses. Frank B. Kellogg e Henry L. Stimson diziam que o Japão era uma ameaça e elaboraram uma série de leis que buscava atacar a soberania de todos os outros países, proibindo toda a forma de guerra, criminalizando os Estados que se opusessem ao intervencionismo estadunidense e rejeitando ficar neutro, visto que os inimigos dos EUA seriam representantes do mal absoluto e, por consequência, afirmando que qualquer um que os defenda, são aliados deles, fincando assim o intervencionismo estadunidense em todo o mundo. Schmitt foi o primeiro a se opor a essas reivindicações com grande rigor intelectual. Sendo os EUA uma potência de dimensão continental, a Europa também deve ambicionar sê-lo e por isso apelou à criação de uma “Grande Europa” sob a liderança da Alemanha e em conjunto com as colônias africanas dos outros países europeus. É por isso que Schmitt é considerado o teórico do “Großraum” (Grande Espaço) e da proibição de todas as formas de intervencionismo por parte de uma potência estrangeira dentro do referido Grande Espaço (“é proibido a potências de fora deste espaço intervir nele”). Depois da guerra, e tendo sido libertado da prisão, onde passou vários meses, Schmitt voltou para sua cidade natal, Plettenberg, em Sauerland, negada a possibilidade de estar em uma cátedra universitária. Ficou bastante amargurado. No entanto, recebeu muitos visitantes na época e foi regularmente convidado para a Espanha, onde não havia ostracismo que nem na Alemanha. Foi lá que ele desenvolveu a “teoria do partisan”, baseada na análise de certas características do maoísmo (ou dos vietcongues) que podiam ser encontradas em muitos meios católicos rurais em Flandres, Áustria e Alemanha até os anos 1960. Schmitt nunca ridicularizou essas características rurais do maoísmo, muito ridicularizados por humoristas como Lauzier, que os caricaturaram cruelmente. Schmitt limitou-se a analisar a teoria Clausewitziana da “pequena guerra” (guerrilha) do Tirol e da Espanha contra Napoleão e justificou a luta do guerrilheiro se e somente se ele defende seu país (se sua luta tem uma dimensão “telúrica” e muitas vezes “camponesa”), longe de qualquer ilusão ideológica abstrata. Afinal, a ordem mundial após 1945 era composta por três “Grandes Espaços” segundo ele: os EUA, a URSS e a China. A bipolaridade criada por Yalta foi contestada pelos povos em processo de descolonização e pelos Não-Alinhados (nos quais Schmitt depositava todas as suas esperanças).
Como a fé católica influenciou a formação intelectual de Carl Schmitt?
A fé de Carl Schmitt não pode de forma alguma ser equiparada ao ingênuo fanatismo religioso, o que não implicava intransigência. Podemos dizer que o catolicismo de Schmitt era de origem ibérica e decorreu de sua leitura do diplomata espanhol do século XIX, Juan Donoso Cortés, que considerava “satânicas” as maquinações da “classe debatedora”, ou seja, da burguesia parlamentar e de todos os pensadores que os apoiam. A política só acontece no estado de exceção e no perigo e isso não surge de debates; é impossível que conversas intermináveis e repetitivas possam tomar decisões rápidas e contundentes. Deus não criou o mundo a partir de uma discussão parlamentar: o ato divino mais importante não é produto de um debate. As decisões papais também são tomadas sem recorrer a qualquer forma de debate e o mesmo se aplica às decisões dos monarcas absolutos. O decisionismo de Schmitt deriva muito de Donoso Cortés, embora seu catolicismo seja sustentado por outras ideias norteadoras que encontramos em sua teologia política, como o pessimismo antropológico e a ideia do “servidor romano”. Schmitt herda da tradição agostiniana a ideia de um “ser humano pecador” que deve ser integrado a um sistema religioso para que não ceda aos seus instintos inferiores: o pecador precisa da “forma”. A antropologia pessimista, ao contrário da antropologia otimista de Rousseau (“o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”), não conduz ao totalitarismo, pois Schmitt observa que são os representantes dos totalitarismos modernos que se consideram “bons”, isto é, acima do pecado, e consequentemente tratam seus inimigos como vermes que devem ser exterminados (por exemplo, a guerra da Vendeia). O otimismo antropológico leva ao terror; seu eudemonismo superficial finalmente leva ao extermínio violento. Em segundo lugar, alguns teólogos sobre os quais Schmitt reflete sustentavam que a providência havia dado aos primeiros cristãos a defesa da “herança romana”, isto é, o Império Romano, e que esse herdeiro tinha que ser mantido contra todas as probabilidades por um katehon constantemente ameaçado pelo perigo e pela decadência (resistência à decadência ou às forças do mal como meio de impedir uma catástrofe apocalíptica). Schmitt levou muito a sério a ideia do “katehon romano”: sendo Rhinelander e Moselian, ele sabia que sua região natal floresceu sob o Império Romano e esse Império sobreviveu graças à translatio imperii ad Francos e mais tarde ad Germanos. O Sacro Império Romano existiu até ser destruído por Napoleão: ele precisa ser restaurado e catolicizado novamente. Portanto, é preciso consolidar a herança imperial, além de defendê-la e preservá-la o máximo possível. A catolicidade de Schmitt é inseparável dessa defesa do Reich medieval, sendo paradoxalmente “guibelino” e não guelfo. Da mesma forma, esta ideia é inseparável da forma, que se manifesta constantemente através do seu esplendor e visibilidade, do seu triunfo constante, da sua arquitetura, da sua solenidade e pompa. Aqui a hostilidade de Schmitt à sobriedade da liturgia protestante é evidente. Mas também não devemos esquecer suas reservas contra o catolicismo conservador que sonhava com uma ingênua restauração romântica medieval promovendo o antiestatismo, o antiprussianismo e o antifascismo sob o pretexto de que os estados alemão e italiano eram de origem prussiana, protestante e/ou protestante da tradição filosófica hegeliana (chamada de “atualista” na Itália e na Holanda): Schmitt ainda era um católico, mas também era um estatista prussiano e um nostálgico do Sacro Império Romano em seu disfarce gibelino.
A relação de Carl Schmitt com o Nacional-Socialismo, como a de seus colegas Heidegger e Jünger, continua sendo objeto de debates apaixonados e intermináveis. Carl Schmitt era um conselheiro ou um oponente do regime de Hitler?
De certa forma, pode-se dizer que foi os dois. Ele era um companheiro de viagem do Nacional-Socialismo, porque a situação no início dos anos 1930 e depois que o NSDAP chegou ao poder em janeiro de 1933 postulava um volens nolens. Schmitt, como muitos de seus contemporâneos, odiava o sistema da República de Weimar submetido às potências estrangeiras francesas e americanas (por exemplo, as tentativas de Dawes e Young de controlar a economia alemã). A economia da República de Weimar era, como diziam os empresários americanos, uma “economia penetrada/dependente” que impedia o país de ser verdadeiramente autônomo. O novo regime poderia servir como um katehon em sua visão que futuramente poderia se transformar em um verdadeiro Reich. Schmitt era um adversário do Nacional-Socialismo porque criticava a ideologia do novo regime, que continha muitos elementos românticos que qualifica de “ocasionalistas” e, portanto, representava uma “mistura” sem referências sólidas, profundas e antigas, que acabariam desintegrando-se. Seja como for, Schmitt foi denunciado como o jurista do nazismo depois de 1945, interrogado incessantemente por agentes de inteligência americanos e condenado ao ostracismo pela nova Alemanha democrática. Ele foi proibido de ensinar pelo resto de sua vida.
Qual era a relação de Schmitt com o liberalismo?
Schmitt considerava o liberalismo seu principal inimigo, a forma assumida por todas as ilusões e desvios modernos. No entanto, a sua crítica ao liberalismo cristalizou-se na sua constante rejeição do “direito positivo”, que postula a estrita aplicação das leis e das normas sem referência às mudanças no mundo real, do contexto político e sociológico e dos fatos que lhes deram origem. Essa posição de Schmitt vem de seus primeiros anos de estudo em Estrasburgo, onde trabalhou com um certo professor Fritz van Calker, que considerava que o direito não poderia ser estudado sem levar em conta os valores tradicionais de diferentes sociedades. É claro que o sistema de valores de Schmitt, que encontramos nas primeiras fases de sua obra, estava ligado ao às vezes truculento e cortês catolicismo, que se manifestava nas celebrações carnavalescas, em sua bela forma romana e em sua referência ao “katehon romano” (germanizado pelos carolíngios e pelos otonianos). No entanto, esse catolicismo de Schmitt não deixou de influenciar suas produções intelectuais. Schmitt não via as vanguardas literárias e artísticas como uma continuação delirante da modernidade progressista, mas sim como um desafio radical à Modernidade liberal e burguesa que buscava destruir a espinha dorsal de todo Estado verdadeiramente “político”, ou seja, a marginalização do todas as formas de militarismo. Schmitt acreditava que as energias dos protestos de vanguarda, uma vez minada a ordem burguesa, retornariam inevitavelmente às tradições positivas dos povos e, portanto, deveriam concentrar sua luta contra o liberalismo burguês (Hugo Ball, que era um Dada admirador de Schmitt, retornará, ainda que desajeitadamente, a uma espécie de catolicismo cheio de fervor medieval e esplendor triunfante). Em segundo lugar, a crítica de Schmitt ao “direito positivista”, teorizada na época por Hans Kelsen, é inseparável de sua crítica à partitocracia da República de Weimar. A partitocracia levou a uma fragmentação prejudicial do corpus mysticum, ou seja, do povo, como definiu Suárez, pensador espanhol do século XVII: a partitocracia justapõe fragmentos do povo hostis entre si. Além disso, entrega o poder a diferentes facções da “classe debatedora” fustigada por Donoso Cortés e, por fim, leva ao declínio irreversível da política e das instituições do Estado. É claro que Carl Schmitt está mais atual do que nunca a esse respeito. Como Maurras, buscava o triunfo da legitimidade e desconfiava da legalidade que fundamenta o “direito positivo” do liberalismo.
O decisionismo é fundamental em Carl Schmitt. Como esse decisionismo pode ser definido em seu trabalho?
Schmitt considerava o estado de exceção ou de emergência como o momento da verdade, que contrastava com a normalidade legalista e burguesa. Esse estado de emergência de alta intensidade exige decisões rápidas e sem hesitação. O “decisionismo” de Schmitt é, portanto, indissociável da concepção “kairológica” de tempo dos gregos, ou seja, de um momento que exige ação rápida que implica aproveitar o imediato (sem mediação) e a oportunidade para forçar o destino e assim obter a vitória e prevalecer. Esse tempo “kairológico” contrasta com o desenrolar suave do tempo “cronológico”, o tempo normal, ligado às rotinas banais e à vida cotidiana (o “governo do homem” segundo Heidegger). Aos olhos de Schmitt, o direito positivo é o direito que se recusa a pensar em outra coisa senão a normalidade, uma normalidade regulada e padronizada por leis imutáveis e ininterpretáveis que nunca entraram em contato com a riqueza da realidade (direito consuetudinário). O direito positivo considerou que a história jurídica anterior foi abolida pelo pensamento e prática jurídica do século XIX: o direito consuetudinário e o estado de exceção (que funciona de outra forma) foram excluídos do pensamento e da prática jurídica por serem considerados extralegais. O liberalismo é a ideologia dessa exclusão geral, dessa purificação total do mundano e do concreto, que acaba levando, como disse nosso ministro Theo Francken, a que o judiciário só eleja “juízes não mundanos” (wereldvreemd). A essa crítica contundente, difícil de analisar em todas as suas consequências nesta singela entrevista, Schmitt acrescenta que o verdadeiro jurista, legitimador e decisor, como ele próprio, deveria ter uma sólida formação literária e clássica, sob pena de se tornar um advogado ou juiz chato e sem instrução, um seguidor estúpido ou perverso de ideologias “atuais” ou “da moda” que nublaram e neutralizaram o próprio significado da lei natural. Essa crítica, expressa por Simmel em 1914, e depois por Schmitt e Max Weber na década de 1920, foi retomada mutatis mutandis por François Ost (F.U. Saint Louis, Bruxelas) em sua obra Raconter la Loi. Aux sources de l’imaginaire juridique (O. Jacob, 2004), obra pouco estudada nos círculos não-conformistas atuais. Ost quer superar todas as visões formalistas e moralistas do direito, basicamente o mesmo que Carl Schmitt queria na época, desejando que o direito voltasse aos paradoxos que a literatura nos revela (ele cita Sófocles, Goethe, Defoe, Kafka, etc.). Segundo Schmitt, o liberalismo é uma ordem pervertida que deve ser eliminada, porque obstrui a possibilidade da pólis entender o estado de exceção ou necessidade, além de promover a partitocracia, o direito positivo (de Laband e Kelsen) e justificar todo tipo de erros moralizadores e economicistas.
Que “lições” da obra de Schmitt ainda são relevantes?
Os ensinamentos deixados por Carl Schmitt são numerosos, como atesta o crescente interesse que existe em todo o mundo por sua obra. Uma leitura atenta das obras de Carl Schmitt permitiria uma crítica construtiva aos efeitos perversos da partitocracia. Pessoalmente, considero muito importante a definição que Schmitt dá dos “Grandes Espaços” e o fato de este “proibir a intervenção de potências estrangeiras que não pertençam ao espaço europeu” nos nossos assuntos. A Europa de hoje está sujeita à intervenção constante do poder americano, sendo este uma talassocracia tanto nos seus princípios como nos seus valores culturais. Os Estados Unidos são uma talassocracia devido à sua extensão continental bioceânica (Atlântico e Pacífico), tal extensão bioceânica permite-lhe ser autossuficiente e projetar-se para os continentes insulares ou costeiros que se encontram no Atlântico e no Pacífico, tanto na Ásia como na Europa, mas, sobretudo, satelizar as potências menores e, o que é pior, penetrar em mares interiores como o Mediterrâneo, o Mar Negro, o Mar Báltico, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho para esmagar qualquer outra potência imperial que possa surgir nesses lugares. A Europa (e a Rússia) encontram-se altamente expostas a essas ações porque nunca cumpriram o conselho de Schmitt de proibir o distante Estados Unidos de invadir militarmente nossas terras e mares, tolerando a presença americana no Mediterrâneo (com a Sétima Frota estacionada em Nápoles) e a aliança incondicional com Israel). A operação russa na Ucrânia permite uma invasão permanente no Mar Negro e levou todas as pequenas potências bálticas anteriormente neutras a ingressar na OTAN. O desaparecimento da neutralidade desta região, agora altamente estratégica, é uma catástrofe para toda a Europa, pois já não será possível alargar esta neutralidade de forma a criar um espaço tampão entre o verdadeiro Ocidente, herdeiro dos iconoclastas de 1566 e a Rússia. Carl Schmitt escreveu na p. 257 de Posições e Conceitos que lamentava o desaparecimento e eventual criminalização do direito dos Estados à neutralidade, consagrado no Direito Internacional, ou seja, o direito de não participar de uma guerra entre terceiros e, portanto, não permitir que seus próprios territórios tornem-se palco de combates e destruições irremediáveis. Schmitt diz: “A ameaça e o perigo da criminalização do princípio da neutralidade no Direito Internacional não emanam, então, de um Estado que se preocupa apenas consigo mesmo, mas, ao contrário, das reivindicações de poderes supranacionais e suprapopulares, que querem impedir o direito de escolha ou não de um povo para substituí-lo por valores coletivos predeterminados (a comunidade de valores ocidental/atlantista) considerados universais ou ‘suprapopulares’ de uma forma ou de outra”. O direito de escolher a neutralidade, como fez a Finlândia de Paasikivi e Kekkonen em 1948, a fim de evitar a ocupação ou anexação soviética, é um direito inalienável dos Estados que anda de mãos dadas com a rejeição de todas as ideologias universalistas, seja o tardio modelo soviético ou o atual transatlantismo. O direito à neutralidade também significa não discriminar as partes em conflito e não permitir qualquer desequilíbrio a favor de uma ou de outra em detrimento de todas as partes, inclusive na mídia. As ideias schmittianas sobre a não-interferência, juntamente com sua crítica às ideologias messiânicas e universalistas e a defesa do princípio da neutralidade, devem ser resgatadas e defendidas mais do que nunca.
O livro Terra e Mar de Schmitt é muito atual. A Rússia e o Ocidente representam essa luta entre o poder da terra e o poder do mar? Essas reflexões de Schmitt oferecem uma pista para o curso posterior desta guerra?
Claro, como Alexander Dugin apontou em suas extensas e didáticas obras publicadas, a atual luta global é um conflito entre uma talassocracia hegemônica, que expandiu seu domínio técnico para se tornar uma potência aérea, espacial e balística, contra várias outras potências, países continentais (telurocratas) que desenvolveram frotas e submarinos. Dugin resume muito bem as posições de Schmitt em seu livro A Quarta Teoria Política (Torredembara, ed. Fides, 2018; do qual só pude consultar sua versão em espanhol) ao dizer que o “Grande Espaço” continental de que fala Schmitt atualmente é a Rússia, mas as fronteiras da Rússia tornaram-se frágeis após a dissolução da URSS. Schmitt considera que a figura simbólica do zoon politikon, corporificado em um império telurocrata, é o “geômetra romano” que mede, levanta e desenha estradas, construindo pontes e aquedutos por toda parte. Ele organiza o espaço para torná-lo parte da civitas e assim cria a civilização. Schmitt argumenta que a talassocracia nada mais é do que uma ilusão que não se sustenta em nada concreto: No seu Glossarium, ou seja, nas suas notas que só apareceriam dez anos depois da sua morte, diz que a talassocracia é uma entidade política hegemônica de natureza oceânica/marítima que tem necessidade de se deslocar constantemente, porque senão “seria afundar inevitavelmente, já que na água é preciso nadar”. A hegemonia talassocrática implica movimento constante: uma sociedade fluida que considera qualquer forma sólida baseada na terra como criminosa e totalitária. O atual conflito que se desenrola em vários cenários, entre os quais a Síria e a Ucrânia, é um conflito entre uma talassocracia que substituiu parcialmente a potência dos seus navios pelo mundo digital, a cloud e o offshore, contra várias potências telurocráticas que, além de ter navios, também constroem ferrovias, canais e novas rotas marítimas (mesmo no Oceano Ártico). O representante mais importante dessa telurocracia é a China de Xi Jinping com seu duplo projeto de um sistema de comunicação tradicional-terrestre, o cinturão terrestre (ou “nova Rota da Seda”) junto com seu banco de investimentos para projetos específicos (referência às ordens de Schmitt). Teria sido interessante saber a opinião de Schmitt sobre as guerras atuais, pois ele só poderia teorizar a rígida ordem mundial produzida pela “Guerra Fria”.
Que intelectuais de esquerda e direita reivindicam Carl Schmitt hoje em dia?
A recepção atual de Schmitt abrange um espectro muito amplo, embora quem mais o leia seja naturalmente intelectual, já que é impossível abarcar a obra de um homem que morreu aos 97 anos, escrevendo seu último livro aos 91. A morte prematura de sua filha Anima o deixou literalmente sem palavras. Na França, ele foi lido principalmente por Julien Freund, seu aluno alsaciano. Seus exegetas italianos, tanto à esquerda quanto à direita, são dignos de nota. Schmitt foi amplamente estudado na Espanha e na América Latina, enquanto na Alemanha, apesar de ter sido demonizado por suas relações com o nazismo, seus ex-alunos continuaram a promover sua obra, principalmente o primeiro Helmut Quaritsch, um alemão que mais tarde dirigiu a prestigiosa revista de ciência política Der Staat (Berlim). Como é impossível cobrir todos os aspectos de seu trabalho nesta entrevista, gostaria de mencionar especialmente Günter Maschke, um camarada meu falecido em fevereiro deste ano, um ex-ativista de esquerda na década de 1960 na Alemanha e na Áustria que deu literalmente uma guinada em sua perspectiva ideológica e tornou-se um dos mais fervorosos defensores de Schmitt, sendo um meticuloso pesquisador de sua obra. Vale citar também o professor Rüdiger Voigt, que estudou a relevância do “Grande Espaço” de Schmitt neste mundo “desterritorializado”, tema muito importante na atualidade. Poderíamos dizer que minha compatriota Chantal Mouffe é a Schmittiana de esquerda mais importante, até porque ela está ligada ao movimento neocomunista espanhol Podemos devido ao seu marido, o pós-marxista Ernesto Laclau, assumir muitos dos conceitos cunhados por Schmitt para criticar o liberalismo (e o neoliberalismo). O liberalismo, essa ideologia devidamente criticada à exaustão por Carl Schmitt, destrói as comunidades humanas de tal forma que a luta de classes não é mais possível em uma sociedade fragmentada onde existem apenas indivíduos isolados. Chantal Mouffe também assumiu, como Maschke no início de seu encontro com a obra de Schmitt, a ideia do político, negada pela esquerda clássica e principalmente por aqueles que sucumbiram às encantadoras sereias do neoliberalismo. O político nos permite reunir-nos como um grupo que, resistindo a outros grupos, permite a beleza do jogo do político, ao contrário da implosão do político em nossas atuais sociedades neoliberais. Segundo Chantal Mouffe, Schmitt permite pensar a agonia e restabelecer a luta política como única forma de salvar civilizações nesta era de vazio (liberal), algo que, aliás, Armin Mohler também defendeu em 1982 em um artigo esquecido que publicou no Criticón e que traduzi há muito tempo. Por fim, o corpus teórico de Schmitt foi popularizado pela revista teórica americana Telos, que foi responsável por divulgar as ideias da Escola de Frankfurt nos Estados Unidos! Um de seus editores-chefes, o falecido Paul Piccone, descobriu Schmitt e orientou sua revista para aquela síntese surpreendente que eles mantêm hoje e que não tem equivalente no mundo francófono. A revista publicou recentemente uma análise do trabalho de Schmitt por um de seus primeiros leitores americanos, Joseph W. Bendersky, e seu aluno chinês, Qi Zheng. 37 anos depois da morte de Schmitt, 43 anos depois de publicar os seus últimos livros, a obra deste ermitão de Plettenberg continua a ressoar pelo mundo: tentar evitá-la para dar a vitória aos imbecis de hoje, dominados pelos desgastados discursos dos políticos sem conteúdo como os neoliberais, que promovem toda essa cabala de crédulos apolíticos e políticos desonestos, seria um crime enorme que não podemos pagar.
Você mencionou recentemente a influência de Carl Schmitt na China. Até que ponto seu trabalho influenciou os governantes daquele país?
Você pode consultar o trabalho do italiano Daniele Perra sobre esse assunto, recentemente publicado num livro muito conciso e claro intitulado Stato e Impero di Berlino a Pechino. L’influenza del pensiero di Carl Schmitt nella Cina contemporanea (Anteo Ed., Cavriago/RE, abril de 2022). Nesse livro, que infelizmente ainda não foi traduzido para o francês ou para o inglês, Daniele Perra elenca os mais importantes pensadores políticos chineses contemporâneos de natureza “schmittiana”: Liu Xiaofeng, Jiang Shigong, Wang Huning e Zhang Weiwei. Xiaofeng enfatiza a importância do puritanismo na ascensão do idealismo americano e sua abordagem da política internacional, bem como sua obsessão em forçar outros Estados, incluindo aqueles que estão surgindo ou que desejam emergir, a adotar uma “política de portas abertas” com o objetivo de não serem considerados como “totalitários” ou “sociedades fechadas” (como Popper ou Soros os chamam). Xiaofeng enfatiza que a China deve conhecer a origem dessa obsessão e tentar de alguma forma mitigar sua virulência, porque mais cedo ou mais tarde ela explodirá. Jiang Shigong teorizou o conceito de Império e “Grande Espaço”, concluindo que a China deve assumir um papel de liderança no possível nascimento de um “novo nomos da terra”, como foi teorizado na época por Schmitt. Wang Huning analisa os modos de expansão da cultura ocidental (ou seja, americana, já que os Estados Unidos são a potência hegemônica do Ocidente) progressista, já que os Estados Unidos, como entidade estatal sem profundidade histórico-temporal, só pensa no futuro, por isso não respeita o passado e, portanto, a sabedoria adquirida e interiorizada através da experiência histórica. O neoliberalismo é a personificação atual dessa vontade de destruir o passado, uma ideologia/teologia puritana americana contra a qual a China deve se opor defendendo suas autoridades políticas (ou seja, o “partido”) e um socialismo coletivo fora da mente. Por seu lado, Zhang Weiwei afirma que a China deve esforçar-se por desconstruir o discurso hegemônico do Ocidente” através dos princípios culturais herdados do seu passado. Esta ideia de “desconstrução” baseia-se na obra filosófica de Martin Heidegger, para quem “desconstruir” não significa destruir os alicerces de uma civilização, como pensavam seus seguidores da Escola de Frankfurt ou filósofos franceses como Jacques Derrida ou Michel Foucault, mas sim “desconstruir” aquelas atitudes ridículas em que caiu o Ocidente atual, cujas expressões recentes são o maio de 68, a idiotice festiva (denunciado por Philippe Muray), o politicamente correto e o wokismo. Os principais teóricos chineses também são leitores de Heidegger.
Qual é a sua conclusão de tudo isso?
O que eu disse aqui é muito superficial: estou bem ciente de que a obra de Schmitt merece um estudo muito mais profundo e que muitos aspectos de seu pensamento ainda não foram abordados. Sua obra ainda está em aberto e não sei se alguma dia fechará.
Fonte: Geopolitika.ru